Opinião

Criança não é mãe: aborto legal e o retrocesso institucionalizado de direitos

Autores

  • Henderson Fürst

    é doutor em Direito pela PUC-SP doutor e mestre em Bioética pelo Cusc professor de Direito Constitucional da PUC-Campinas professor de Bioética do Hiae presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP diretor da Sociedade Brasileira de Bioética e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

  • Eliane Almeida

    é doutoranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres Gênero e Feminismo (UFBA) mestre em Direito (UniRio) pesquisadora do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social (PPGD/UniRio) e do Countering the Backlash Reclaiming Gender Justice (UFBA).

  • Lara Ribeiro

    é bacharel e licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) graduanda em Direito na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) monitora da disciplina Políticas Públicas em Direitos Humanos (UniRio) integrante e pesquisadora dos grupos de extensão Feminismo Literário e Feminismo Interamericano na UniRio e integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social (GPDHTS-UniRio).

  • Lorenna Toscano

    é mestranda em Direito Constitucional (UFRN) especialista em Direito Constitucional (Uni-RN) advogada especialista no atendimento à mulher (OAB-RN) mediadora e integrante do Grupo de Estudos Estado Direito e Feminismos (Defem/UFRN) e de Direitos Humanos e Transformação Social (PPGD/UniRio).

  • Maria Inês Lopa

    é graduanda em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social (GPDHTS-UniRio).

23 de junho de 2022, 10h05

O aborto legal, permitido desde 1940, tornou-se objeto de polêmica no ano de 2020 com o caso de uma criança de 10 anos do estado do Espírito Santo que engravidou em decorrência de ter sido vítima de estupro praticado por um familiar. Optando por não dar continuidade àquela gestação, a criança precisou recorrer ao Judiciário para solicitar autorização para acessar ao serviço de aborto legal. Naquele caso, o Poder Judiciário autorizou a realização do procedimento, no entanto, grupos religiosos e apoiadores de ala política conservadora publicizaram a identidade da vítima e pressionaram a ela e sua família com manifestações na porta dos hospitais por onde a menina passou, com proferimento de ofensas como "assassina" [1].

O hospital designado para realizar o procedimento no estado capixaba se negou a prestar o serviço de abortamento, sob a justificativa de que o caso da menina não se enquadra nos critérios da recomendação técnica de 2012 do Ministério da Saúde [2], pois a gestação era superior a 22 semanas e quatro dias e o peso do produto da concepção, superior a 500 gramas. Importa enfatizar que se trata de recomendação, e não de critério clínico estabelecido por lei — aliás, não há qualquer limitação dada pela lei neste sentido.

Por intensa mobilização de ativistas, juristas e sociedade civil, houve autorização judicial e transferência para hospital de outro estado a fim de que o procedimento fosse realizado. A criança precisou viajar até Recife, capital do estado de Pernambuco, para efetivar seu direito de acesso ao serviço de abortamento — permitido no Brasil nas hipóteses de risco de vida à gestante, gravidez decorrente de estupro e casos de feto com anencefalia.

Em resposta a esse caso, no mesmo mês de agosto de 2020 o Ministério da Saúde expediu a Portaria nº 2.282 trazendo para o profissional de saúde a responsabilidade de notificar à autoridade policial caso a unidade hospitalar receba pedidos para realizar aborto no caso de gravidez decorrente de violação sexual. Frente às manifestações políticas e sociais, estrategicamente, o Ministério da Saúde, em setembro daquele ano, expediu uma nova portaria, de nº 2.561, revogando a anterior, mas mantendo o mesmo conteúdo inquisitório, e que está em vigor até os dias atuais.

Frente aos constantes ataques às hipóteses permissivas para o procedimento de aborto, o acesso à informação é medida que se impõe, posto que a busca pela efetivação dos direitos perpassa a necessidade de saber que tem direitos — em especial os constitucionalmente garantidos, como é o caso dos direitos reprodutivos. Atualmente no Brasil, a lista oficial do Ministério da Saúde indica que há 114 [3] hospitais habilitados para realizar o procedimento de abortamento. A desigualdade no acesso já é notória pela distribuição territorial das unidades hospitalares, em razão da centralidade no serviço no sudeste do país.

Outro ponto a se destacar é a própria inconsistência da lista disponibilizada pelo Ministério da Saúde. Isto porque, em 2019 o Artigo 19 elaborou um Mapa do Aborto Legal [4] em que verificou que grande parte daquelas instituições, ao serem contactadas, negavam fornecer o serviço de abortamento. Dando continuidade à pesquisa desenvolvida pelo Artigo 19, Almeida, Carneiro, Brito e Ruivo [5] analisaram o acesso à informação no período da pandemia de Covid-19 sobre aborto legal nos hospitais brasileiros habilitados para prestar o serviço de abortamento. As conclusões foram no sentido de apontar sérias violações aos direitos das mulheres, a exemplo do fato de que, quando contactados, somente 16,1% dos hospitais corresponderam às expectativas legais de acesso à informação sobre o procedimento de aborto legal no Brasil. Outro ponto destacado foi a qualidade do serviço, isto porque "(…) a postura dos profissionais que atendiam as chamadas foi classificada como não acolhedora, demonstrando muitos deles desconhecimento e receio em passar as informações quanto à realização do procedimento (…)" [6].

Também no período de pandemia de Covid-19, visando a manutenção da prestação do serviço de aborto legal, o Hospital das Clínicas de Uberlândia iniciou a implementação do chamado teleaborto — que consiste no acompanhamento do serviço de abortamento através do uso de tecnologias. A medida começou a ser efetivada em 2021 pelo Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas), vinculado à Universidade Federal de Uberlândia (UFU). A medida, no entanto, foi contestada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) realizada pela Rede Nacional em Defesa da Vida e da Família e Centro de Reestruturação para a Vida (Cervi), instituições estas com notoriedade na luta pró-vida e contrária à autonomia reprodutiva das pessoas gestantes.

O serviço de teleaborto, que tem potencialidade para facilitar o acesso ao serviço de abortamento e, assim, representar um avanço na pauta dos direitos reprodutivos, vem sofrendo uma série de ataques por órgãos públicos. A exemplo disso, em junho de 2022 o Ministério da Saúde elaborou um documento denominado Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento [7]. Tal documento corroborou expressamente os termos da Portaria nº 2.561/2020 do Ministério da Saúde, mantendo a orientação que confunde o ambiente hospitalar com o processo inquisitório inerente ao inquérito investigativo. Também defendeu uma visão concepcionista da origem da vida — inclusive se apropriando equivocadamente de diplomas legais brasileiros e Tratados Internacionais, posiciona-se contrário ao teleaborto e ao uso do termo "aborto legal", afirmando que não há aborto legal no Brasil, mas sim hipóteses sem aplicação da pena.

Essa cadeia de eventos que vem se desenvolvendo no Brasil, especialmente a partir de 2020, não aconteceu ao acaso. Dificultar o acesso ao serviço de abortamento é uma estratégia política institucionalizada e articulada e segue revitimizando mulheres e meninas que optam pela realização do aborto — mesmo nas hipóteses legais. A despeito disso, no último dia 20 de junho de 2022, por meio de uma reportagem veiculada pelos jornais The Intercept e Catarinas [8], o Brasil volta a ficar estarrecido com a violência institucionalizada perpetrada por uma juíza de direito contra uma criança de 11 anos que, após sofrer violência sexual, buscou no judiciário amparo para obter acesso ao serviço de aborto legal.

Semelhante ao caso da menina de dez anos do Espírito Santo, a violação do direito da menor teve início quando a unidade hospitalar se recusou a realizar o procedimento em decorrência do tempo gestacional (a menina estava grávida de 22 semanas e dois dias). Ainda que não haja nenhuma obrigatoriedade de se obter uma autorização judicial para realizar aborto nas hipóteses legais no Brasil, a negativa do hospital ocasionou a necessidade do ajuizamento do litígio. Em audiência, novamente essa criança foi violada, à medida que a juíza Joana Ribeiro Zimmer em 1º de junho determinou que a criança fosse mantida afastada do seu lar e seguisse em situação de abrigamento. Inicialmente com o objetivo de proteger a menina do seu agressor, porém, passado o período de risco, o abrigamento foi mantido, objetivando dificultar que a menina viesse a realizar o aborto. Durante a audiência, tanto a promotora de Justiça, quanto a Juíza de Direito, fizeram diversas perguntas violadoras ao direito reprodutivo da menina, a exemplo do referido trecho:

"A proposta feita pela juíza e pela promotora à criança no dia 9 de maio é que se mantenha a gravidez por mais 'uma ou duas semanas', para aumentar a chance de sobrevida do feto. 'Você suportaria ficar mais um pouquinho?', questiona a juíza. A promotora Alberton, lotada na 2ª Promotoria de Justiça do município de Tijucas, diz: 'A gente mantinha mais uma ou duas semanas apenas a tua barriga, porque, para ele ter a chance de sobreviver mais, ele precisa tomar os medicamentos para o pulmão se formar completamente'. Ela continua: 'Em vez de deixar ele morrer – porque já é um bebê, já é uma criança –, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia, o Brasil não tem, não vai dar medicamento para ele… Ele vai nascer chorando, não [inaudível] medicamento para ele morrer'…"

Impetrado Habeas Corpus, a menina foi autorizada a retornar ao seu lar e realizar o aborto. A juíza, por sua vez, foi promovida e transferida para uma vara em outra comarca. A violência institucional é conceituada como "a violência praticada por órgãos e agentes públicos que deveriam responder pelo cuidado, proteção e defesa dos cidadãos" [9]. Frente à flagrante violência reprodutiva institucionalizada e que reiteradamente vem revitimando mulheres e crianças, cabe o questionamento: a quem o direito socorre?


 

[1] REIS, Aparecido Francisco dos. Ideologia de gênero, religião e a política dos corpos: A disputa contemporânea pelo controle dos sentidos culturais. Research, Society and Development, Vargem Grande Paulista, v. 10, n. 16, p. 1-16, 2021.

[4] Artigo 19. Mapa Aborto Legal. 2019. Disponível em: https://mapaabortolegal.org . Acesso em: 22 jun. 2022.

[5] ALMEIDA, Eliane Vieira Lacerda; CARNEIRO, Lara Ribeiro Pereira; BRITO, Lorenna Medeiros Toscano de; RUIVO, Maria Inês Lopa. “Não posso passar essa informação”: o direito ao aborto legal no Brasil. X Congresso Virtual de Gestão, Educação e Promoção da Saúde, 2021. Disponível em: https://convibra.org/congresso/res/uploads/pdf/artigo_pdfHMETE006.08.2021_23.50.39.pdf. Acesso em: 22 jun. 2022.

[6] Idem, p. 12.

[7] Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento. 1. ed. rev. – Brasília : Ministério da Saúde, 2022.

[8] GUIMARÃES, Paula; LARA, Bruna de; DIAS, Tatiana. 'Suportaria ficar mais um pouquinho?'. The Intercept_ Brasil: 20 jun. 2022. Disponível em: https://theintercept.com/2022/06/20/video-juiza-sc-menina-11-anos-estupro-aborto/. Acesso em: 22 jun. 2022.

[9] LADEIA, Priscilla Soares; MOURAO, Tatiana Tscherbakowski; MELO, Elza Machado. O silêncio da violência institucional no Brasil. Revista Médica de Minas Gerais, Belo Horizonte, ano 2016, v. 26, ed. 8, p. 398-401, 2016. Disponível em: http://rmmg.org/artigo/detalhes/2186. Acesso em: 22 jun. 2022.

Autores

  • é presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP, diretor da Sociedade Brasileira de Bioética, doutor em Direito pela PUC-SP, doutor e mestre em Bioética pelo Cusc, professor de Bioética do Hospital Israelita Albert Einstein e professor de Direito Constitucional da PUC-Campinas e da ABDConst.

  • é doutoranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (UFBA), mestre em Direito (UniRio), pesquisadora do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social (PPGD/UniRio) e do Countering the Backlash, Reclaiming Gender Justice (UFBA).

  • é bacharel e licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), graduanda em Direito na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), monitora da disciplina Políticas Públicas em Direitos Humanos (UniRio), integrante e pesquisadora dos grupos de extensão Feminismo Literário e Feminismo Interamericano na UniRio e integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social (GPDHTS-UniRio).

  • é mestranda em Direito Constitucional (UFRN), especialista em Direito Constitucional (Uni-RN), advogada especialista no atendimento à mulher (OAB-RN), mediadora e integrante do Grupo de Estudos Estado, Direito e Feminismos (Defem/UFRN) e de Direitos Humanos e Transformação Social (PPGD/UniRio).

  • é graduanda em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social (GPDHTS-UniRio).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!