Opinião

Repercussões penais da regularização do crédito tributário

Autor

  • Victor Siqueira Mendes de Nóvoa

    é advogado professor de Direito na Universidade da Amazônia (Unama) conselheiro estadual do Meio Ambiente no Estado do Pará (Coema/PA) mestrando em Direito Justiça e Desenvolvimento pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e especialista em Advocacia Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

25 de junho de 2022, 11h05

A Lei nº 8.137/90, que define os crimes contra ordem tributária, econômica e relações de consumo, apesar de já ter completado duas décadas de existência, ainda deixa algumas dúvidas aos profissionais que com ela operam, principalmente aqueles que não lidam diariamente com o Direito Penal, em especial nos casos em que rito processual penal não é respeitado e digamos "pega" os operadores da área de surpresa.

Recentemente em consulta a um colega Tributarista, que fora contratado por cliente já denunciado por suposta prática de crime tipificado no art. 1º da Lei 8.137/90, surgiram algumas dúvidas acerca das repercussões penais da regularização do crédito no âmbito tributário, que instigaram a escrita deste pequeno artigo.

Diante disso, faremos brevemente alguns apontamentos sobre: crédito tributário, parcelamento tributário e seus reflexos no direito penal, partindo do princípio da intervenção mínima do Direito Penal.

Inicialmente, recorrendo a doutrina, nas palavras do professor Cezar Roberto Bittencourt, o princípio da Intervenção Mínima do Direito Penal:

"Também conhecido como ultima ratio, orienta a limitação do poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanções ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização será inadequada e desnecessária. Se para o restabelecimento da ordem jurídica forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o direito penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade".

Crédito tributário
Sabemos que o crédito tributário consiste, não apenas no valor principal, mas também, este acrescido dos juros, da correção monetária e da multa. O desejo do Fisco é quanto à pretensão do pagamento do crédito tributário constituído em definitivo e devido, nada mais. Todavia, havendo o lançamento definitivo do crédito tributário, portanto exaurida a esfera administrativa, abre-se o caminho para denuncia do ministério público por crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90.

Nesse momento, o crédito tributário até então cobrado pelo Direito Administrativo Sancionador, passar a entrar na persecução penal.  Aqui cabe destacar que o Direito Penal em sua razão de ser procura proteger bens jurídicos, isto é, proteger direitos individuais, interesses e valores sociais estabelecidos pela Constituição, pela lei, cuja violação deve acarretar repressão severa por parte do Estado. Inclusive uma das funções da pena no Direito Penal, é a restauração do bem jurídico lesado, quando isso seja possível, no caso do crédito tributário, o bem jurídico seria para parte da doutrina a própria ordem jurídica, passível de restauração com o adimplemento da obrigação tributária.      

Pois bem, a realidade é que não há consenso sobre qual bem jurídico o direito penal visa tutelar nos crimes contra ordem tributária, mas este não é o tema do artigo, quem sabe em outra oportunidade, aqui o que se quer discutir é a persecução penal tributária,  a qual, no momento em que se interrompe a lesão ao erário configurada pela atitude fraudatória do contribuinte, abre-se a conjuntura para que aquele proceda à quitação de seu débito, premiando-o com a extinção da punibilidade na esfera criminal, todavia, o marco temporal para a extinção já mudou algumas vezes no ordenamento jurídico pátrio, ou seja, quase sempre se vive uma sensação de insegurança se essa extinção da punibilidade penal em matéria tributária pode se dar apenas antes ou também depois do recebimento da denúncia ofertada pelo parquet.

Na Lei nº 8.137/90, tal previsão era contemplada pelo seu artigo 14, revogado pela Lei nº 8.383/91, o qual abarcava os artigos 1º ao 3º. Restou à uma legislação própria do imposto de renda revigorar esta possibilidade de exclusão da punibilidade na esfera criminal, dispondo que, em seu artigo 34 que: "extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia".

Igualmente, a Lei nº 9.964/2000, a qual instituiu o Programa de Recuperação Fiscal, mais conhecido como Refis, estabeleceu em seu artigo 15, §3º, a extinção da punibilidade dos crimes distribuídos nos artigos 1º ao 3º da Lei nº 8.137/90, "quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento antes do recebimento da denúncia criminal".

Demais legislações acerca do tema como a Lei 11.941/2009 e a Lei 10.684/2003, da mesma forma, remetem aos dispositivos em destaque da Lei sobre Crimes contra a Ordem Tributária.

Parcelamento tributário
A adesão ao parcelamento tributário, inicialmente contemplada pelo artigo 151, VI, do Código Tributário Nacional, como uma das hipóteses da suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Recorremos a Paulo de Barros Carvalho, que associa-se à posição de que o parcelamento nada mais é do que uma espécie de moratória, por ser considerado como uma "dilação do intervalo de tempo estipulado para o implemento de uma prestação". Embora haja equivalência, é indispensável que lei específica, em regra que seja ordinária, a qual permita a concessão do parcelamento e que o crédito tributário já esteja previamente constituído à data da adesão do programa, isto é, além de do fato gerador ter ocorrido, deverá apresentar certeza e a liquidez do crédito tributário.

Limitando-se à seara da disciplina de Direito Penal Tributário, o parcelamento, cujo intuito seja de trancar a ação penal, seria viável após o lançamento tributário em definitivo, entretanto difere-se quanto à expectativa da extinção da punibilidade, visto que, a partir da edição da Lei n.10.684/2003, não haveria mais restrição à adesão do parcelamento em momento posterior ao recebimento da denúncia ofertada pelo Ministério Público. Isto posto, contanto que esteja formalizado o parcelamento, independente do momento processual, a pretensão punitiva estatal obrigatoriamente deverá ser suspensa e, pago o débito ao final do lapso concedido, a extinção da punibilidade do contribuinte será obrigatória.

Porém, a Lei 12.382/11, alterou a Lei nº 9.430/96 que dispunha sobre a legislação tributária federal, as contribuições para a seguridade social e o processo administrativo de consulta; nos trazendo em seu artigo 83, §2°, a previsão de que a suspensão da pretensão punitiva do Estado se dá, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal.

Alteração legislativa essa que gerou mais uma vez grande discussão, devido a velha controvérsia acerca da temática do marco temporal da extinção da punibilidade penal, nos crimes contra ordem tributária, retratando um estado de confusão interpretativo para a questão.

Jurisprudência e doutrina em matéria penal
Buscando solucionar a questão, o Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do HC 116.828/SP, DJ 13/08/2013 adotou a posição de que o pagamento do tributo, feito a qualquer tempo, extingue a punibilidade do crime tributário, bem como a concessão do parcelamento tributário, posto que o artigo 9º da Lei nº 10.684/2003 não foi revogado e continua em vigor.

Nesse sentido, o professor Hugo de Brito Machado defende que se a razão de ser da criminalização do não pagamento de tributo é compelir as pessoas ao pagamento, pagar o tributo com os acréscimos legais satisfaz plenamente os objetivos da lei, dessa forma, a extinção da punibilidade funcionaria até como estímulo ao pagamento e com consequência a restauração do bem jurídico que se queria proteger.

No cenário evidenciado, convém uma distinção entre a extinção e a suspensão da punibilidade; há extinção com o pagamento integral do débito, já a suspensão se dá ao aderir o parcelamento. Entretanto, esta suspensão somente perdurará enquanto o crédito do contribuinte for contemplado pelo programa aderido, conquanto, se tiver sua exclusão decretada, normalmente oriundo do inadimplemento de uma única parcela, a suspensão da pretensão punitiva do Estado não mais subsistirá.

À vista do que vem de ser exposto até aqui, é possível mencionar também que em 2004 o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do HC 81929-0, DJ 27/02/2004, já havia decidido que o pagamento do tributo, a qualquer tempo, ainda que após o recebimento da denúncia, extingue a punibilidade do crime tributário, e mais, artigo 9º da Lei nº 10.684/03, deve ser aplicado de forma retroativa, consoante previsto nos artigos 5º, XL, CF/88 e artigo 61, do Código de Processo Penal. Porém, diante de tal indefinição trazido pela alteração legislativa com a edição da Lei 12.382/11, se ficou na espera de outra decisão.

Seguindo essa direção, em julgamento do HC 362.478/SP e do RHC 98.508/SP, o Superior Tribunal de Justiça proferiu entendimento de que o pagamento a qualquer tempo extingue a punibilidade do crime tributário, isto é, garantida a finalidade principal da obrigação tributária, o pagamento e, por consequência, a extinção do crédito, não há o porquê da continuidade da tramitação de uma ação na esfera penal, uma vez que o bem jurídico tutelado já terá sido restaurado.

No mesmo sentido, é o que entende a 2º Câmara Criminal do Ministério Público Federal (MPF), nos seus enunciados 19 e 52, vejamos:

Enunciado nº 19 (nova redação)
Suspensa a pretensão punitiva dos crimes tributários, por força do parcelamento do débito, os autos de investigação correspondentes poderão ser arquivados na origem, sendo desarquivados na hipótese do §1º do artigo 83 da Lei nº 9.430/1996, acrescentado pela Lei nº 12.382/11.

Recomendação: As investigações atualmente em curso para acompanhamento dos parcelamentos de débitos tributários poderão ser arquivadas na forma da nova redação do Enunciado nº 19 da 2ª CCR.

Redação alterada na 89ª Sessão de Coordenação, de 10/11/2014

Enunciado nº 52
O pagamento integral do débito tributário extingue a punibilidade e autoriza o arquivamento da investigação e da ação penal pelo MPF.

Aprovado na 78ª Sessão de Coordenação, de 31/03/2014

Ressalta-se que as câmaras do MPF, não possuem efeitos vinculativos, haja vista a independência funcional de seus membros, todavia são orientações institucionais que via de regra são seguidas internamente e já apontam o caminho que a instituição entende sobre a temática.

Perda da primariedade penal
Por fim, uma última questão levantada em relação a repercussão em matéria penal, acerca da regularização do crédito tributário, foi quanto a uma questão simples aqueles que trabalham na área penal, mas nem tanto aos não tão habituados ao tema; a dúvida a respeito da perda da primariedade penal do réu, após o recebimento da denúncia por suposta prática de crime material contra ordem tributária.

Pois bem, em material penal não há o que se falar em perda de primariedade, enquanto o processo não findar, ou transitar em julgado, ninguém perde a primariedade apenas por responder um processo penal, é necessário haver condenação transitada em julgado, até que isso aconteça quem estiver respondendo continua sendo primário para todos os efeitos legais. É o que nos diz o artigo 63 do Código penal:

"Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no país ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior".

Conclusão
À luz das ponderações acima lançadas, percebemos que o entendimento da doutrina aqui trazida em consonância com o que entende o autor, assim como as mais recentes decisões do STF, STJ, além das orientações do Ministério Público Federal; o tema é entendido conforme o princípio da intervenção mínima do direito penal, ou seja, para o restabelecimento da ordem jurídica se forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais, portanto havendo o pagamento total do débito tributário, logo, garantida a obrigação tributária, não há o que se falar em prosseguimento da ação penal.

Referências
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 5ª ed., São Paulo: Malheiros, 1997;
BITENCOURT, Cézar Roberto; MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 2013;
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 6ª ed., São Paulo: Noeses, 2015;
LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Especial Comentada: volume único. 10º ed
 Salvador: Editora JusPODIVM, 2022
SCARNELLO, Tatiana. Direito Penal Tributário: Crimes contra Ordem Tributária na atual conjuntura da jurisprudência pátria. Meu Site Jurídico, São Paulo: Editora: JusPODIVM, 2017.

SEGUNDO, Hugo de Brito Machado. Crimes Contra a Ordem Tributária. 5ª ed., São Paulo:  Editora: Atlas, 2022.

Autores

  • é advogado, mestrando em Direito Penal Econômico pelo IDP, especialista em Advocacia Empresarial pela PUC-MG e aluno visitante da Escola de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (Portugal).

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