Opinião

Reconhecimento, endeusamento e o óbvio: observações sobre o HC nº 709.986/SP

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22 de junho de 2022, 13h04

O conhecimento humano intriga a todos, muito antes do ser humano se entender como o próprio produtor do conhecimento. Talvez um dos momentos mais emblemáticos da humanidade seja, justamente, quando Tales de Mileto olhou para o mar do Egeu e entendeu ser aquilo apenas água marítima, e não uma expressão das divindades politeístas da Grécia Antiga. Ao renunciar a Poseidon e admitir a si mesmo como o construtor daquele saber, iniciava-se ali a Filosofia, o grande ramo do saber humano, do qual saíram todos os demais, como a matemática, a Física, o Direito e tantos outros. 

É absolutamente fascinante pensar que uma constatação tão marcante à época seja hoje algo tão banal. Essa troca de percepções, das quais as constatações geniais se tornam tão óbvias que quase absolutas, atualmente permeiam o direito criminal quando se fala no tema de reconhecimento de pessoas, tal qual inscrito no artigo 226 do Código de Processo Penal.

Até outubro de 2020, o Brasil tratava o reconhecimento de pessoas como algo ant passant: reconhecido o sujeito, independente da forma, se validaria a prova para, até mesmo, condenar alguém pelos crimes considerados mais violentos do país — tais como roubo, latrocínio e homicídio doloso.

Tudo isso poderia ter ruído e uma nova realidade se transformado quando a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em sede do paradigmático HC nº 598.886/SC, firmou entendimento de que o reconhecimento de pessoas não era prova absoluta, servindo como um sopro maior de esperança a todos os operadores do Direito, especialmente a esses subscritores, envolvidos no drama de um reconhecimento de pessoas equivocado e causador dos mais severos males a uma humilde família da zona sul de São Paulo.

Isso porque, no dia 20 de agosto de 2020, nos chegou talvez a causa mais dramática possível, mediante a requisição de uma Defesa, em caráter pro bono, do copeiro Jonathan Santana Macedo. Esse modesto e discreto copeiro, residente no Jardim Cocaia, foi ilegalmente envolvido numa investigação destinada a desarticular um grupo criminoso praticante de violentos assaltos à residência e cargas, injustiça foi tamanha a mobilizar sua família, empregadores e amigos, protagonizando até mesmo protestos pelos moradores da região [1].

E talvez aqui seja justo reconhecer que os delitos patrimoniais sejam a forma mais clara de um criminalista se religar à realidade cruel do dia a dia da Justiça Criminal, pois de tão corriqueiro e apavorador em nossa sociedade, se tornou um local em que se aceita tudo em nome de uma dura condenação.

E ao promover essa religação, era cada vez mais perceptível como as mais horripilantes ilegalidades aconteciam contra Jonathan, seja por reconhecimentos totalmente ilegais, seja pelo aparecimento da sua foto no álbum de reconhecimento sem que nunca tivesse sido preso, seja pela origem das provas serem ilegais, e porque tudo gravitava em torno de um denunciante anônimo, depois descoberto como um Policial Militar investigado por possíveis vínculos com o crime organizado e denunciado à Corregedoria da Policia Militar pela sua namorada.

Tudo isso fez com que Jonathan fosse réu em mais de três processos criminais, ficando preso por mais de 580 dias, merecendo destaque a Ação Penal que recentemente o Superior Tribunal de Justiça veio a absolvê-lo — conforme o HC nº 709.986/SP.

Fosse isso tudo, seria apenas um caso comum, infelizmente. Um individuo morador da periferia da capital preso injustamente e solto por uma Corte Superior se tornou uma regra degradante do sistema de justiça criminal.

Infelizmente, o drama não era apenas do ora Paciente, e ele se alargou para a família, vez que a esposa, à época menor de idade, estava grávida, e por uma infelicidade do destino, seu filho recém-nascido — e até então saudável — foi acometido com uma grave bronquiolite e a maligna evolução da doença fez o infante ser acometido de diversas e graves paradas cardíacas, e por sua vez o levou para um permanente estado vegetativo.

Enquanto o drama familiar se prolongava numa tragédia onírica, Jonathan era ilegalmente mantido no cárcere, e quando os reclamos da Defesa foram levados ao Judiciário, o Ministério Público simplesmente afirmou que "se estivesse realmente preocupado com a sua esposa e filhos, deveria ter pensado neles antes de se envolver em problemas" [2].

Numa condição tétrica, na qual a acusação usava dos mais abjetos sofismas para manter um inocente na prisão, Jonathan se viu obrigado a aguardar e saber do sofrimento e desmantelamento de sua família pela fria e dura realidade de uma prisão brasileira, na qual, ainda, contraiu uma grave doença oftalmológica e por pouco não perdeu a visão de um de seus olhos.

Quanto mais a desgraça se proliferava na vida de Jonathan, mais cruel o Judiciário se apresentava. Nem mesmo a existência de um suposto vinculo do descoberto Policial Militar denunciante com o crime organizado na região foi suficiente para afastar a presunção sobre um jovem, que de preto e pobre tinha ao monte, mas de cidadão e digno tinha muito pouco.

Somente quando essa Defesa conseguiu levar ao Superior Tribunal de Justiça, sob relatoria do eminente ministro Rogério Schietti Cruz, um Habeas Corpus requerendo a soltura, teve o drama do Paciente ouvido e a liminar concedida para colocar fim a uma prisão que, de tão injusta, já era perpétua, degradante e cruel.

Se Aristóteles dizia que a família é a base da comunidade [3], o ministro Schietti, ciente da sua missão civilizatória, fez jus ao coro da defesa, porque ciente da ortodoxia constitucional a ser observada, preconizou a liberdade a qualquer anseio punitivista, o que não se replicou no Tribunal de Justiça de São Paulo, seja por meio do juízo singular ou da câmara criminal responsável.

Como se fossem os patronos de uma contrarreforma ao movimento civilizatório, tal qual os regimes totalitários do século 20, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve, em 22/3/2022, a condenação de Jonathan, majorando sua pena, sob alegação de que o mesmo Superior Tribunal de Justiça que reconheceu fragilidade nas provas condenatórias entendia que o reconhecimento seria uma mera recomendação legal [4].

Com todo o tato e dever argumentativo, essa posição anticivilizatória é idêntica à percepção sustentada pelos próceres dos regimes totalitários europeus, quando afirmavam serem eles a contrarrevolução a todo progresso inaugurado pelo Renascimento [5].

É absolutamente inadmissível que, em pleno 2022, quando o homem vai ao espaço por lazer, não consigamos sequer lançar um único entendimento de respeito aos direitos fundamentais como uma regra lógica.

Daí que o voto do ministro Schietti, quando julgado o writ que, definitivamente, colocou o Paciente em plena liberdade ao absolvê-lo da injusta imputação, foi milimétrico, preciso e necessita ser retomado, in verbis:

"O relato da defesa neste caso é ainda mais dramático, né? Porque evidencia uma situação de um jovem que foi preso, um jovem de 30 anos à época, que era casado com uma menina de 16 anos com quem teve um filho e por conta de tudo isso, ficou preso por um ano e cinco meses, se não me engano, sem a possibilidade sequer de acompanhar a família e prover o sustento da família. A esposa depende, inclusive, economicamente do acusado e chegou ao ponto por não estar mais habilitada economicamente a viajar 20 km para visitar o filho que estava internado no hospital, chegou ao ponto de o hospital comunicar à Vara da Infância sobre possível abandono da criança. Então, é de se perguntar quem vai restituir esse tempo que o réu perdeu? Que o Paciente perdeu ao lado do filho? Eu acho que enquanto o Estado brasileiro não for severamente cobrado e aqui, volto à mesma questão trazida no caso anterior, enquanto as agências estatais não mudarem radicalmente a sua maneira de lidar com o processo criminal, zelando cada autoridade  seja policial militar, civil, promotor de justiça, juiz, desembargador ou ministro  cada um não se ocupar do seu caso como um caso singular, continuaremos a ver pessoas sendo condenadas de modo absolutamente divorciado do que preconiza a lei [6].

A profunda reflexão feita pelo ministro Schietti demonstra o longo percurso ainda necessário a se percorrer para a concretização dos direitos individuais, notadamente em um aspecto tão simples, a priori, como é o reconhecimento.

Vale também resgatar a percepção do ministro Sebastião Reis Junior, quando alerta sobre a necessidade de se avançar sobre o dever do Estado em indenizar aqueles que, de forma injusta, sejam submetidos a digladiações humanas dessa natureza:

Eu só acrescentaria, na linha do que o ministro Rogério falou, que eu acho que o Estado só vai acordar também para esse fato na hora em que ele começar a sentir ser responsabilizado, inclusive financeiramente, desses abusos. Nós temos uma situação em que pessoas às vezes ficam um, dois, três anos presas de uma forma indevida e o Estado? Não acontece nada com o Estado. Eventualmente, quando há uma ação de ressarcimento, quando o Estado sofre alguma ação, o próprio judiciário passa, de uma certa forma, panos quentes e fixa uma indenização, muitas vezes, irrisória e insignificante, tendo em vista o que aquilo significou para a parte. Então, acho que nós temos que caminhar por esse caminho, ou seja, no sentido de responsabilizar de forma rigorosa o Estado e até mesmo os seus servidores por abusos dessa natureza [7].

As percepções da Sexta Turma devem ecoar como um forte aviso ao Judiciário brasileiro, porque as injustiças são atrozes e os detratores quase sempre passam incólumes, sendo, quando muito, um mero erro de interpretação.

É hora, então, de que as autoridades públicas deixem de ver esse mar chamado de reconhecimento como se fosse um Deus, e a ele servissem como devotos e fieis súditos. Em tempo da tecnologia, chega a ser surreal e deprimente imaginar que exploremos, quase que reiteradamente, a memória humana e não as mais diversas formas de tecnologias, como as telemáticas e oriundas da geolocalização, as quais são mais seguras e indenes da enorme subjetividade humana.

A decisão tomada pelo Superior Tribunal de Justiça no paradigmático HC nº 598.886/SC, com segurança, repercutiu na vida de infinitas pessoas, e inclusive na de Jonathan Santana Macedo, cuja concessão da ordem no HC nº 709.986/SP, permitiu a ele evitar que o mal da prisão fosse absoluto, e em alguma forma se remediasse, e que a sua família não fosse destruída pela ação truculenta e arcaica do Estado-juiz.

Tal como Tales de Mileto, o ministro Rogério Schietti Cruz e seus pares na Sexta Turma do STJ inauguraram uma nova era no Direito Brasileiro ao tratarem como natural e simplório aquilo que antes era objeto de adoração e devoção, demonstrando que o brilhantismo e a genialidade não advêm do miraculoso, mas sim de reconhecer o justo como algo incontestável e o absoluto como incrível.

E assim, que a justiça, e não o justiçamento, seja a regra maior do Direito.

Notas
[1] Os protestos foram documentados pelo veículo Ponte Jornalismo: << https://ponte.org/reconhecidos-por-foto-irmaos-negros-tem-alibis-ignorados-pela-policia-civil-e-pela-justica/>>.

[2] Manifestação ministerial de fls. 1.765/1.766, Ação Penal nº 1521472-32.2020.8.26.0050, em tramite perante a 20.ª Vara Criminal do Foro Central da Barra Funda, TJSP.

[3] ARISTÓTELES. A política. 1. ed. Coleção a obra-prima de cada autor (vol. 61). Tradução Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2018.

[4] TJSP, Apelação Criminal 1524532-13.2020.8.26.0050, relator: Euvaldo Chaib; 4ª Câmara de Direito Criminal; DJe.: 22/03/2022.

[5] HAYEK, Friedrich August Von. O caminho da servidão. 6. ed. Tradução Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises, 2010.

[6] 02:56:30 – 02:58:36 Sessão de Julgamento da Sexta Turma do STJ, 07 de junho de 2022. https://www.youtube.com/watch?v=X4DDpMDRMgg

[7] 03:05:34 – 03:06:34 Sessão de Julgamento da Sexta Turma do STJ, 07 de junho de 2022. https://www.youtube.com/watch?v=X4DDpMDRMgg

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