Opinião

Arbitragem de criptomoedas e crime

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2 de maio de 2022, 9h21

Ao se abrir um manual dedicado às tipologias de lavagem de dinheiro, o leitor desavisado poderia mesmo se surpreender com a vasta gama de possibilidades de condutas ali descritas e que, teoricamente, poderiam   se enquadrar no que alguns entendem por lavagem de dinheiro. Sistemas  alternativos de remessas ao  exterior, contas ocultas ou sem clara identificação, triangulação de movimentações financeiras, novos meios de pagamento, por exemplo, seriam, assim, condutas que classicamente poderiam ser indicativas de lavagem de ativos. No entanto, são atividades quase que intrínsecas ao mundo lícito das criptomoedas.

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Talvez a conduta que mais chame a atenção, no entanto, venha a ser a conhecida arbitragem. Vista, sob tais lentes, como uma técnica complexa de lavagem, "consiste basicamente em promover um giro internacional de recursos e auferir lucro em razão da diferença das taxas, com o aproveitamento consciente ou inconsciente, em alguma das etapas, de recursos de origem ilegal" (1). No campo das criptomoedas, a situação é bem próxima, mas sob primados distintos.

Em primeiro lugar, é necessário recordar que as criptomoedas tem por princípio a descentralização. Não existe uma autoridade regente dos mercados, ainda que tanto se brade por certa regulação (2). Logo, nas múltiplas plataformas ao redor do mundo, existe uma variação de cotações eventualmente significativa. Ao efetuar um day trade, o investidor pode localizar quem estaria naquele momento oferecendo uma menor cotação para a compra e, ao depois, quem estaria comprando pelo valor mais alto (3). Como o mercado é altamente volátil, esse é um movimento que pode ser feito diversas vezes ao longo do dia, exponenciada tal realidade caso se utilizem robôs.

De pronto, duas dúvidas podem se mostrar presentes. A primeira, diz respeito ao fato dessa prática ser, em si, criminosa. A resposta, desde logo, seria no sentido negativa, apesar de poder gerar dúvidas. Considerando-se que o mundo cripto, e mesmo desde uma perspectiva penal brasileira, poderia ser entendido justamente através do trinômio penal econômico atinente, vale dizer, aos crimes de evasão de divisas, sonegação fiscal e lavagem de dinheiro, a primeira percepção é que, desde que tudo venha a se dar em ambiente virtual, vale dizer, sem conversão de criptomoedas em moedas soberanas, não haveria potencialmente nem evasão, nem sonegação. Tudo, enfim, ficaria em um ambiente virtual, o qual é dimensionalmente distinto de países ou jurisdições (4). Enfim, não se estaria a movimentar dinheiro em si, e, portanto, crime não se faria presente.

Por outro lado, é de se perceber que semelhante processo, a princípio, deixa, sim, marcas de assinatura, mesmo na blockchaim, podendo, no mais das vezes, e na maioria das criptomoedas, ser rastreada. Embora existam exceções a tal constatação, soa inegável que a lógica das criptomoedas é verdadeiramente tida por anônima, mas não necessariamente irrastreável. Certos eventos postos pela tecnologia, no entanto, distorcem semelhante afirmação.

Note-se que a tecnologia de robôs, a criação de meios de pagamento eletrônico com criptomoedas, por exemplo, seria meios significativos de se excepcionalizar tal regra. No entanto, a simples arbitragem de criptomoedas, ainda em um estágio anterior, já se mostrava como plenamente apta para dificultar qualquer possibilidade de rastreio, e, justamente, um nó górdio na construção de um ideal sistema de regulação de tais mercados (5).

No mercado financeiro tradicional, poder-se-ia pretender regulações simplesmente através do próprio mercado. Ocorre que, em termos criptos, a desregulação é ínsita ao sistema. O próprio aplicador, per se ou ao utilizar robôs, acaba automaticamente buscando os melhores mercados de compra e venda, efetuando dezenas de negociações em ritmo quase que automático. Como efeito paralelo, tem-se, por certo, que salta aos olhos uma enorme maior dificuldade de controle de possível lavagem de dinheiro. Mas, e essa é a indagação definitiva, seria essa uma mácula do sistema ou apenas a constatação de um salto na tecnologia?

Aqui, uma necessidade de desmantelamento de ilusões. Em primeiro lugar, existe, por evidente, certa ilusão de que os instrumentos que versam sobre a lavagem de dinheiro são peças definitivas na melhoria da vida do homem em sociedade. Podem, por óbvio, se mostrar importantes para mercados mais regulados, mas, como estes, devem se mostrar em   constante evolução. Ao simplesmente ignorar os giros evolutivos da humanidade, ficarão, tais peças, absolutamente defasadas com a realidade. Em segundo lugar, não se pode ideologicamente pretender criminalizar certas práticas de mercado, como a arbitragem. Isso, além de criar estigmas, pode, sim, desenhar um Direito Penal de autor, vertido ao campo econômico. Vale dizer, tais mercados seriam permitidos apenas a algumas pessoas, e a outras, não. Sendo tais considerações absolutamente reprováveis, seria de se dizer que o Direito, e o Direito Penal em particular, tem que se mostrar com suficiente imaginação para poder contornar as dificuldades da tecnologia, sem procurar, no entanto, ignorar os obstáculos por ela impostos.

Na virada do milênio, dizia-se dos desafios penais face à tecnologia. O pânico de alguns chegou a ser o bug do milênio. Tudo, no entanto, se mostrou   contornável. E contornáveis devem, sim, ser as dificuldades e aparentes entraves relativas às operações como as de arbitragem de criptomoedas (6).

Sempre com o respeito à lei e a uma insofismável lógica desse próprio mercado. O que é contrário a qualquer lógica e aceitabilidade é, no entanto, um movimento preambular e criminalizante de condutas envolvendo criptomoedas, tudo muito mais com base em intuições do que em lastro de realidade tecnológico, econômico ou, mesmo, penal. Fundamental a recordação, ao revés do que leitores afetos à política antilavagem de dinheiro podem supor, que arbitragem de criptomoedas se mostra, sim, algo como corriqueiro   e inerente ao mercado, cabendo, podendo e devendo haver, sim, regulações   nesse sentido (7).

E regulações que estabeleçam, dentro de lógica do mercado, o aceitável, o tolerável e o provável dentro da racionalidade própria de um mundo virtual. Esse, o fundamental.

Nunca, entretanto, de se imaginar que isso venha a implicar desde logo, em relação a uma conduta corriqueira, como, nessa sede é a arbitragem, em   atividade aprioristicamente criminosa qualquer.

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1 DALLAGNOL, Deltan Martinazzo. Tipologias de lavagem. In: DE CARLI, Carla Veríssimo (org.). Lavagem de dinheiro. Prevenção e controle penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013, p. 407.

NAJJARIAN, Ilene Patrícia de Noronha. O token fungível, infungível e a mobilização de riquezas. In: PINTO, Alexandre Evaristo; EROLES, Pedro; MOSQUERA, Roberto Quiroga (coord.). Criptoativos. Estudos regulatórios e tributários.
São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 96 e ss.

3 Cf., em especial, LECH, Tatiene Praxedes; SILVA, Fabio Pereira da. Tributação da renda da pessoa física e investimentos com criptoativos: as novas possibilidades do DeFi – Decentralized Finance. In: PINTO, Alexandre Evaristo; EROLES, Pedro; MOSQUERA, Roberto Quiroga (coord.). Criptoativos. Estudos regulatórios e tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 134 e ss.
 

4 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bitcoin e suas fronteiras penais: em busca do marco penal das criptomoedas. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 177 e ss.

5 Tenha-se em conta que "a controvérsia surge, contudo, quando tais operações, conforme mencionamos, são concretizadas por meio de uso de robôs que realizam centenas de operações simultaneamente. Isso porque, embora visem lucro no conjunto de operações, nada impede que parte delas resultem em perda de capital em desfavor do contribuinte. Desse cenário decorrem dois problemas que a legislação tributária não   prevê e a orientação da RFB é insuficiente: a impraticabilidade de   identificar as operações individualmente para concluir em quais delas houve ganho de capital e a existência de operações com prejuízo". LECH, Tatiene Praxedes; SILVA, Fabio Pereira da. Op. cit., p. 136.
6 Interessante constatar que "a era disruptiva tecnológica chegou e como resultado, que aos poucos se observa, é o progressivo surgimento de agentes inovadores dotados de potencial disruptivo, capazes de introduzir inovações e gerar aumento do bem-estar e circulação de riquezas". "Com o aumento de sistemas voltados para arranjos eletrônicos de pagamentos, conduzindo à aceitação de moedas digitais, ou melhor, ativos digitais privados diversos, criptografados ou não, como aptos a fornecer quitação aos contratos firmados, smart contracts, ou contratos convencionais consubstanciados nos 'hashs', firmados em redes sociais é, sem dúvida, deveras desafiador para órgãos de controle do Sistema Financeiro Nacional e requer cautela para a regulação adequada aos fins a que se destina, como observado com a devolução da negociação de contratos representativos de ouro comercializados em pregões eletrônicos da Bolsa de valores brasileira." NAJJARIAN, Ilene Patrícia de Noronha. Op. cit., p. 102 e ss.

7 Nesse sentido, novamente Lech e Silva ao informarem que "o momento é oportuno para uma avaliação mais detida por parte de nossos legisladores acerca das operações de arbitragem, de forma que sua regulamentação seja intensamente debatida visando, evidentemente,  que as manifestações de recusa tenham o devido tratamento tributário consoante o princípio de capacidade contributiva, mas que isso não seja feito de tal forma que torne o mercado impraticável ou incentive o descumprimento das obrigações tributárias por parte dos contribuintes.” LECH, Tatiene Praxedes; SILVA, Fabio Pereira da. Op. cit., p.140.

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