Opinião

Semipresidencialismo: desafios adicionais em terras brasileiras

Autor

  • Abhner Youssif Mota Arabi

    é juiz auxiliar da presidência do Supremo Tribunal Federal coordenador do Centro de Mediação e Conciliação do STF doutorando em Direito do Estado (subárea: Direito Constitucional) na Universidade de São Paulo (USP) mestre em "Direito Estado e Constituição" pela Universidade de Brasília (UnB) ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal (2014-2018) e autor de livros capítulos de livros e artigos jurídicos.

4 de maio de 2022, 15h01

O debate sobre o semipresidencialismo parece avançar no Brasil. Para os seus defensores, a implementação de um novo sistema de governo poderia representar um mecanismo mais eficiente de responsabilização política do chefe de governo, permitindo soluções mais céleres a crises políticas, especialmente quando as coalizões legislativas multipartidárias são frágeis e instáveis.

Instituído como um sistema de governo originariamente europeu, que tem na França e em Portugal dois exemplos significativos de sua aplicação, o modelo se caracteriza, essencialmente, pela divisão do Poder Executivo entre um presidente da República e um primeiro-ministro, em que o presidente é eleito pelo voto popular universal e direto, mantém consigo poderes relevantes (como a possibilidade de dissolução do Parlamento), mas atribuindo-se a chefia de governo ao primeiro-ministro, que é politicamente responsável em duplo âmbito: perante o próprio Presidente e perante o Poder Legislativo [1]. Na América Latina, o modelo é adotado também no Peru, onde a estabilidade política não parece existir [2].

Em texto anterior [3], externei algumas preocupações sobre o momento em que se decide discutir a implementação de um novo sistema de governo em uma democracia. Com efeito, diante das diferenças que os sistemas semipresidencialistas podem assumir — não apenas a partir das disposições normativas constitucionais, mas também em razão dos usos que delas são feitos —, as práticas e convenções constitucionais constituem elementos relevantes para a análise do funcionamento de cada modelo. Nesse ponto, a experiência comparada revela a importância dos primeiros anos de vigência de implementação de um novo sistema de governo na consolidação de suas características principais [4], o que também desperta a atenção sobre a importância do momento adequado para promoção de alterações como essas. Nesse sentido, questiona-se se estamos, no Brasil, em um momento adequado para a modificação do sistema de governo, considerado o contexto de sucessivas crises e de polarização política e social que se construiu.

Há, porém, outras preocupações que decorrem de peculiaridades da democracia brasileira e que se apresentam como desafios adicionais a uma possível empreitada semipresidencialista. À luz desses elementos, vislumbra-se ainda menores possibilidades de sucesso de uma mudança do sistema de governo no Brasil.

É o caso do federalismo, por exemplo. Diferentemente de França e Portugal, que se estruturam sob a forma de Estado unitário, o Brasil republicano sempre foi federalista, caracterizado pela divisão de competências entre entes federativos autônomos de níveis distintos. Ainda, a característica de se conferir autonomia federativa também aos municípios brasileiros — diferentemente do que ocorre em outras federações —, revela-se como outro fator que incrementa dificuldades adicionais, ao haver três níveis distintos de entes políticos autônomos.

Se adotado o semipresidencialismo no plano federal, exigir-se-ia que, em nome do sempre invocado princípio da simetria — cuja aplicação atual já foi questionada em outro trabalho [5] —, a mesma solução de um Executivo diárquico fosse replicada também no nível subnacional (estados, Distrito Federal e municípios)? Ou, ao contrário, facultar-se-ia a cada entidade a possibilidade de, mediante emendas às respectivas Constituições e Leis Orgânicas, adaptar o novo sistema ao seu funcionamento político [6], possibilitando a coexistência de regimes distintos Brasil afora?

De outro lado, o bicameralismo do Poder Legislativo brasileiro no âmbito federal também aportaria dificuldades incrementais. Ainda que se argumente que vige no Brasil um bicameralismo assimétrico [7], em que a Câmara dos Deputados assumiria um papel mais forte que o do Senado (especialmente pela posição privilegiada que aquele órgão assume na tramitação de projetos legislativos), há que se lembrar que o Senado Federal assume atribuições constitucionais relevantes, o que representaria dificuldades suplementares à empreitada semipresidencialista: a possibilidade de o presidente da República dissolver o parlamento abrangeria só a Câmara dos Deputados ou as duas Casas Legislativas? Ainda, a responsabilidade política do primeiro-ministro seria aferida também perante o Senado Federal ou apenas perante a Câmara dos Deputados?

Esses são fatores que poderiam, em verdade, gerar maiores impasses políticos do que incremento de estabilidade. Comparativamente, ressalva-se que, em outros modelos, Portugal adota um modelo legislativo unicameral e que a França possui um Senado com poderes muito menos significativos.

Ainda, sob o ponto de vista político-eleitoral, a hiperfragmentação partidária brasileira é outro desafio adicional. Se o sistema presidencialista apresenta ineficiências nesse ambiente, a implementação do semipresidencialismo não representaria solução a esses problemas, mas, antes, pressuporia a sua correção. É dizer: o êxito do modelo semipresidencialista depende de pré-requisitos cuja implementação já implicaria uma melhor performance do próprio presidencialismo, sem necessidade de modificação do sistema de governo.

Sob esse aspecto, seria mais exitoso que os esforços políticos, institucionais e acadêmicos fossem concentrados no aprimoramento das raízes das mazelas apontadas, no sentido de promover uma reforma político-eleitoral estrutural, que representasse, por exemplo, a diminuição efetiva do número de partidos políticos. Se o sucesso de uma alternativa semipresidencialista no Brasil parece exigir uma prévia reforma eleitoral-partidária, é melhor que, ao menos em um primeiro momento, se aprimore o presidencialismo brasileiro, que já colheria os benefícios institucionais dessas soluções.

Sabe-se que todos esses aspectos não são ignorados por aqueles que defendem a implementação do semipresidencialismo no Brasil. Mas é preciso chamar a atenção também para esses pontos específicos que podem dificultar ainda mais — ou mesmo impedir — a implementação exitosa de um novo sistema de governo no Brasil.

Em todo caso, certo é que o semipresidencialismo não é o remédio salvador para os males presidenciais brasileiros. Mudar por mudar não pode ser a solução. Aliás, é como alertava Tomasi de Lampedusa na voz de Tancredi Falconeri, personagem de seu romance "O leopardo": "Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude" [8].


[1] NOVAIS, Jorge Reis. Semipresidencialismo: teoria geral e sistema português. 2ª edição. Coimbra: Almedina, 2018, p. 19.

[2] Nesse sentido, veja-se a nota recentemente publicada em 22 de março de 20022 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) relativamente às preocupações com a instabilidade política no Peru e seus possíveis reflexos sobre a eficácia dos direitos humanos, ante aos debates para a abertura de um novo procedimento de vacância do cargo presidencial sob a alegação de incapacidade moral permanente do Presidente Pedro Castillo.

[4] NOVAIS, Jorge Reis. Semipresidencialismo: teoria geral e sistema português. 2ª edição. Coimbra: Almedina, 2018, p. 25-26.

[5] ARABI, Abhner Youssif Mota. Federalismo brasileiro: perspectivas descentralizadoras. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019.

[6] Essa, por exemplo, é a solução que consta do texto da Proposta de Emenda à Constituição apresentada em 2020 pelo Deputado Federal Samuel Moreira (art. 3º, § 3º).

[7] LLANOS, Mariana. El Bicameralismo en América Latina. In: Anuario del Derecho Constitucional Latinoamericano, vol. 3, n. 1, pp. 347-377, 2003.

[8] TOMASI DE LAMPEDUSA, Giuseppe. O Leopardo. Tradução de Maurício Santa Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 31.

Autores

  • é juiz auxiliar da Presidência do Supremo Tribunal Federal; coordenador do Centro de Mediação e Conciliação do STF; mestrando em "Direito, Estado e Constituição" pela Universidade de Brasília (UnB). Foi assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal (2014-2018). Autor de livros, capítulos de livro e artigos jurídicos.

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