Opinião

Precisamos falar sobre o "consumidor.gov" e seu papel no acesso à Justiça

Autores

  • Guilherme Vinicius Justino Rodrigues

    é advogada mestrando em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDSP-USP) e especialista em Direito Processual Civil pela Ponticífia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

  • Igor Moraes Rocha

    é mestrando em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDSP-USP) graduado em Direito pela UFMG e advogado.

  • Luma Zaffarani

    é advogada e especialista em Direito Processual Civil pela Ponticífia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

21 de junho de 2022, 18h12

O uso da plataforma "consumidor.gov", como modelo de solução de disputa online, promete proporcionar agilidade na interação entre consumidor e fornecedor, diminuir custos, e, em especial, se o objeto do conflito for solucionado, fortalecer a imagem e reputação da empresa.

Apesar de todas essas promessas, os debates atuais sobre a plataforma relevam uma dualidade. Explica-se.

De um lado há quem defenda a possibilidade de condicionar o acesso ao Poder Judiciário a tentativa prévia de autocomposição por intermédio da plataforma "consumidor.gov" [1], e de outro lado, tem quem entenda pela impossibilidade de impor tal barreira com assente no fundamento de "limitação do acesso à Justiça" [2].

No meio disso, uma certeza: a utilização da plataforma como modo de lidar com os conflitos consumeristas tem influenciado a maneira como se dá o acesso à justiça no Brasil. Neste sentido, nota-se o surgimento de propostas que buscam ampliar a força da plataforma condicionando, por exemplo, a existência de interesse de agir com o acionamento prévio da plataforma.

Não obstante a controvérsia narrada, falar que o "consumidor.gov" é uma das mais importantes plataformas de solução de disputas dos últimos anos não é nenhuma novidade para qualquer pessoa acostumada a lidar com questões consumeristas e com litigiosidade repetitiva em geral.

Esse fato pode ser atestado com facilidade quando se analisa o histórico da plataforma desde a sua criação, havida 2014, e a sua evolução ao longo dos últimos anos.

A plataforma saltou de 216 empresas cadastradas em 2014, para 965 em 2020, além disso, no tocante às reclamações observa-se o mesmo fenômeno: foram 37.151 reclamações finalizadas em 2014 e mais de um milhão em 2020.

O crescimento da plataforma também traz consigo o aumento de sua importância enquanto parte do sistema de resolução de conflitos de forma que, a cada ano que passa, surgem mais iniciativas que buscam tornar o consumidor.gov um ponto focal para a gestão da litigiosidade consumerista no Brasil [3]. Não se pode deixar de lado que a popularização e a divulgação de dados de eficiência da plataforma municia os projetos de lei que, se aprovados, consagrarão o acesso e utilização da ferramenta com o nascimento do interesse de agir processual.

É o caso, por exemplo, do projeto de lei nº 533/2019 [4] que pretende positivar a necessidade evidenciar a resistência do réu, caracterizada pela busca anterior de conciliação. A combinação dos fatores acima expostos reforça a necessidade de analisar, com rigor científico, o impacto empírico da plataforma em temas como acesso à justiça, principalmente por sua necessidade inescapável.

Neste sentido, buscou-se, no presente artigo, realizar uma breve análise da base de dados da plataforma com o intuito de obter uma breve descrição sobre "quem" foi seu usuário típico, tendo por base as informações do ano de 2021, para em seguida, levantar questionamentos que podem servir de ponto de partida para futuras pesquisas.

Vale esclarecer ao leitor que este artigo, que representa uma singela parte da seara do desenvolvimento do pensamento crítico, não tem a pretensão de realizar uma análise da qualidade ou fidedignidade dos dados disponibilizados e não se propõe a realizar novas triangulações de dados com o intuito de apontar padrões dos usuários, tarefa essa que se pretende desenvolver em um projeto de maior complexidade metodológica.

Não obstante as limitações expostas, a partir dos dados disponibilizados é possível imprimir impressões, questionamentos e polêmicas que podem vir a ser melhor desenvolvidas no futuro.

O primeiro desses dados se refere a idade média dos usuários da plataforma que, assim como verificado nos relatórios dos anos anteriores, apontou a existência de uma prevalência de usuários com idade entre 21 e 40 anos, sendo 24% deles na casa entre 21 e 30 anos e 32% na casa entre os 31 e 40 anos.

Essa proporção se mostrou estável desde o ano de 2016 (primeiro ano de medição disponível) o que faz levar a crer que o público jovem é o que maisse utiliza desta plataforma.

Daí, então, alguns questionamentos sobressaem: a plataforma não seria amigável para usuários mais velhos? Existe uma barreira de acesso para este perfil sênior de consumidor? Ou, será, ainda, que tal dado é apenas um reflexo da atividade econômica x faixa etária?

As provocações são válidas e podem, por si só, dar base para trabalhos mais complexos que, levando em consideração dados de natureza qualitativa e quantitativa, em muito engrandeceriam a discussão sobre acesso à justiça digital no Brasil.

Um segundo achado interessante se refere ao perfil de gênero dos usuários ao longo dos anos. Nesse sentido, no ano de 2021, constatou-se que 56% dos usuários do sistema eram do sexo masculino, enquanto 44% do sexo feminino.

O ponto alto nessa análise é que, no período entre 2016 e 2019 houve uma estabilidade no perfil de gênero dos usuários, com homens representando entre 55% e 60% dos usuários e mulheres representando entre 40% e 45% dos usuários.

Entretanto, essa estabilidade foi interrompida no ano de 2020, quando os dados se inverteram e as mulheres passaram a representar 56% dos usuários e os homens 44%.

Em 2021, o perfil de gênero retomou a tendência de 2016 a 2019 e novamente se inverteu, o que pode levar a diversos questionamentos, inclusive aqueles relacionados à confiabilidade dos dados.

Fatores como os lockdowns de 2020 foram relevantes para essa anomalia nos dados? Os dados de 2020, per si, foram corretamente coletados pela equipe do consumidor.gov? Os dados de 2021 demonstrariam um retrocesso na participação feminina na plataforma? Caso a resposta seja positiva, há que se indagar as razões de tal acontecimento.

Um ponto curioso a ser destacado é que a base de dados não contém informações acerca da raça ou classe social dos usuários, informações essas que poderiam ser interessantíssimas para determinar com precisão o perfil completo de quem utiliza plataforma.

Os dados divulgados dão conta, ainda, de que 78% do público que acessa a ferramenta tem um desfecho classificado como "satisfatório", contudo, nos parece demasiadamente precoce analisar tal dado e, em um fechar de olhos para os demais indicadores, inferir e defender a extensão como condição para que o cidadão ingresse com uma demanda judicial.

Evidentemente que não se busca aqui estimular uma regressão ao infinito de questionamentos que poderiam tornar a plataforma inviável, mas, sim, fomentar a realização de pesquisas que possam engrandecer a plataforma e o conhecimento da faceta cientifica do instituto da litigância repetitiva na seara consumerista.

O que se defende, isto sim de olhos fechados, é o importante papel da comunidade jurídica de se voltar a estes debates antes de qualquer alteração legislativa, até para que tal movimento, se entendido como necessário, encontre evidências empíricas.

Referências
BRASIL. Ministério da Justiça e da Segurança Público. Consumidor em números. Brasília, DF, 2020.
BRASIL. Ministério da Justiça e da Segurança Público. Portal Brasileiro de dados abertos. Brasília, DF. Disponível em: https://dados.gov.br/dataset/reclamacoes-do-consumidor-gov-br1
COSTA, Susana; FRANCISCO, João. Acesso à Justiça e a obrigatoriedade da utilização dos mecanismos de Online Dispute Resolution: um estudo da plataforma consumidor.gov. In: LUCON, Paulo et al. Direito, Processo e Tecnologia. Ed. 2020. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.
GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Releitura do princípio do acesso à Justiça em tempos de pandemia. Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 21, n,º 55, p. 51-62, jul.-set./2020.


[1] Referimo-nos à possibilidade de se condicionar o acesso à Justiça ao requerimento prévio ou, como leciona o professor Gajardoni: "a releitura do princípio do acesso à Justiça, com exigência de prévio requerimento extrajudicial como condição para a postulação em juízo, pressupõe um grau de eficiência mínima da instância administrativa. Tanto a administração pública quanto as empresas privadas devem conceber meios eficientes e julgamentos pautados nas reais expectativas jurídicas das partes, solucionando as questões favoravelmente ao demandante todas as vezes que puder identificar que este possui significativas chances de ter seu pedido acolhido caso, no futuro, valha-se do Judiciário" (GAJARDONI, Fernando da Fonseca, 2020).

[2] A professora Susana Henriques Costa e o professor João Francisco chamaram atenção para essa preocupação: A obrigatoriedade generalizada da comprovação da realização do prévio requerimento administrativo, por outro lado, é medida à redução de acervo que tende a se tornar mais um obstáculo para a concretização dos direitos do cidadão (COSTA, FRANCISCO, 2020, p. 667).

[3] O Decreto 10.197/2020 estabelece o Consumidor.gov.br como plataforma oficial da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional para a autocomposição nas controvérsias em relações de consumo.

[4] Projeto de Lei 533/2019 que acrescente ao artigo 17 ao CPC (Parágrafo único: Em caso de direitos patrimoniais disponíveis, para haver interesse processual é necessário ficar evidenciada a resistência do réu em satisfazer a pretensão do autor) e parágrafo ao artigo 461 (§3º Na definição da extensão da obrigação, o juiz levará em consideração a efetiva resistência do réu em satisfazer a pretensão do autor, inclusive, no caso de direitos patrimoniais disponíveis, se o autor, por qualquer meio, buscou a conciliação antes de iniciar o processo judicial).

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