Opinião

O juiz, a dúvida e a presunção de inocência

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24 de junho de 2022, 18h03

Philip Zimbardo, psicólogo da Universidade de Stanford, realizou estudo notório sobre o fenômeno da disseminação do mau comportamento [1]. Colocou dois carros iguais em áreas diferentes (uma já com alta criminalidade  Bronx  e outra com baixa criminalidade  Palo Alto). O carro do Bronx logo foi vandalizado, enquanto o de Palo Alto manteve-se intacto. Contudo, o ponto chave do estudo ocorreu quando o psicólogo quebrou apenas uma janela do carro intacto. Após curto tempo, também este carro foi destruído.

Esse estudo, que inspirou a Teoria das Janelas Quebradas, indicou que sinais de falta de vigilância estatal induzem a má conduta, bem como mostrou que indícios de maus comportamentos levam outras pessoas a também comportarem-se mal.

Posteriormente, pesquisadores da Universidade de Groningen fizeram nova pesquisa explorando essa questão da disseminação da desordem [2]. Para tanto, espalhavam sinais de mau comportamento (lixo fora da lixeira, carrinhos de supermercado deixados no lugar errado, etc.) e observavam o comportamento dos transeuntes. O resultado confirmou o que se observou no experimento de Zimbardo, tendo os indivíduos não só imitado o mau comportamento como praticado outras violações.

No âmbito do Direito, a questão não é diferente. Nesse sentido, já em 1928, o Justice Louis Brandeis, ao julgar o caso United States V. Olmstead, fez a seguinte advertência: "Em um governo de lei, a existência do governo será posta em risco se falhar em observar estritamente os ditames legais (…) Crime é contagioso. Se o governo torna-se um violador das leis, ele incentiva a violação da lei, convidando cada homem a se tornar a sua própria lei, convida a anarquia" [3].

Assim, é dever do Estado dar o exemplo do cumprimento da ordem, sob pena de estimular a disseminação do descumprimento da Lei, o que vai contra, por óbvio, aos objetivos de qualquer Estado de Direito.

Temos que, no processo penal, um dos pontos em que mais falha o Estado no cumprimento de suas próprias regras é a observância do princípio da Presunção de Inocência.

O que se busca em um processo é um acertamento regrado de forma constitucional e convencional da verdade dos fatos. Ocorre nele a verificação de uma proposta acusatória de fatos passados de forma a responder se aquilo afirmado pelo órgão acusatório realmente tenha acontecido e seja apto a gerar os efeitos requeridos. Está-se diante de algo que não se sabe ao certo, uma afirmação a que se verificar, sendo assim, é possível afirmar que "todo processo gira em torno de uma dúvida" [4].

A partir daí, isso há de impor ao Julgador, em decorrência da Presunção de Inocência, que este "assuma uma posição de incredulidade constante diante da hipótese acusatória" [5], situação esta que exige do "Julgador a desconfiança e a não aderência a versão acusatória, consagrando a imparcialidade" [6]. Trata-se de posicionamento defendido, entre outros por Carnelutti já em obra de1950: "Dubita Fortiter deberia ser la divisa del juez, fosse lícito para frasear a Martin Lutero. La ley desconfía del juez que no ha dudado" [7].

Entendemos correta esta forma do julgador "entrar" no processo. Há de ser duvidando da proposta acusatória e exigindo prova lícita e robusta pois, só assim, seria possível superar a constitucional Presunção de Inocência, dar andamento ao feito e emitir uma decisão final.

Julgadores de Escol assim já se pronunciaram. Nas palavras de Amilton Bueno em carta a Perfecto Ibañez seria "dever constitucional do juiz ingressar no feito convencido da inocência do acusado: É um pre-juízo constitucional" [8].

Essa postura de não aderência automática à tese acusatória já reverberou no Supremo Tribunal, em acordão da lavra do vintenário ministro Gilmar Mendes, onde se afirmou: "Por imposição da presunção de inocência, o julgador deve adotar uma posição de desconfiança em relação a acusação. Somente se houver comprovação, além de qualquer dúvida razoável é que se autoriza o sancionamento" [9].

E, mais adiante, explica o óbvio: "Se houve aderência anterior do julgador à acusação, não há qualquer possibilidade de defesa efetiva" [10].

Mas, seria tão óbvio assim?

Se, realmente o fosse, por que tantos e tantos Julgadores espalhados pelo País estão a exercer a sagrada judicatura criminal com a odiosa presunção da culpa e quebrando as janelas do ordenamento?

Seriam pessoas que entraram em campo tão sensível tão somente pela "cultura do holerite"? Afinal, o que acontece com tantos e tantos que operam maquinalmente a justiça criminal? Que esquecem que o Direito é uma ciência Humana, voltada ao Humano e que necessita, portanto, de um mínimo de Humanidade/alteridade para exercê-lo.

Tornaghi, alertando os juízes no aspecto da decretação das prisões preventivas arriscou algumas hipóteses quanto a origem desse comportamento. Seriam estas: "O perigo do calo profissional; O perigo da precipitação, do açodamento e O perigo do exagero, levando o juiz a transformar suspeitas vagas em indícios veementes" [11].

O fato concreto, real, é que entre a realidade legislada e a realidade encontrada nas decisões judiciais criminais há um abismo, uma enorme diferença a demonstrar forte desamor ao Princípio da Legalidade Estrita e uma paixão pelo punitivíssimo. Recentissimamente, aqui no Conjur, André Ferrer também constatava tal questão: "Os anseios por uma defesa ancorada em um processo penal democrático patinam na ladeira escorregadia da prática jurídica" [12].

Esta situação não é do desconhecimento de ninguém. Teve o seu infeliz ponto culminante com a tenebrosa e mundialmente rechaçada "Lava Jato" e os ecos desta ainda encontram guarida no coração de muitos saudosistas do arbítrio.

Os arquétipos da inquisição, a genética de autoritarismo do CPP ainda rondam e assombram o exercício do "bom-senso" crucial e vital à magistratura criminal.

"Cultura do holerite", calo profissional, precipitação, exagero, falta de alteridade, sejam quais forem as lamentáveis razões que movem essa grande parcela do judiciário criminal em terras brasileiras a assim agir, a partir do momento em que estamos diante de uma constituição garantista e já balzaquiana, é mais que passada a hora deste poder da República superar os ciclos de indiferença e atraso à Constituição.

"É o Estado de Direito que viabiliza a preservação da prática democrática" [13]. E negar respeito à lei, ao regrado por esta, decretando-se prisão de ofício ou chancelando torturas e invasões à residência na audiência de custódia, por exemplo, não tem nada nem de democrático e muito menos de Estado de Direito.

Situações tantas deste jaez fazem ainda ecoar com atualidade a advertência do Justice Brandeis. Na medida em que o Poder Judiciário deixa de acatar a lei posta, partindo para a presunção de culpa x Presunção de Inocência, decretando prisões preventivas sem o contraditório prévio, desprezando a cadeia de custódia e admitindo a prova irrita, entre outras tantas situações, o que este poder faz é se destruir pelo fracasso em observar suas próprias leis e desrespeitar o próprio sentido de sua existência.

Não há conflito entre o bom senso e a Constituição Federal. Não há demérito ao Magistrado em cumprir a lei. Que a lei não se quebre e nem se dispense.


[1] KELLING, G.; WILSON, J. Broken windows: the police and neighborhood safety. The Atlantic, 1982. Disponível em: https://www.theatlantic.com/magazine/archive/1982/03/broken-windows/304465/. Acesso em: 20 de junho de 2021.

[2] KEIZER K.; LINDENBERG, S.; STEG, L. The spreading of disorder. Disponível em: https://science.sciencemag.org/content/322/5908/1681. Science 322, 2008. Acesso em: 20 de junho de 2022.

[3] ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Suprema Corte Americana. United States V. Olmstead, 277 US. 438.

[4] NÍEVA FENNOL, Jordi. La Duda en el Proceso Penal. Marcial Pons, 2013, p. 13.

[5] NARDELLI, Marcela in Crise no Processo Penal Contemporâneo, D'Plácido, 2018, p. 304.

[6] NIEVA FENNOL, Jordi. La Duda en processo Penal, Marcial Pons, 2013, p. 50.

[7] CARNELUTTI, Francesco. Cuestiones sobre el Proceso Penal, Libreria el Foro, 1994, p. 213-214.

[8] BUENO DE CARVALHO, Amilton. Eles, os juízes criminais vistos por nós, os juízes Criminais, Lumen Juris, 2011, p. 07.

[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 164.493, voto do ministro Gilmar Mendes.

[10]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 164.493, voto do ministro Gilmar Mendes.

[11] TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal, Saraiva, 1989, Tomo II, p. 10-11.

[12] FERRER, André. Prisão preventiva: um breve passeio pelos 80 anos no CPP. Revista Consultor Jurídico, aos 30 de maio de 2022, disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-30/andre-ferrer-breve-passeio-pelos-80-anos-cpp.

[13] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 95009-4, relator ministro Eros Grau.

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