Direito Digital

Sistemas de assinatura eletrônica: possíveis lições do direito comparado

Autor

  • Maria Gabriela Grings

    é mestre e doutora em Direito processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) coordenadora do Legal Grounds Institute e advogada.

29 de junho de 2022, 13h11

Como ocorre em diversas searas, o direito procura adaptar-se ao novo ambiente digital buscando não abrir mão de seus dogmas e preceitos centrais, esculpidos ao longo de séculos e voltados para oferta de previsibilidade, certeza e confiabilidade na prática de atos jurídicos lato sensu. A incorporação da assinatura eletrônica como meio válido de manifestação da vontade exemplifica esse fenômeno, mas não sem trazer consigo algumas dúvidas e inseguranças, como costuma ocorrer em se tratando do acolhimento de novas tecnologias pelo direito. Nesse cenário, a comparação com as soluções adotadas por outros ordenamentos jurídicos pode lançar luzes importantes para o cenário nacional.

ConJur
O direito comunitário europeu há muito demonstra preocupação com os documentos virtuais, principalmente com os elementos que garantem a eficácia e a validade dos negócios jurídicos neles instrumentalizados. Nesse contexto, a assinatura eletrônica é elemento que se destaca. A primeira regulamentação em nível comunitário ocorreu com a Diretiva 1999/93/CE. O documento elaborado na virada do século antevia a importância crescente dos meios digitais e a necessidade de autenticação de dados e de uniformização da legislação dos Estados-Membros sobre o tema. O enfoque estava no desenvolvimento do incipiente mercado interno de circulação de bens e serviços via comércio eletrônico.

Havia preocupação com a interoperabilidade dos produtos associados às assinaturas eletrônicas e com a sua confiabilidade, que não se restringia ao âmbito do fomento ao comércio interno. A modalidade de assinatura eletrônica baseada em certos requisitos básicos, como a associação inequívoca ao signatário, permitindo a sua identificação, criada por mecanismos que permitam o seu controle exclusivo e a detecção de alterações de seus dados foi denominada de assinatura eletrônica avançada (artigo 2 (2)). Ainda que não houvesse menção direta à expressão assinatura eletrônica qualificada, ela já se fazia presente quando da diferenciação conceitual entre certificado eletrônico (artigo 2 (9)), voltado a garantir a existência de liame entre os dados de verificação da assinatura e a identidade do signatário e certificado qualificado (artigo 2 (10)), que deveria atender a diversos requisitos adicionais, entre eles, ser emitido por um prestador de serviços de certificação que deveria ser dotado de credibilidade para os serviços ofertados, e assegurar a verificação, via meios adequados, dos atributos de identidade da pessoa física ou jurídica para a qual o certificado seria emitido.

O avanço das transações eletrônicas, aliado ao objetivo de criação de um mercado único digital até 2015, com facilitação do uso de serviços eletrônicos, fez com que a normativa europeia fosse revista. O intuito era o de assegurar que os cidadãos pudessem valer-se de uma única identidade eletrônica, válida perante todos os Estados-Membros, o que ampliaria a oferta de serviços prestados em nível transfronteiriço, dependentes da existência de serviços de identificação com amplo reconhecimento estatal por todos os entes comunitários. O fortalecimento do sistema de assinatura eletrônica e dos seus mecanismos de confiabilidade tornou-se central para o alcance da meta proposta.

O Regulamento 910/2014/CE  conhecido como "Regulamento eIDAS", de electronic IDentification, Authentication and trust Services  foi editado pelo Parlamento e pelo Conselho Europeu buscando atualizar o quadro normativo europeu nessa seara. Foi introduzida nova modalidade de assinatura eletrônica, a qualificada, que se diferencia das anteriores já existentes por ser "uma assinatura eletrônica avançada criada por um dispositivo qualificado de criação de assinaturas eletrônicas e que se baseie num certificado qualificado de assinatura eletrônica" (artigo 3 (10)). Para ser adjetivada como qualificada, uma assinatura deve observar parâmetros próprios que recaem, com destaque, sobre o prestador do serviço de certificação e os meios técnicos por eles empregados, descritos de maneira pormenorizada nos Anexos I e II do Regulamento.

Para assegurar o nível de confiabilidade das assinaturas eletrônicas, foi instituído que cada Estado-Membro deveria designar uma autoridade supervisora responsável pela regulação da matéria em sua jurisdição. Novamente foi estabelecida distinção com relação à assinatura qualificada: todos aqueles que prestam essa modalidade de serviço seriam submetidos a um escrutínio mais intenso, via relatórios e avaliações de conformidade (Considerando 43), enquanto "os prestadores não qualificados de serviços de confiança deverão ser sujeitos a uma supervisão ligeira e reativa realizada, a posteriori e justificada pela natureza dos seus serviços e operações" (Considerando 36).

A fim de dirimir quaisquer dúvidas sobre a natureza diferenciada da assinatura eletrônica qualificada e o seu grau hierárquico superior, em comparação com as espécies simples e avançada, foi expresso textualmente que ela possui efeitos legais equivalentes à assinatura manuscrita e que os Estados-Membros não podem alterar a equiparação realizada em nível comunitário (Considerando 49).

A maior confiabilidade da assinatura eletrônica qualificada e o seu uso exclusivo para atos jurídicos envolvendo bens com maior grau de proteção jurídica é extraído de diversas experiências de direito comparado. No Acordo de Comércio e Cooperação firmado entre a União Europeia, a Comunidade Europeia de Energia Atômica, o Reino Unido e a Irlanda do Norte, firmado em 2020 após a saída do Reino Unido da União Europeia, foi estabelecida a liberdade de celebração de contratos eletrônicos, sendo impossibilitada, como regra geral, a criação de obstáculos na validação ou geração de efeitos jurídicos dos negócios jurídicos eletrônicos. Todavia, foram estabelecidas exceções, entre elas a prestação de serviços notariais e equivalentes e contratos que impliquem na transferência de imóveis, entre outros. Foi estabelecido que as Partes do acordo podem solicitar que métodos de autenticação devam ser certificados por autoridade certificadora, ou seja, com uso exclusivo de assinatura qualificada.

O posicionamento presente no direito comunitário europeu encontra-se refletido na legislação de diversos Estados-Membros, que tendo como base a normativa editada pelo Parlamento podem especificar para quais atos jurídicos cada espécie de assinatura eletrônica será admitida. Como regra geral, transações imobiliárias somente podem empregar assinatura qualificada, parâmetro adotado explicitamente, por exemplo, na Itália e na Bulgária (nesta como regra geral) e também na Escócia, externa à zona do euro.

A opção adotada pela Europa continental é verificada em ordenamentos variados. No ano 2000, o Parlamento indiano aprovou o "Ato de Tecnologia da Informação", prevendo o uso de assinaturas eletrônicas para diversas operações, com ressalva para atos de disposição testamentária e contratos de transmissão de propriedade imóvel (artigo 1 (4)). A África do Sul reconhece a validade e a eficácia das assinaturas eletrônicas desde 2002, mas excepciona seu uso para alguns atos, como arrendamentos de longo prazo de bens imóveis e contratos de compra e venda imobiliários (artigo 4(4)). A China possui normativa similar, de 2004, impedindo o uso de assinaturas eletrônicas avançadas para declarações envolvendo status pessoais, transferência de direitos e interesses concernentes a direitos reais, além de outras hipóteses envolvendo serviços de utilidade pública (artigo 3).

Com a edição da Lei nº 14.063/2020, conhecida como "Lei das Assinaturas Eletrônicas", o Brasil adotou as três modalidades de assinatura já previstas no continente europeu, indicando como qualificada a assinatura emitida via certificado digital, de acordo com as diretrizes da Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira  ICP-Brasil, definidas na Medida Provisória nº 2.200-2 de 2001, consolidada e amplamente utilizada em negócios jurídicos eletrônicos com sucesso, há mais de vinte anos no país. A racionalidade presente no direito comparado de adoção de critérios mais rigorosos para as operações jurídicas que tenham como objeto a transferência de imóveis foi seguida pelo legislador nacional no artigo 5º, §2º, IV.

Entretanto, a Medida Provisória nº 1.085/2021 busca alterar o cenário vigente, permitindo que sejam enviados dados e informações para os oficiais de registros públicos via assinatura eletrônica avançada "(…) que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento (…)" (artigo 4º, II, Lei nº. 14.063/2020). Altera-se, inclusive, a redação atual do artigo 17 da Lei de Registros Públicos para permitir essa espécie de assinatura para transações de registro imobiliário.

Há claro retrocesso na proteção jurídica conferida aos negócios jurídicos, especialmente aqueles em que, além da presença de agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável [1], são exigidos requisitos formais próprios, como a transferência imobiliária. A eficácia do ato decorre da apresentação do título translativo perante o oficial de registro de imóveis [2]. Tal como atualmente posto, o oficial será obrigado a conferir efeitos amplos ao título apresentado em que a vontade das partes foi materializada através de assinatura eletrônica elaborada fora do sistema de chaves públicas de certificação qualificada. As repercussões para os sujeitos do ato jurídico e para a sociedade em geral na hipótese de registro de ato defeituoso que exprime vontade viciada de um dos agentes é incomensurável.

O sistema de assinaturas eletrônicas é um avanço para as prestações de serviços e intercâmbio de bens e se apresenta como etapa natural do desenvolvimento do requisito da forma dos atos jurídicos. Contudo, não pode ser utilizado em detrimento da eficácia e da validade. A MP nº 1.085/2021 ao possibilitar que negócios jurídicos de importância ímpar como as transações imobiliárias possam ser firmados por mera assinatura avançada, dispensando o sistema de certificação qualificado e todas as garantias a ele inerente, presente apenas na assinatura por chaves públicas via assinatura qualificada, retira a confiabilidade da adoção das assinaturas eletrônicas para esse tipo de operação, indo em sentido contrário à solução adotada por diversos outros países.


[1] Artigo 104, Código Civil.

[2] Artigo 1.245, Código Civil.

Autores

  • é mestre e doutora em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisadora do Instituto Legal Grounds e advogada.

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