Interesse Público

Matriz de riscos dos contratos de parceria público-privada: alteração consensual

Autores

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

  • Marcos Antônio Rios da Nóbrega

    é conselheiro substituto do Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE-PE) professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) pós-doutor pela Harvard Law School e Kennedy School of Government — Harvard University pós-doutor pela Universidade de Direito de Lisboa (FDUL) bacharel mestre e doutor em Direito pela UFPE bacharel em Economia pela UFPE bacharel em Administração pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) visiting scholar na Harvard Law School senior fellow na Harvard Kennedy School of Government professor visitante na Universidade de Lisboa visiting scholar na Singapore Management University e conferencista.

  • Caio Mário Lana Cavalcanti

    é advogado especialista em Direito Administrativo (tendo recebido o Prêmio de Direito Administrativo Professor Júlio César dos Santos Esteves) em Direito Tributário e em Direito Processual pela PUC Minas em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) e em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (Idde) — conjuntamente com o Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Ius Gentium Conimbrigae) e com a Faculdade Arnaldo.

30 de junho de 2022, 8h03

1 – Introdução
Os contratos de parceria público-privada são concessões especiais caracterizadas entre outros aspectos pela busca de menor verticalidade [1] (o que a prática muitas vezes desmente) ao menos quando comparadas aos contratos administrativos clássicos —, de modo a incentivá-lo a pactuar com a Administração Pública que, não raras as vezes, não possui os recursos financeiros ou a expertise (técnica ou de gestão) necessários para realizar determinadas atividades.

Spacca
Um exemplo dentre essas características contratuais que pode, a depender do modo como é construída, gerar uma relação mais horizontalizada [2], é a repartição objetiva de riscos, materializada por cláusula contratual a ela relativa.

A grande questão em contratos de grande complexidade é determinar como esses riscos serão de fato abordados. Tal questão assume relevo sobremodo em projetos de infraestrutura organizados sob a forma de Project Finance e, mais especificamente, em projetos de parcerias público-privadas.

Alocar riscos, portanto, passa a ser um elemento crucial para o sucesso de determinado projeto. Evidentemente que quanto mais complexos forem os projetos ou mais específicos os ativos, mais submissão a diferentes riscos deverá ser considerada. Repartir esses riscos certamente demandará esforços econômicos, jurídicos e contábeis. De modo que, como sabemos, os projetos de grande porte envolverão, intrinsecamente, elevados custos de transação e comportamentos rent seeking.

Em síntese, ao analisarmos os riscos é preciso considerar a capacidade de administrar, evitar ou transferir. Há de se destacar o fato de que na alocação de riscos os envolvidos deverão realizar trade-offs.

Todavia, a despeito da relevância inclusive para a atratividade ou não da licitação, a alteração consensual pode se justificar, sobretudo considerando que as concessões especiais são materializadas por contratos administrativos de longa duração, pelo que sujeitas a mudanças contextuais inimagináveis quando da apresentação da proposta ou da elaboração do instrumento convocatório. Nessa toada, como bem coloca Marcus Abraham, ao refletir sobre contratos administrativos, "para contratos desse vulto e dessa duração, nem sempre é possível aplicar a teoria dos contratos com a mesma mentalidade de quem compra um bilhete de metrô ou uma revista no jornaleiro, mas que avenças dessa magnitude compreendem uma série de vicissitudes e um feixe de direitos e deveres que não se compactuam com formas tradicionais de entender os contratos" [3].

Pela maleabilidade da realidade, os contratos administrativos são dotados de mutabilidade [4][5]. Nessa toada, uma matriz de riscos pode não ter abordado dado risco, como também é possível cogitar de se alterar a matriz de forma a clarear a redação evitando dúvidas interpretativas. Mais que isso, havendo convergência e justificativa, é possível alterar o que fora estabelecido para além das hipóteses acima identificadas, dando novos contornos.

Reconhece-se que a alteração aparentemente, para alguns, se opõe à vinculação ao ato convocatório, mas mutações contratuais já são admitidas legalmente exatamente porque traduzem instrumentos de preservação do interesse público. Muda-se para se preservar.

O princípio da vinculação ao instrumento convocatório se presta, dentre outras várias razões, para garantir que não haja modificações despropositadas ou atuações arbitrárias ou escusas no curso do procedimento licitatório ou da execução contratual subsequente. Nessa toada, absolutamente, o mencionado princípio não sugere que os contratos administrativos são estanques, até porque a mutabilidade e a maleabilidade são também marcas desses ajustes.

A vinculação ao edital, pois, não é óbice intransponível para reinterpretar e adequar a matriz de riscos, quando essa reanálise seja necessária para a consecução do interesse coletivo, observado à luz da realidade vivida e das consequências práticas que a manutenção de uma matriz, que se revele inadequada com o passar dos anos. acarretará.

Destacam-se, nesse sentido, o realismo e o consequencialismo jurídicos [6] positivados pela Lei nº 13.655/18 que, ao incrementar a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, fincou que o Direito Público não pode ser avaliado em abstrato, mas de acordo com a vivência de um determinado contexto fático-temporal. Passa-se a ser necessário vislumbrar o ordenamento jurídico com os óculos daquele que vive e experiência a administração pública.

Nessa perspectiva, o princípio da vinculação ao instrumento convocatório, como tudo no Direito Administrativo, só faz sentido quando o norte é a salvaguarda do interesse público, pilar fundante daquele ramo da ciência jurídica [7]. Por isso, princípios e regras administrativas somente fazem sentido e se justificam quando direcionados àquele interesse, sendo despropositadas interpretações que, ao invés de concretizá-lo, o prejudica.

De toda sorte, é nesse contexto da imprevisibilidade dos contratos de longa duração, somadas à complexidade do objeto contratual das parcerias público-privadas, que Flávio Germano de Sena Teixeira Júnior, Marcos Nóbrega e Rodrigo Torres Pimenta Cabral asseveram, com razão, que a não ergodicidade se impõe a tais ajustes. Isso considerando que ergodicidade, por sua vez, "significa que as propriedades e a constituição do sistema (que pode ser, inclusive, um contrato público) geralmente não mudam ao longo do espaço e do tempo" [8][9].

Ou seja, considerando que o sistema que envolve os contratos de parceria público-privada — é dizer, a realidade vivida, o contexto experimentado — é dinâmico e maleável, em virtude de inúmeros fatores econômicos e ambientais, as PPPs, igualmente, devem ser dotadas das proporcionais dinamicidade e maleabilidade, e são. Nem se há falar que a demanda por mudanças é resultado de falta de zelo quando da fase interna pelo que a alteração premiaria o desleixo. Ainda que a fase interna tenha a colaboração de mentes privilegiadas, o futuro pode demonstrar desacertos.

A supracitada conclusão é construída a partir da relevante distinção entre risco e incerteza: o primeiro "seria aquilo ao qual seria possível imputar uma distribuição de probabilidade", enquanto a segunda é "imponderável, pelo que estabelecer uma distribuição de probabilidade soa desarrazoado" [10][11].

Que fique claro que não se está a admitir que a alteração decorra de decisão unilateralmente adotada pela Administração Pública — em uma espécie de nova cláusula exorbitante —, em detrimento da confiança legítima do contratado, depositada quando da celebração do contrato administrativo. Mudanças desse jaez hão de ser realizadas de maneira dialógica e concertada; jamais de maneira autoritária ou solipsista [12].

 


[1] Sobre o surgimento das PPP, FORTINI, Cristiana; PIRES, Priscila Giannetti Campos Pires. Equilíbrio Econômico-Financeiro nas Parcerias Público-Privadas. In Parcerias Público-Privadas, Reflexões sobre os 10 Anos da Lei 11.079/2004 (Org. FILHO, Marçal Justen e SCHWIND, Rafael Wallbach). São Paulo: RT, 2015, pp. 283/308.

[2] Importa frisar que os contratos de parceria público-privadas não são desprovidos da relação vertical entre parceiro público e parceiro privado. É dizer, a relação desigual, oriunda do princípio da superioridade do interesse público sobre o privado, ainda existe. Em contrapartida, tal verticalização é mitigada, tornando menos desiguais as partes, diretriz que em tese atrai o interesse do particular em contratar com a Administração Pública, antes adormecido face às cláusulas exorbitantes típicas dos contratos administrativos clássicos.

[3] ABRAHAM, Marcus. A teoria do adimplemento substancial no direito administrativo. Disponível em: https://www.editorajc.com.br/nao-e-este-o-nosso-anonimato/. Acesso em: 16/11/2021.

[4] Nesse sentido: TJ-MG, Apelação Cível 1.0672.10.029146-3/001, Rel. Desembargador BITENCOUR MARCONDES, 1ª CÂMARA CÍVEL, julgado em 7/11/2017.

[5] Conforme Flávio Amaral Garciaem sua tese de doutorado direcionada ao tema da mutabilidade dos contratos de concessão brasileiros: "o reconhecimento de que os contratos administrativos são mutáveis por natureza decorre da constatação empírica que as condições econômicas, financeiras, políticas, técnicas e sociais não são estáticas". Conferir: GARCIA, Flávio Amaral. A mutabilidade nos contratos de concessão no Brasil. Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, ramo do Direito Público, Julho de 2019, p. 43..

[6] Sobre a temática, conferir: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras. Comentários à Lei nº 13.655/2018. Lei da segurança para a inovação pública. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 32; SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo: o novo olhar da LINDB. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 44.

[7] Como adverte Pazzaglini Filho, a Administração Pública "tem por único propósito legal o atendimento ao interesse público". Conferir: PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal; legislação e jurisprudência atualizadas. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 31.

[8] TEIXEIRA JÚNIOR, Flávio Germano de Sena; NÓBREGA, Marcos; CABRAL, Rodrigo Torres Pimenta. Matriz de riscos e a ilusão da perenidade do passado: precisamos ressignificar o conceito de tempo nas contratações públicas. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 19, nº 74, p. 59-82, jul./set. 2021.

[9] Segundo Marcelo Mallet Siqueira Campos e Tulio Chiarini: o "axioma da ergodicidade impõe a condição de que o futuro é predeterminado por parâmetros existentes, consequentemente, o futuro pode ser previsto pela análise do passado e dados de mercados correntes para obter uma distribuição de probabilidade que possa gerir eventos futuros". Conferir: CAMPOS, Marcelo Mallet Siqueira; CHIARINI, Tulio. Incerteza e não ergodicidade: crítica aos neoclássicos. Revista de Economia Política, v. 34, nº 2 (135), p. 294 a 316, abril-junho/2014.

[10] LOUREIRO, Gustavo Kaercher; Nóbrega, Marcos. Equilíbrio econômico-financeiro de concessões à luz de um exame de caso: incompletude contratual, não ergodicidade e incerteza estratégica. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/wp-content/uploads/2020/11/Reequilbrio-Contratos-incompletude-e-na%CC%83o-ergocidade-GK-MN.pdf. Acesso em 26/11/2021.

[11] No mesmo sentido, Juliano Heinen: "No risco, há como estabelecer probabilidades, porque se detêm informações relevantes neste sentido. Na incerteza, não há informações sobre a ocorrência do evento ou sobre suas consequências". Conferir: HEINEN, Juliano. Riscos e incertezas nos contratos administrativos. Disponível em: http://www.novaleilicitacao.com.br/2020/06/04/riscos-e-incertezas-nos-contratos-administrativos/. Acesso em 26/11/2021.

[12] Nesse sentido: OLIVEIRA, Gustavo Justino; SCHWANKA, Cristiane. A administração consensual como a nova face da administração pública no séc. XXI: fundamentos dogmáticos, formas de expressão e instrumentos de ação. Revista de Direito do Estado, a. 3, nº 10, p. 276, abr./jun. 2008.

Autores

  • é advogada, visiting scholar pela George Washington University, doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em mediação, conciliação e arbitragem pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (IDDE), professora da graduação, mestrado e doutorado da UFMG, professora do mestrado da Faculdade Milton Campos, professora Visitante da Università di Pisa, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) e diretora regional do Ibeji.

  • é conselheiro substituto do Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE-PE), professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pós-doutor pela Harvard Law School e Kennedy School of Government — Harvard University, pós-doutor pela Universidade de Direito de Lisboa (FDUL), bacharel, mestre e doutor em Direito pela UFPE, bacharel em Economia pela UFPE, bacharel em Administração pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), visiting scholar na Harvard Law School, senior fellow na Harvard Kennedy School of Government, professor visitante na Universidade de Lisboa, visiting scholar na Singapore Management University e conferencista.

  • é advogado, especialista em Direito Administrativo (tendo recebido o Prêmio de Direito Administrativo Professor Júlio César dos Santos Esteves), em Direito Tributário e em Direito Processual pela PUC Minas, em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes (Ucam), e em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (IDDE) — conjuntamente com o Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Ius Gentium Conimbrigae – IGC) e com a Faculdade Arnaldo.

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