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A transação tributária na prática: é essencial ter cautela na sua adoção

Autor

  • Elidie Palma Bifano

    é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

29 de junho de 2022, 8h01

O instituto da transação tributária integra o Código Tributário Nacional (CTN), artigos 156, III, e 171, da Lei nº 5.172/66, contudo, até o ano de 2020 não havia sido objeto de regulação ampla, conquanto já adotado, a nosso ver, de forma recorrente em programas de financiamento de débitos fiscais, conhecidos sob a sigla Refis ou Pert, sejam eles federais, estaduais ou municipais. Nessas oportunidades, os programas de recuperação fiscal, no âmbito federal, objetivavam promover a regularização de créditos da União, decorrentes de débitos de pessoas jurídicas/físicas, relativos a tributos e contribuições, administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, constituídos ou não, inscritos ou não em dívida ativa, ajuizados ou a ajuizar, com exigibilidade suspensa ou não. As condições de adesão, como é próprio da transação, sempre foram impostas pelo Poder Público e as formas de financiamento, previamente definidas, sempre foram de opção do contribuinte.

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A despeito disso, durante muitos anos o tema da transação foi discutido em diversos foros, sob um possível enfoque constitucional de vedação, ao Poder Público, de dispor do crédito tributário, o que impediria qualquer acordo. De toda sorte, o CTN já o havia incluído como modalidade de extinção do crédito tributário, sem nunca essa determinação ter sido objeto de questionamento.

A Lei nº 13.988/20 deu concretude a essa determinação, no nível federal, dispondo de forma ampla sobre a transação tributária, observados os termos do CTN. Assim, foram definidas duas modalidades de transação: por adesão e individual, ambas por proposta. No caso da adesão, a proposta já está moldada pelo Poder Público, enquanto na individual caberá ao contribuinte apresentar os seus termos quando sua situação concreta não se ajustar à transação por adesão, podendo o contribuinte negociá-la. Por fim, a transação por adesão também abrange o contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica, assim entendida aquela que ultrapassa os interesses subjetivos da lide.

A Lei nº 13.988/20 foi alterada pela recente Lei nº 14.375/22, em diversas de suas disposições. É importante destacar que os contribuintes esperavam uma manifestação das autoridades fiscais sobre diversos aspectos duvidosos acerca da aplicação da Lei nº 13.988/20, especialmente depois da publicação do Edital de Transação Por Adesão (ETA) nº 9/22, pelo procurador-geral da Fazenda Nacional e pelo Secretário da Receita Federal do Brasil, regulando a transação por adesão no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica referente aos débitos de pessoas naturais ou jurídicas oriundos de amortização fiscal do ágio no regime jurídico anterior à Lei nº 12973/14.

A transação proposta nesse ETA enquadra-se na hipótese legal em que o interesse excede os limites subjetivos da lide, sendo que a negociação sobre a qual versa o ETA nº 9/22 diz respeito ao aproveitamento fiscal de despesas de amortização de ágio decorrente de aquisição de participações societárias, limitada às operações de incorporação, fusão e cisão ocorridas até 31/12/2017, nos termos do artigo 65 da Lei nº 12.973/14.

A publicação do ETA nº 9/22 atraiu, de imediato, o interesse dos contribuintes, mas as dúvidas nascidas à luz de seu conteúdo têm ensejado receio quanto à sua aplicação, muito especialmente sobre quais seriam os débitos alcançados para inclusão obrigatória no programa de transação, isso porque o seu item 1.4 dispõe que a adesão à transação deverá abranger todos os débitos de que trata o item 1.3 (inscrição em dívida ativa, ação judicial, etc.) o que poderia ser entendido como "transacionada uma lide versando sobre amortização do ágio, todas as demais devem ser incluídas". Essa conclusão nos parece indevida, pois cada discussão é única, envolve fatos, circunstâncias e provas diferentes, o que torna impossível tal entendimento. Considerando-se que a adesão ao programa deve ocorrer até 29/7/2022 tornou-se essencial um esclarecimento das autoridades sobre o tema, o que ainda não foi feito.

Em 21/6/2022, entretanto, foi editada a Lei nº 14.375 que trouxe, em seu artigo 10, diversas alterações, tanto na Lei nº 13.988/22, como em outras normas. Dentre as inovações trazidas pela Lei nº 14.375/22 na Lei nº 13.988/20 insere-se a inclusão, na proposta individual de transação, dos créditos em contencioso administrativo. Essa medida nos parece de grande utilidade, pois pode reduzir o volume do contencioso, assim permitindo resolver, com alguma vantagem, pendengas que talvez não mais se justifiquem, para ambas as partes. Ainda, destacamos: (1) concessão de descontos em multas, juros e encargos legais relativos a créditos a serem transacionados que sejam classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, conforme critérios estabelecidos pela autoridade competente; (2) utilização de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), na apuração do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da CSLL, até o limite de 70% do saldo remanescente após a incidência de descontos, se houver; (3) possibilidade de uso de precatórios ou de direito creditório com sentença de valor transitada em julgado para amortização de dívida tributária principal, multa e juros; (4) incremento do valor máximo dos descontos a serem concedidos de 50% para 65% do valor total dos créditos objeto de transação e (5) não tributação dos descontos concedidos na base de cálculo do IRPJ, CSLL, PIS e Cofins.

Certamente que a expressa disposição no sentido da não tributação dos descontos concedidos no âmbito da transação é aspecto dos mais relevantes a ser comentado, isso porque tal questão vem sendo reiteradamente discutida no âmbito de programas de parcelamento anteriores e como não estava explícito, na transação, aparentava ser necessária disposição legal para assim permiti-lo. Também chama a atenção, na Lei nº 14.375/22, o fato de que tais vantagens somente são aplicáveis aos contribuintes que estão sob as disposições do Capítulo II, da Lei nº 13.988/20. Assim, é possível afirmar que nenhuma das vantagens das demais hipóteses de transação será, automaticamente, comunicada ao negócio jurídico que envolve litígios de grande repercussão. Tampouco se lhe aplicam os benefícios previstos na Lei nº 14375/22, como a utilização de prejuízos fiscais e base negativa da CSLL para liquidação de débitos fiscais transacionados e a utilização de precatórios ou direitos creditórios, nos termos acima. Com isso, as discussões judiciais que envolvem contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica, como é o caso do ETA nº 9/22, não dispõem de vantagens dessa natureza, a despeito de ser pressuposto expresso da Lei nº 13.988/20, a observância dos princípios constitucionais, dentre outros, da isonomia (artigo 1°, § 2º).

É interessante observar que a Lei nº 14.375/22 alterou, em seu artigo 14, a Lei nº 13.496/17, que instituiu o Pert, revogando seu artigo 11 e introduzindo artigo 11-A, para determinar que os descontos concedidos no âmbito do Pert não serão computados na apuração da base de cálculo do IRPJ, da CSLL e das contribuições devidas ao PIS e à Cofins, não se admitindo a restituição de quantias já pagas. Dessa forma se estendeu a não tributação do desconto a outras hipóteses de negociação que não as do Capítulo II, da Lei nº 13.988/20. Contudo, esse artigo 14 da Lei nº 14.375, que prevê a não tributação do desconto no Pert, foi vetado pelo presidente da República, em publicação oficial de 22/6/2022, sob o argumento de que "(…) a medida incorre em vício de inconstitucionalidade e contraria o interesse público, uma vez que, ao instituir o benefício fiscal, implicaria em renúncia de receita, em violação ao disposto no art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e no art. 14 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 — Lei de Responsabilidade Fiscal".

Equivocado o entendimento das autoridades, a nosso ver, pois no que tange ao PIS e à Cofins não se trata de renúncia de receita, mas simplesmente de base de cálculo das contribuições, visto que o desconto em dívida tributária não tem natureza contraprestacional, como determina a legislação aplicável: receita tributável pelas contribuições decorre do cumprimento da atividade social da entidade. Essa condição já foi reconhecida para eliminar a tributação do desconto pelo PIS e pela Cofins na hipótese de recuperação judicial (artigo 50-A, da Lei nº 11.101/05). É nosso entendimento que, a despeito do veto do presidente da República, seguem os contribuintes, com base nos princípios constitucionais aplicáveis, em condições de não oferecer à tributação pelo PIS e pela Cofins as verbas referidas a descontos obtidos em transações tributárias, quaisquer que sejam.

O não cômputo na apuração da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, no âmbito do Pert, envolve uma longa discussão anterior com o Fisco voltada ao registro de despesas e provisões e sua dedutibilidade que, ao final, parecem ajustar-se quando o contribuinte paga o tributo, dependendo do tributo ser dedutível ou não da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.

Apesar de a Lei nº 14.375/22 não ter se manifestado, expressamente, quanto à concessão desses benefícios para as disputas envolvendo contencioso de grande repercussão, a nosso ver, há argumentos jurídicos para afastar o ônus do PIS e da Cofins, nos termos comentados. Com isso, tal conclusão seria aplicável aos descontos concedidos no âmbito do ETA nº 9/22, tendo em vista que tal verba não se caracteriza como contrapartida da atividade social.

Por fim, as regras da Lei nº 13.988/20 e da Lei nº 14.375/22 se consubstanciam em diretrizes orientadoras do instituto da transação tributária no âmbito federal, o que vale dizer que quaisquer programas de adesão lançados, daqui para frente, deverão observar em sua elaboração as regras sob comentário. Do ponto de vista prático, os editais publicados referentes às propostas de transação, por adesão ou não, deverão seguir por esse rumo. No caso específico da transação de contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia, exclusivamente por adesão, por ora as regras não foram alteradas, devendo submeter-se às condições a serem estabelecidas nos respectivos editais. Por essa razão o contribuinte tem a obrigação de verificar se a proposta de transação resulta em vantagem.

No caso do ETA nº 9/22, que trata da transação envolvendo a amortização do ágio, nas circunstâncias que descreve, admite-se que o contribuinte liquide os débitos objeto da transação, sob modalidades diversas, mas em todas elas deve ser feito pagamento inicial equivalente a 5% do valor total do débito, em até cinco parcelas mensais e sucessivas, sendo que a primeira parcela deverá ser paga até o último dia útil do mês da adesão. O saldo remanescente poderá ser quitado conforme a modalidade escolhida pelo contribuinte. Um aspecto relevante nessa proposta é a possível redução do valor do principal do crédito tributário, autorizado pela Lei 13.988/20, que nunca constou do Refis ou do Pert, que previam, apenas, descontos para multas, juros e demais encargos.

Essas condições financeiras podem ser atraentes, considerando-se a situação de cada um, mas a análise do projeto financeiro, a nosso ver, depende do exame prévio das discussões que se travam sobre o tema nos tribunais judiciais e administrativos. Assim, questões sobre a amortização do ágio ainda são novas nos tribunais judiciais, mas o fato de os contribuintes se voltarem ao Judiciário nesse tipo de matéria, é um alento. A ausência de judicialização dos grandes temas tributários já vem sendo, há algum tempo, objeto de preocupação e discussão nos meios acadêmicos, visto que com isso não se logra obter precedentes dessa natureza, que deem segurança aos contribuintes, seguindo a matéria no domínio dos tribunais administrativos. Algumas razões são apontadas para isso, desde a dificuldade de tratar de matérias de fato, inclusive envolvendo contabilidade, no Judiciário, até os sucessivos Refis/Pert que vêm sendo concedidos ao longo do tempo (aproximadamente um a cada três anos) sempre muito atraentes para os contribuintes. A novidade é que nos últimos tempos alguns temas tributários chegaram ao Poder Judiciário, dentre eles a amortização do ágio incorrido na compra de participações societárias e este fato merece ser melhor analisado.

Em rápida verificação, até recentemente (inícios de 2022) tínhamos, no âmbito de jurisdição dos Tribunais Federais, diversas decisões sobre a matéria as quais, no cômputo final, ainda não mostra posição de vantagem prevalente para nenhuma das partes, mas seguem sendo discutidas. Assim, já foram julgados a favor dos contribuintes nas jurisdições [1] dos TRF-2, TRF-3, TRF-4 e TRF-5, os temas do ágio interno, do real adquirente da participação, da empresa-veículo na aquisição e da ausência de desembolso de recursos na capitalização em bens/ações. De outro lado, nas jurisdições dos TRF-1, TRF-3 e TRF-4 temos notícias de decisões desfavoráveis para os contribuintes versando sobre fundamentos dos laudos de avaliação, empresa — veículo e real adquirente.

No que concerne aos tribunais administrativos, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), após a alteração da Lei nº 10.522/02, artigo 19-E, que admitiu que em situação de empate, em julgamento administrativo, se decida a favor do contribuinte, tivemos resultados favoráveis ao contribuinte em matéria de amortização de ágio voltadas ao afastamento da multa qualificada, bem como em relação à tese do real adquirente, por parte da Câmara Superior de Recursos Fiscais.

Considerando-se a possibilidade de transacionar em matéria de amortização de ágio, a atual situação descrita nos órgãos de julgamento deve ser analisada sob dois aspectos: o tema envolvido e a tendência até agora observada nos tribunais. É certo que todas essas decisões devem ser vistas com cuidado, pois cada uma delas envolve fatos e circunstâncias diferentes que orientam os julgados e que podem ser diversas das situações de outros contribuintes. Uma coisa é certa, a possibilidade de transacionar em matéria de ágio amortizado somente nasceu depois que se abriram perspectivas de ganho no Judiciário e no Carf, logo, transacionar quando o contribuinte entende que tem um bom direito, e as correspondentes provas, pode não ser a melhor solução, inclusive porque os benefícios financeiros podem não ser tão bons.

 


[1] A maioria em primeira instância.

Autores

  • é advogada em São Paulo, mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP e professora no Curso de Mestrado Profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS.

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