Opinião

Aborto, política e justiça: moralismo, mimetismo e desinformação

Autor

  • Alberto Jorge Correia de Barros Lima

    é doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) professor de Direito Penal Direito Penal Constitucional e Criminologia da Graduação e do mestrado em Direito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) ex-juiz de Direito titular do 2º Tribunal do Júri de Maceió (TJ/AL) e juiz da 17ª Vara da Fazenda Estadual (TJ/AL).

29 de junho de 2022, 16h06

Confundindo políticas públicas com ortodoxias, identitarismos, intolerâncias e contando com a desinformação de parcela significativa da população, o debate sobre o aborto  um problema ético difícil  quase sempre resvala para a pior perspectiva: a hipócrita. Mais uma vez assistimos a discussão sobre o tema  agora em face do caso de Santa Catarina (que não pretendo discutir)  derrapar para manifestações raivosas, obtusas e de "cancelamento" (ficou comum no Brasil). Todavia, não pretendo analisar o caso específico, mas tão só a questão da necessidade de uma política efetiva e diferente para o abortamento consentido ou/e o praticado pela própria gestante (voluntário).  Evidencio, de logo, que o aborto necessário (para preservar a vida ou a saúde — ADPF 54 — da mulher) e o humanitário (decorrente de estupro) não carecem de qualquer autorização estatal.

Parto de sete constatações, pressupondo que sejam majoritariamente  consensuais. Primeira: a maioria de nós conhece pelo menos um caso de abortamento voluntário. Segunda: percebemos que o aborto no Brasil só traz consequências, de saúde e criminais, na esmagadora maioria dos casos, para a parcela da população mais pobre, se temos dinheiro, então vamos à Espanha pagamos o aborto e ponto final. Qualquer estudante de Direito Penal saberá, neste caso, que é impossível sanção penal, vez que a extraterritorialidade é condicionada a dupla punibilidade. Terceira: para as mulheres pobres sobram as parteiras, os balconistas de farmácia, sinequias uterinas, ablação do útero, lesões e mortes. Quarta: há pesquisas que atestam que milhares de mulheres fazem abortamento voluntário a cada ano no Brasil, embora eu nunca tenha dirigido, em quase trinta anos de magistratura, um só processo de abortamento consentido ou praticado pela gestante. Quinta: o DIU, dispositivo intrauterino, sem embargos das divergências, é abortivo, todavia permitido e usado no país. Sexta: prevalecendo a tese religiosa da existência de um Deus, o único autorizado a determinar o aborto, teríamos que proibir o abortamento necessário e o abortamento humanitário. Sétima: a Constituição não veda a descriminalização do abortamento voluntário, uma vez que a proteção a vida é taxativamente mencionada para brasileiros e estrangeiros. A nacionalidade tem como pressuposto a personalidade.

Excluindo as concepções religiosas, porquanto estamos em um Estado laico, o principal argumento daqueles que são contrários ao abortamento é o de que o feto, desde a fecundação, é um ser humano e, como matar um ser humano é errado, não é justo matar um feto humano. Quatro objeções, são colocadas a esse raciocínio pelos que defendem a possibilidade do aborto. A que enfrenta o argumento central, patrocinada pelo professor Peter Singer, vale-se da hipótese de que o feto não é, ainda, um ser humano, mas um ser humano em formação, principalmente porque não é dotado de racionalidade e autoconsciência. Assim, os sérios interesses de uma mulher  um ser humano pleno, autoconsciente e racional , devem sempre prevalecer sobre os interesses ainda rudimentares do feto.

As outras três objeções não se dirigem contra o argumento central. A primeira é uma argumentação feminista defendida por Judith Thomson a qual reconhece o embrião como um ser humano, entretanto afirma que isso não dá a ele o direito ao uso do corpo de terceiros, mesmo que, sem esse uso, venha a morrer. A segunda, parte do princípio de que o tema aborto não é da alçada da lei. Em uma sociedade democrática, heterogênea e plural, é preciso tolerar as concepções morais divergentes quando elas digam respeito à esfera privada de cada um. A lei não pode reger questões restritas ao âmbito do indivíduo e, assim, ficaria ao alvedrio da interessada a decisão de abortar.

A terceira e última argumentação toma por base, fundada em dados empíricos, uma assertiva que me parece incontestável: as leis que proíbem o abortamento, ao invés de o inibirem, aumentam sua prática. Ou seja, não há nada mais inútil do que se dizer contra ou favorável ao abortamento, a pergunta, na verdade, diz respeito ao fato de se saber se a criminalização/proibição é producente ou, ao contrário, contraproducente. Em um importante estudo na Stanford Law School, John Donohue e Steven Levitt (veja aqui) comprovam que, nos Estados americanos onde o aborto é proibido, há mais abortos que nos Estados americanos onde ele é permitido, o que coincide, inclusive, com a experiência alemã pós-lei permissiva do abortamento.

É comum o desespero das mulheres  principalmente daquelas economicamente desfavorecidas , que desejam fazer um aborto. A criminalização as leva à procura de aborteiros, clínicas clandestinas, remédios sem receita, não havendo, pois, apoio nem orientação do Estado. Os efeitos são desastrosos com sérias complicações para a saúde e, não raro, a morte da mulher. A resposta penal, na hipótese, é inadequada, nem inibe o comportamento tido por delituoso, muito menos reprime ou/e previne, mesmo porque os processos de aborto são raríssimos no seletivo Sistema de Justiça Criminal brasileiro.

Neste caso, vale a ponderação de Thomas Mathiesen, para quem a ineficiência preventiva da criminalização se constitui, no fundo, em um problema de comunicação. A punição seria um modo pelo qual o Estado tenta comunicar mensagens, especialmente para grupos vulneráveis no seio social. Esse método de comunicação seria, diz ele, muito tosco. A própria mensagem é de difícil transmissão, dada a incomensurabilidade da ação e da reação. Para Mathiesen, o que surpreende mais (aplica-se ao caso) não é o efeito mínimo da comunicação do castigo desejando obter a inibição do comportamento, mas a persistente crença política em tal meio de comunicação primário.

Parece que a melhor resposta é a legalização racional e responsável do abortamento voluntário, com limite temporal e a necessidade de autorização administrativa para abortar. A mulher que deseja o aborto deve, obrigatoriamente, consultar um médico, que lhe explicará os efeitos clínicos do procedimento e as consequências, presentes e futuras, para o seu corpo; um psicólogo, que lhe revelará os efeitos para sua psique; um assistente social, que poderá convencê-la, inclusive, a manter a gravidez, mostrando o caminho da família substituta. Ao cabo de um processo que prima pela assistência, é natural que muitas mulheres desistam de abortar, o que explica um maior número de abortos nos países que o proíbem. As que, ainda assim, insistem no aborto têm proteção à sua saúde e à sua vida com o procedimento médico-hospitalar seguro e abonado pelo Estado.

Essa formulação talvez concilie as correntes pró e contra, ao menos as não radicais, e realize na prática, finalmente, uma política pública que garanta, a um só tempo, a valorização da vida humana desde a concepção e os interesses mais caros da mulher.

Seria muito importante, neste momento, que os candidatos à presidência da República e ao parlamento federal discutissem o abortamento sob a perspectiva de propostas efetivamente dirigidas às políticas públicas voltadas ao atendimento das brasileiras. Quem sabe, assim, fosse mais fácil enfrentar o moralismo dos ortodoxos, o mimetismo identitário tupiniquim, a desinformação de grande parte da nossa população e a intolerância, qualquer que seja ela, neste tema.

Não creio, como o leitor já pôde perceber, que nenhuma pessoa  considerada por um observador razoável como normal — venha a ser favorável a que se mate, deliberadamente, um feto humano sem que haja interesses mais caros a serem preservados. Vale repetir a percepção de Jorge Luis Borges sobre o problema: "instintivamente considero-o um crime. Ao mesmo tempo sei que essa repulsa corresponde a minha geração. Acho que deve ser legalizado; a razão me diz que sim; o instinto, que não. Diz-se que o aborto destrói a possibilidade de um Shakespeare; também a de um Macbeth".

Autores

  • é doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor de Direito Penal, Direito Penal Constitucional e Criminologia da Graduação e do mestrado em Direito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), ex-juiz de Direito titular do 2º Tribunal do Júri de Maceió (TJ/AL) e juiz da 17ª Vara da Fazenda Estadual (TJ/AL).

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