Opinião

Tratamento jurídico à pessoa de transtorno mental: do caso Damião aos dias atuais

Autores

  • Acácia Regina Soares de Sá

    é juíza de Direito substituta do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios especialista em Função Social do Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) mestre em Políticas Públicas e Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) coordenadora do grupo temático de Direito Público do Centro de Inteligência Artificial do TJDFT integrante do grupo de pesquisa de Hermenêutica Administrativa do UniCeub e integrante do Grupo de Pesquisa Centros de Inteligência Precedentes e Demandas Repetitivas da Escola Nacional da Magistratura (Enfam).

  • Evandio Sales de Souza

    é assessor no Banco do Brasil atuando na Diretoria de Controladoria advogado contador com MBA Executivo em Negócios Financeiros pela Escola Brasileira de Economia e Finança EPGE/FGV-RJ.

19 de junho de 2022, 6h36

Ainda que não se trata de um tema recente, a política de tratamento e acolhimento de pessoas com transtorno mental sempre é um tema atual, quer seja pelo modo de se abordar a questão, quer seja pelo tratamento dispensado ao portador do referido tipo de transtorno. Nesse diapasão, para entender a evolução do tema no Brasil faz-se necessário relembrar o caso Damião Ximenes Lopes, portados de transtorno mental, o qual foi submetido a tratamento desumano em uma clínica de repouso no interior do Ceará, vindo a falecer quatro dias após sua internação em razão dos maus tratos sofridos e ausência de atendimento de saúde digno, dentro do que preceitua as normas de saúde.

Em razão do falecimento de Damião, ocorrido no ano de 1999, seus familiares mais próximos (pais e dois irmãos) ingressaram com pleito junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos sob o fundamento de que houve ofensa ao seu direito à vida e a integridade física, bem como ofensa aos familiares ante a demora na solução do processo criminal e de reparação civil, motivo pelo qual requereram a condenação do Estado brasileiro em razão na negligência no dever de fiscalizar as entidades de saúde conveniadas.

O Estado reconheceu à violação ao direito à vida e a integridade física do paciente Damião Ximenes Lopes, no entanto negou a responsabilidade pelo pagamento de indenização, sob o fundamento de que as condutas que geraram os danos ao referido paciente e sua família foram causados pela clínica de repouso.

Ao final, foi decidido que o Estado brasileiro era responsável pela violação do direito à vida e a integridade física de Damião, uma vez que foi omisso em seu dever de fiscalizar a instituição de saúde conveniada, bem como pela violação das garantias processuais dos seus familiares, razão pela qual foi determinado pagamento de indenização aos referidos familiares, bem como outras medidas de cunho geral a fim de melhorar a política de saúde mental no país.

Nesse contexto, antes de adentramos nas medidas adotadas pelo Estado após a denúncia acima descrita, faz-se necessário ressaltar que a política adotada no âmbito da saúde mental foi, prioritariamente, a segregatória, por meio da internação em manicômios e clínicas de repouso, política fortalecida na década de 1970.

Pois bem. Feito tal esclarecimento, podemos observar que após a denúncia realizada diante da corte, ainda durante seu andamento, o Brasil, como forma de implementar uma nova política para o tratamento das pessoas portadores de doenças mentais, sancionou a Lei n.º 10.216/01, a qual discorreu sobre a "proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental".

A nova política previu a substituição gradativa dos tratamentos em clínicas de repousos pelo tratamento em ambientes coletivos de livre acesso  centro de atenção psicossocial (Caps), onde é oferecido um tratamento multidisciplinar que conta com psicólogos, psiquiatras e também terapeutas ocupacionais e outros profissionais de áreas a fim que buscar integrar seus pacientes na sociedade de modo que tenham uma vida normal, sendo que uma das diretrizes desse tipo de tratamento tem base nas orientações da corte internacional que defende e deixou claro no caso analisado que a regra deve ser o consentimento prévio para a realização do tratamento, sendo dispensado apenas em situações de urgência ou extremo risco para o paciente ou para outrem.

Assim, verifica-se que uma das grandes conquistas implementadas em consequência da reclamação acima foi a implementação de uma política pública na área de saúde mental que privilegia a autonomia do portador de transtorno mental como sujeito de direito hábil a exprimir e fazer valer sua vontade.

Uma outra medida implementação com a nova política foi a criação das residências terapêuticas, casas destinadas ao acolhimento dos pacientes provenientes das clínicas de tratamentos (manicômios) que não tinham parentes nem local para residir após o fechamento das referidas instituições, isso porque diversas famílias abandonavam para sempre seus parentes portadores de transtornos mentais em tais clínicas.

As medidas acima mencionadas podem ser consideradas como algumas das mais importantes na implementação do novo modelo da política de saúde mental no Brasil, em especial após o caso discutido na Corte Interamericana, dentro de um movimento mundial pela luta antimanicominal, buscando ainda integral do portador de transtorno mental à sociedade de forma mais efetiva.

No entanto, de forma oposta a uma política implementada há mais de 18 anos, a Lei nº 13.840/19, sancionada em 2019, alterou dispositivos da legislação que trata do combate e política de tratamento contra as drogas possibilitou, através da inclusão do artigo 23-A à Lei nº 11.343/06, a internação involuntária do usuário ou dependente de drogas desde que a pedido da família ou responsável ou, na ausência destes, de servidor responsável (a exceção dos servidores da área da segurança pública) desde que emitido relatório médico, independentemente de autorização judicial.

Tal dispositivo legal tratou o dependente de drogas como incapaz, à medida que retirou deste a autonomia de vontade para consentir a qual tratamento deseja se submeter, isso porque só em casos excepcionais o referido consentimento poderia ser suprido judicialmente.

Dentro desse contexto, a autorização legal para internação involuntária de dependentes de drogas vai de encontro à decisão de Corte Interamericana ao subtrair do paciente o direito de escolher e consentir o tratamento a ser ministrado, pois tal norma não traz as hipóteses em que pode ocorrer delegando à família e ao médico a responsabilidade pela decisão, desconsiderando que o paciente é sujeito de direitos.

Dessa forma, ainda que o Brasil tenha evoluído muito na elaboração, implementação e execução de políticas públicas na área de saúde mental, em especial após o caso Damião Ximenes Lopes, uma vez que a Lei nº 10.216/01, que tratou da proteção das pessoas portadoras de transtornos mentais é posterior. No entanto, iniciativas como a que foi aprovada permite a internação involuntária sem autorização judicial desestabiliza a rede de proteção, autonomia e cuidado conquistada pelas referidas pessoas ao longo de mais de 18 anos na luta antimanicomial, uma vez que retira do paciente um dos seus principais direitos: a autonomia de vontade e a proteção da dignidade da pessoa portadora de transtorno mental.

Autores

  • é juíza de Direito substituta do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DF), especialista em Função Social do Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), mestre em Políticas Públicas e Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), coordenadora do grupo temático de Direito Público do Centro de Inteligência Artificial do TJ-DF, integrante do Grupo de Pesquisa de Hermenêutica Administrativa do UniCeub e integrante do Grupo de Pesquisa Centros de Inteligência, Precedentes e Demandas Repetitivas da Escola Nacional da Magistratura (Enfam).

  • é assessor no Banco do Brasil, atuando na Diretoria de Controladoria, advogado e contador, com MBA Executivo em Negócios Financeiros pela Escola Brasileira de Economia e Finança EPGE/FGV-RJ.

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