Opinião

Fragilidade do sistema de controle interno nos municípios

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20 de junho de 2022, 15h07

No último dia 29 de maio foi realizado o concurso público de provas da Câmara Municipal de Sorocaba, no interior de São Paulo [1].

Ao término da prova, já era possível visualizar no rosto dos candidatos a frustração com o tipo de avaliação aplicada.

E não era demais. No último dia 6 de junho, a Câmara de Vereadores decidiu suspender oficialmente o certame em virtude de denúncias recebidas por repetição de questões aplicadas em outros concursos ao redor do país [2].

Supostas irregularidades, como se tem observação, são muito mais prosaicas em processos seletivos municipais do que nos estaduais e nos federais.

Nada obstante, tais anormalidades demonstram apenas uma das facetas dos problemas encontrados no âmbito dos municípios: a fragilidade do seu sistema de controle interno.

Destarte, de há muito temos sustentado que o sistema de controle interno deve ser integrado por servidores investidos através de concurso público de provas e títulos, nos termos do artigo 37, inciso II, da Constituição.

Nesse diapasão, conforme já salientou o saudoso administrativista Hely, o concurso público é [3]:

"O meio técnico posto à disposição da Administração Pública para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, fixados de acordo com a natureza e complexidade do cargo ou emprego, consoante determina o artigo 37, II, da CF. Pelo concurso afastam-se os apaniguados que costumam abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantêm no poder leiloando cargos e empregos públicos".

Ademais, temos defendido que o sistema de controle interno nos municípios deve ser exercido por dois órgãos autônomos e independes: a controladoria e a procuradoria.

Primeiramente, sobre a obrigatoriedade de consolidação do sistema de controle interno pelo ente local, o administrador Corrêa escreveu que [4]:

"É importante destacar que a Constituição Federal prevê no artigo 31, 70 e 74 e Lei de Responsabilidade Fiscal em seu artigo 59, sem falar da exigência do Tribunal de Contas do Estado, que estabelece que a fiscalização dos atos da administração deva ser exercida com base num SISTEMA DE CONTROLE INTERNO, concebido a partir de uma estrutura organizada e articulada, envolvendo todas as unidades administrativas no desempenho de suas atribuições".

Em relação à controladoria, invocamos os escritos do advogado Perina, para quem o órgão de controladoria deve ser dotado de garantias, e digamos, por extensão, igualmente os seus membros [5]:

"A controladoria é o órgão central interno do Poder Executivo, com total autonomia funcional, responsável pela expedição de atos normativos e regulamentadores dos procedimentos de controle. É unidade administrativa para integrar os procedimentos de controle e fiscalização a ainda consolidar as informações de gestão orçamentária, financeira, patrimonial e operacional, com a finalidade de atestar a legalidade, a legitimidade, a economicidade, a eficiência e a eficácia dos programas de governo, podendo também fazer controle exercido com metodologia de auditoria no âmbito de determinada unidade administrativa. (…) o Controle Interno deve ter o status de Secretaria, devendo assim estar ligado diretamente ao gabinete do prefeito, na medida em que os próprios secretários passam a ser passíveis de fiscalização".

Ademais, apesar de o texto tratar do controle no âmbito do Poder Executivo, entendemos também aplicável no âmbito do Poder Legislativo, com vinculação da Controladoria à Mesa Diretora, assim como a Procuradoria.

Nesse sentido, em decisão de 3/7/2020, nos autos do RE nº 1.264.676-SC, o Supremo Tribunal Federal definiu ser inconstitucional o provimento dos cargos de Diretor de Controle Interno e de Controlador Interno por meio de cargo em comissão ou função gratificada, corroborando o entendimento aqui exposado, de que o provimento desses cargos deve obedecer ao princípio da investidura (artigo 37, II, da CF).

De seu turno, em relação às procuradorias municipais, subsiste severa controvérsia jurisprudencial e doutrinária sobre a necessidade de sua instituição.

Nessa senda, o professor Galindo pontuou que, a despeito da importância de se regulamentar a advocacia municipal na Constituição Estadual, sua criação é uma faculdade dos municípios, segundo critérios objetivos sindicáveis pelo Poder Judiciário. Vejamos seus escritos [6]:

"Tendo em vista esse horizonte interpretativo, é preciso considerar o âmbito das normas contidas nos artigos 131 e 132 da CF e o silêncio léxico sobre o Município, o que tem fundamental significado no contexto. Ante isso, o elemento hermenêutico sistemático obriga o intérprete a buscar em outros comandos normativos fundamentos para eventuais proibições, permissões e obrigações. E a resposta dada pelos demais dispositivos é no sentido da autonomia municipal face o silêncio do Constituinte, já que este poderia ter, em tese, incluído os Municípios no rol das obrigações federais, estaduais e distritais a respeito, mas não o fez, deixando para a formulação genérica do artigo 18 da Carta Magna um maior espaço conformador nesse particular. Os artigos 34 e 35 reforçam essa percepção, o que faz com que constitucionalistas renomados, como no caso de Ana Paula de Barcellos, destaquem que a autonomia municipal é de tal modo prestigiada na Constituição, que é considerada 'princípio sensível' (na expressão de Pontes de Miranda) da Carta Magna, podendo até ser fundamento de uma intervenção da União em um Estado se este estiver violando a dita autonomia. E isso é reforçado por várias decisões do próprio STF, a exemplo dos REs 690.765/MG, 656558/SP e 888327-AgR".

Além do mais, Sousa também sustenta que a interpretação possível é a da discricionariedade do Prefeito na questão da criação da procuradoria municipal. Eis o seu ponto de vista:

"Portanto, a sugestão aqui trazida defende sumamente dois pontos, que, aparentemente antagônicos, são complementares. O primeiro deles é no sentido de que existem municípios que, inarredavelmente, não podem prescindir de uma Procuradoria organizada e estruturada em carreiras, quando haja critérios objetivos para sua criação e, no mesmo plano, existem municípios que, por ausência de demanda suficiente e por falta de recursos, não podem suportar esse mesmo ônus. O segundo ponto vai ao encontro dos demais. Não existindo uma zona de certeza positiva quanto à necessidade de criação das Procuradorias organizadas em carreira, ou mesmo a existência de uma zona de certeza negativa, concernentemente à completa inviabilidade de criação, e restando uma margem razoável de dúvidas, tal escolha deverá ser político-administrativa, segundo critérios de discricionariedade de quem exerce a chefia do Executivo Municipal, ressalvando a completa possibilidade de controle externo, sobretudo o controle pelo Poder Judiciário, quanto à decisão administrativa, segundo critérios de aferição sempre objetivos" [7].

Nada obstante os judiciosos entendimentos, eles vão de encontro ao princípio hermenêutico de que onde houver a mesma razão, aplica-se o mesmo direito (ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio).

Pois bem. Segundo o artigo 29 da Constituição Federal, os municípios devem atender os princípios nela estabelecidos, assim como os estabelecidos na Constituição do respectivo Estado.

No Estado de São Paulo, verbi gratia, vigora no artigo 98 de sua Lei Maior a prescrição de que a "Procuradoria Geral do Estado é instituição de natureza permanente, essencial à administração da justiça e à Administração Pública Estadual, vinculada diretamente ao Governador, responsável pela advocacia do Estado, sendo orientada pelos princípios da legalidade e da indisponibilidade do interesse público".

Ora, dispositivo republicano e moralizador, onde cabe a advocacia pública estadual a tarefa de zelar pelos princípios da legalidade e da indisponibilidade do interesse público, em suma, pelos postulados do artigo 37, caput, da Lex Legum.

Dessarte, fazemos a pergunta: por que tal regra legal não deve ser aplicada na esfera municipal?

De outro vértice, a própria Suprema Corte já asseverou, analisando o teto remuneratório dos procuradores municipais, a importância dessa carreira no ordenamento jurídico brasileiro, conforme a seguinte tese:

"A expressão 'Procuradores', contida na parte final do inciso XI do artigo 37 da Constituição da República, compreende os Procuradores Municipais, uma vez que estes se inserem nas funções essenciais à Justiça, estando, portanto, submetidos ao teto de noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal" (RE nº 663.696-MG, relator ministro Luiz Fux, j. 28 -2-2019, P, DJE de 22-8-2019)

Portanto, conforme a tese fixada pelo tribunal, os advogados públicos municipais estão inseridos nas funções essenciais à justiça.

Contudo, a questão que subjaz é a seguinte: como podem os procuradores municipais serem funções essenciais à justiça e ao mesmo tempo sua criação não ser obrigatória? Será que é factível levar a autonomia dos municípios ao extremo de os eximirem de criar suas procuradorias como órgãos de controle interno?

Nessa linha, conforme já decidiu o Tribunal Constitucional em brilhante voto do ministro Celso de Mello,

"Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas  e considerado o substrato ético que as informa  permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros" (MS nº 23.452,  j. 16-9-1999, P, DJ de 12-5-2000).

Por conseguinte, o princípio da autonomia federativa dos municípios, previsto no artigo 18 da Carga Magna, não é absoluto e, dessa forma, não deve ir aos confins de permitir que o ente local seja desobrigado de instituir seu sistema de controle interno, principalmente representado nos órgãos da controladoria e da procuradoria, nos moldes já estabelecidos para os estados e a União.

Desafortunadamente, é o que temos visto nas decisões do Tribunal Supremo, conforme arestos que seguem:

"EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO  AUSÊNCIA DE IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL PARA A CRIAÇÃO DE ÓRGÃO DE ADVOCACIA PÚBLICA MUNICIPAL  DECISÃO QUE SE AJUSTA À JURISPRUDÊNCIA PREVALECENTE NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL  CONSEQUENTE INVIABILIDADE DO RECURSO QUE A IMPUGNA  SUBSISTÊNCIA DOS FUNDAMENTOS QUE DÃO SUPORTE À DECISÃO RECORRIDA  SUCUMBÊNCIA RECURSAL (CPC/15, ARTIGO 85, §11)  NÃO DECRETAÇÃO, POR TRATAR-SE, AUSENTE SITUAÇÃO DE COMPROVADA MÁ-FÉ, DE PROCESSO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA (LEI Nº 7.347/85, ARTIGO 18)  AGRAVO INTERNO IMPROVIDO". (RE nº 893.694-SE, relator ministro Celso de Mello. J. 21-10-2016).

"EMENTA: AGRAVO INTERNO NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ADVOCACIA PÚBLICA MUNICIPAL. AUSÊNCIA DE PREVISÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INEXISTÊNCIA DE NORMAS DE REPRODUÇÃO OBRIGATÓRIA. PRECEDENTES. CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. RESTRIÇÃO AO PODER DE AUTO-ORGANIZAÇÃO DOS MUNICÍPIOS. INVIABILIDADE. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO" (RE nº 1.156.016-SP, relator ministro Luiz Fux. J. 6-5-2019).

Concluindo, esperamos que o STF reveja sua jurisprudência, e passe a considerar obrigatória a criação não só das procuradorias, como das controladorias municipais, com cargos de carreira, preenchidos através de concurso público de provas e títulos, assegurando assim a isonomia e a impessoalidade de regem a administração pública, como também um eficiente controle interno de legalidade dos atos administrativos.

Referências bibliográficas
CARVALHO E SOUSA, Guilherme. Nem todo município suporta uma procuradoria. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-dez-12/guilherme-carvalho-nem-todo-municipio-suporta-procuradoria2 Acesso em: 8/6/2022.

CORREA, Marcelo. A importância da Controladoria Interna Municipal. Disponível em: https://administradores.com.br/artigos/a-importancia-da-controladoria-interna-municipal Acesso em: 8/6/2022.

GALINDO, Bruno. Advocacia pública e a autonomia do município no federalismo brasileiro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-ago-25/bruno-galindo-advocacia-publica-autonomia-municipio Acesso em: 8/6/2022.

MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 44ª Ed. São Paulo. Malheiros. 2020.

PERINA, José Ricardo. Qual é o papel do Controle Interno Municipal. Disponível em: https://jraperina.jusbrasil.com.br/artigos/397351040/qual-e-o-papel-do-controle-interno-municipal Acesso em: 8/6/2022.

TORMENA, Celso Bruno. A obrigatoriedade de instituição do órgão de advocacia pública nos municípios. Revista Jus Navigandi. ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, nº 6881, 4 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87772. Acesso em: 8/6/2022.

TORMENA, Celso Bruno. Controle interno na dívida ativa municipal. Revista Jus Navigandi. ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6390, 29 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87585. Acesso em: 8/6/2022.


[1] Disponível em: https://www.avancasp.org.br/informacoes/33/ Acesso em: 8/6/2022.

[3] Direito Administrativo Brasileiro. 44ª Ed. São Paulo. Malheiros. 2020. Pág. 464.

[4] A importância da Controladoria Interna Municipal. Disponível em: https://administradores.com.br/artigos/a-importancia-da-controladoria-interna-municipal Acesso em: 8/6/2022.

[5] Qual é o papel do Controle Interno Municipal. Disponível em: https://jraperina.jusbrasil.com.br/artigos/397351040/qual-e-o-papel-do-controle-interno-municipal Acesso em: 8/6/2022.

[6] Advocacia pública e a autonomia do município no federalismo brasileiro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-ago-25/bruno-galindo-advocacia-publica-autonomia-municipio Acesso em: 8/6/2022.

[7] Nem todo município suporta uma procuradoria. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-dez-12/guilherme-carvalho-nem-todo-municipio-suporta-procuradoria2 Acesso em: 8/6/2022.

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