Opinião

Democracia em perigo: lições da queda de Roe vs Wade

Autor

  • Ibraim Rocha

    é advogado procurador do Estado do Pará mestre em Processo Civil pela Universidade federal do Pará (UFPA) e doutor em Direitos Humanos e Meio Ambiente pela UFPA.

27 de junho de 2022, 6h32

Na Antiguidade clássica, o tema da Justiça sempre foi posto em discussão como um assunto que deveria ser colocado em praça pública, na ágora, como o fez exemplarmente Sócrates, apesar das limitações de substancia da sociedade grega, onde a discussão não devia ser deixada apenas aos doutos e filósofos, mas era legada a todos os cidadãos, sendo esta uma característica peculiar dos gregos, de pensar a ética como vinculada à ética da polis.

Pode-se reconhecer que existe uma certa unanimidade no  campo progressista que a legitimidade democrática do Direito se materializa, sem maiores sobressaltos, ao se  dar legitimidade ao processo de decisão judicial, como vinculativo de todos os cidadãos, pelo mecanismo dos precedentes, porém a recente revogação pela Suprema Corte estadunidense do precedente Roe vs Wade, acendeu o importante alerta de que é sempre necessário, ensinar e entender a substância do valor Justiça, pois nenhum procedimento ou instância sozinho explica o que é a Justiça, o direito somente se afirma como ciência se ajuda a construir a democracia substancialmente.

O centro do caso era de que o aborto deve ser permitido à mulher, por qualquer razão, até o momento em que o feto se transforme em "viável", ou seja, torne-se potencialmente capaz de viver fora do útero materno, sem ajuda artificial, o que ocorre por volta dos sete meses (28 semanas). Depois disso, somente está disponível se for necessário para proteger a saúde da mulher, como foi definido no caso Doe vs. Bolton. Na recente decisão, a corte não analisou argumentação sobre os limites, ou se os critérios adotados anteriormente eram inconsistentes, apenas argumentou que o tema não está previsto, ainda que indiretamente na constituição americana, portanto, não poderia permanecer, era um erro de premissa, mas afirma que a constituição deixa a questão para o povo americano, por meio legislativo dos estados ou talvez do Congresso.

Aliás, este tem sido o mote da Casa Branca, como pronunciou o presidente Joe Biden, em 24/6/2022, que pretende aprovar uma lei no Congresso, pra evitar os efeitos da negativos da decisão, pois a considera uma "fall" no processo democrático americano, consequência de uma quebra de balanceamento decorrente, na nomeação de três membros conservadores á Corte por um único presidente — Donald Trump — e que já tinha sido testada por 50 anos, mas que ela não era a palavra final, pois a palavra final era do povo americano.

Mas, afinal, como se explica a queda de um precedente tão festejado no mundo inteiro como exemplo de afirmação de um direito contra majoritário, num momento histórico em que este direito parecia consolidado na pratica civil como um direito fundamental da mulher? E ocorre sem nenhuma mudança brusca no sistema politico de uma nação de democracia sólida como a americana ?

Ora, a interpretação, como atividade do intelecto, não pode prescindir de um ponto de partida, que se reconhece aqui no texto da Constituição. E embora correta a premissa de que somente pelo trabalho interpretativo desse texto pode-se definir o conflito de interesses, a questão que emerge é se o Direito pode sozinho legitimar os seus silogismos?

A resposta é negativa, e, nesse sentido, usamos as lições de Cass R. Sunstein. encontradas na obra The Partial Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1994[1], de que a interpretação constitucional, inevitavelmente, requer o uso de princípios externos à Constituição, pois o desacordo sobre a Constituição é geralmente sobre a apropriada interpretação dos princípios. Pois leva ao reconhecimento da incapacidade das teorias interpretativas que vinculam a interpretação dos direitos fundamentais a partir, tão somente, do direito posto, porque a interpretação dos princípios não pode se bastar à letra da lei, mas deve considerar elementos da história, moral e ética, donde se origina o ordenamento jurídico, sem os quais não é possível realizar a interpretação jurídica, dando os exatos contornos do direito.

Sunstein começa a construir os elementos que devem nortear a interpretação da Constituição pelo conceito de neutralidade, donde emerge o dever de não concessão de privilégios a pessoas ou grupos particulares. Os direitos fundamentais têm origem em profundo processo de construção da democracia estadunidense, segundo as aspirações do povo que ratificou a Constituição e sua compreensão, deve acontecer a partir de princípios interpretativos que sempre são, inevitavelmente, produto de compromissos substantivos.

Sunstein tem declarada preocupação em afastar a ideia de que a interpretação da Constituição é somente função dos tribunais, pois também é do Poder Executivo, Legislativo e do povo, em geral. Daí coloca a origem mais profunda dos direitos fundamentais na ideia de democracia deliberativa como valor fundamental do constitucionalismo, que exige que o Estado demonstre sua imparcialidade, mesmo quando promove o interesse de algum grupo da sociedade, mediante razões que possam ser inteligíveis para diferentes pessoas, segundo diferentes premissas, impedindo que as leis promovam preferências injustificadas, por meio da deliberação e do debate,  promovendo valores públicos.

Segundo essa concepção, Sunstein vai afirmar que a interpretação constitucional, inevitavelmente, requer o uso de princípios externos à Constituição, pois não há interpretação sem princípios interpretativos e estes não podem ser encontrados na Constituição. Isso não significa o caos ou um abismo ou ainda que o direito seja simplesmente política, mas é necessário identificar e defender esses princípios externos.

Como o texto da Constituição não resolve os casos difíceis, é necessário que seus intérpretes procurem alguma outra coisa além das palavras para que possam realizar seu trabalho. Por isso a interpretação deve fundamentar-se em princípios externos ao texto da Constituição, princípios estes que têm de ser criados em vez de achados, pois a Constituição não contém um manual de instruções para a sua interpretação e, mesmo que tivesse, seriam necessários princípios para que fizessem sentido tais instruções.

Assim, uma característica central dos Princípios Substantivos é que sua escolha deve ser justificada em termos morais e políticos, porque não se pode defender um sistema de interpretação jurídica sem o suporte duma defesa substantiva. Isso não significa dizer que a linguagem constitucional não impõe limites, que a história é irrelevante, ou o significado repousa somente no intérprete, mas que princípios interpretativos são inevitáveis e eles vão além da semântica. Nestes termos, a ideia de que a compreensão original é (ou não) vinculante pode ser enquadrada como Princípio Substantivo, uma vez adotado o conceito de que as provisões constitucionais devem sempre ser lidas como promotoras do desenvolvimento do processo democrático, segundo argumentos substantivos e não históricos.

Dessa forma, para Sunstein, a base mais geral para a construção dos Princípios Substantivos necessários à interpretação tem origem no conceito geral de democracia deliberativa, proveniente da estrutura constitucional original estadunidense que foi aprofundada e fortalecida pelas reformas da Guerra Civil e New Deal, e garantias fundamentais, no século 20, como proteção do meio ambiente, direitos das mulheres, e deste se extraem os princípios substantivos da Deliberação Politica, Cidadania e Igualdade Política, necessários à correta interpretação do texto constitucional. Dada essa relevante característica histórica é que se deve reconhecer que há determinados direitos fundamentais que somente podem ser mais bem avaliados e construídos pelos processos de deliberação política, em vez do judiciário.

Os princípios substantivos da Deliberação Política, implica o reconhecimento de que os direitos não podem ser reflexos de interesses próprios de grupos privados bem organizados, ou simples vontade da maioria, o da Cidadania exige que o povo tenha segurança e independência do Estado, o que justifica, por exemplo, a eliminação de situações de pobreza mediante programas sociais, e , por fim, o princípio substantivo da Igualdade Política demanda condições mínimas para que todos possam exercer seus direitos políticos, que impõe garantir que ninguém seja privado do adequado acesso à direitos sociais, tendo dignidade para o exercício do status de cidadão.

Assim, segundo esses princípios substantivos, Cass Sunstein entende ser possível realizar a correta interpretação da Constituição estadunidense para a promoção dos direitos fundamentais, pelos agentes públicos, orientando a ação judicial no debate dos temas constitucionais e preservando a ação do Poder Executivo e Legislativo, como canais de deliberação política presentes na Constituição estadunidense.

Infelizmente nem todas as nações tiveram um profundo processo democrático na construção de suas constituições, mas essa leitura de Sunstein, revela como uma explicação teórica pode ser rapidamente desconstruída num caso concreto, se os que aplicam a Constituição não se esforçam para argumentar sobre os princípios externos que nortearam a interpretação, e que chegam aos centros de interpretação jurídica, como as Cortes Constitucionais, decorrentes de lesões no tecido democrático, pela eleição de radicais.

Logo, não se trata de limitar a atuação judicial a partir da observância obrigatória dos denominados Princípios Substantivos da Constituição, que devem, obrigatoriamente, ser considerados na interpretação dos direitos fundamentais, mas de entender que estes não devem substituir-se aos canais de debate político-democrático da sociedade, e que o fundamental neste processo é que o povo nunca deve abrir mão de entender e se envolver no exercício da democracia, pois ai a queda é inevitável, mesmo para democracias consolidadas.


[1] Não se cita as páginas da obra para permitir fluidez jornalistica

Autores

  • é advogado, procurador do Estado do Pará, mestre em Processo Civil pela Universidade federal do Pará (UFPA) e doutor em Direitos Humanos e Meio Ambiente pela UFPA.

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