Embargos Culturais

Direito e Psicanálise: Luto e Melancolia, de Sigmund Freud

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

19 de junho de 2022, 8h00

Luto e Melancolia é um texto de Sigmund Freud redigido em 1915 e publicado em 1917. Neste fragmento Freud diferencia essas duas instâncias, luto melancolia, identificando a natureza patológica desta última. Tento no presente ensaio captar semelhanças e diferenças entre luto melancolia no contexto deste importante excerto de Freud para, em seguida, dimensioná-las rapidamente no contexto normativo brasileiro presente, ainda que superficialmente. Vale o esforço do vínculo do freudismo com as ciências sociais aplicadas. Há quem se incomode com o selo direito e psicanálise.

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Em linhas gerais, o luto é o resultado, entre outros, da perda de um ente querido ou, de modo mais amplo, (…) à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante. De acordo com Freud o luto não é condição patológica e também não exige tratamento médico. O luto é circunstância superável, após algum tempo, pelo que Freud julgava inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele.

No luto há a perda de um objeto (ainda que seja um sujeito, uma pessoa), enquanto que na melancolia tem-se, segundo Freud, a perda do próprio eu do sujeito. A melancolia é patológica, fraciona-se em diversas formas clínicas, inclusive no que se refere à mania, que seria seu polo oposto, de onde a bipolaridade, isto é, a oscilação entre a depressão e a euforia. No luto a perda é consciente; na melancolia, a perda se processa no inconsciente; em outras palavras, no luto se sabe por quem e por que se chora, na melancolia, queixa-se da perda de não se sabe exatamente o que, e nem de quem.

Por outro lado, pode-se encontrar no luto tudo o que se encontra na melancolia, com exceção do abalo de autoestima, que se verifica nos quadros melancólicos. Na melancolia, afirma, Freud, constata-se a diminuição da autoestima; há um empobrecimento em grande escala do ego. E porque o luto permite ampla explicação, vinculando-se objetivamente causa e efeito, é que se afastaria sua natureza patológica. Além do que, o luto é marcado por um caminho, pelo qual o sujeito transcende à dor original; isto é, (…) quando o trabalho do luto se concluiu, o ego fica outra vez livre e desinibido. Ainda, outro traço definidor, no luto o mundo se torna pobre e vazio, na melancolia é o próprio eu que vive a mais absoluta miserabilidade.

Freud observou que não há como convencer ao melancólico; o acometido de melancolia não pode ser contraditado. Em outras palavras, não há como se convencer ao deprimido de que não há razões para o sofrimento. A questão é qualitativa, e não quantitativa, ao contrário do que ocorre nos casos de luto. O melancólico transcende a autocrítica para a auto difamação. É implacável. Há perda total do amor-próprio e, segundo Freud, deve ter havido boas razões para tanto.

Luto e melancolia são parecidos na medida em que desaparecem com o tempo, inclusive sem deixar vestígios. No entanto, a melancolia guarda em si aptidão para se transformar em mania, vingando em espécie de incontida euforia, o que não ocorre com o luto. Entre a melancolia e a mania fixa-se uma instância circular, especialmente marcada pelo fato de que a mania é estado exatamente oposto à melancolia, no que se refere ao quadro de sintomas. O melancólico chora. O maníaco ri compulsivamente.

No Direito brasileiro, o luto recebe tratamento normativo, entre outros, na autorização que se concede ao servidor público para que se ausente do serviço, sem qualquer prejuízo, por força de falecimento do cônjuge, companheiro, pais, madrasta ou padrasto, filhos, enteados, menor sob guarda ou tutela e irmãos. O servidor público pode deixar de trabalhar por oito dias no caso de luto. Na iniciativa privada, à luz da letra da lei, o luto justifica apenas dois dias de ausência ao serviço, sem prejuízo do salário, na hipótese de falecimento do cônjuge, ascendente, descendente, irmão ou pessoa que, declarada em sua Carteira de Trabalho e Previdência Social, viva sob dependência econômica do trabalhador.

A melancolia, contemporaneamente traduzida nos chamados estados depressivos é causa importantíssima no absenteísmo. A melancolia é classificada no código internacional de doenças, em todas as suas formas hoje reconhecidas: F.32.0 (episódio depressivo leve), F.32.1 (episódio depressivo moderado), F.32.2 (episódio depressivo grave sem sintomas psicóticos), F.32.2 (episódio depressivo grave com sintomas psicóticos), F. 34.1 (distimia- rebaixamento crônico do humor), entre outros.

Espécie de patologia de nossos tempos, como a histeria o fora no início do século XX, a par das neuroses de guerra, a melancolia é, na essência, o rotulado no quadro proposto por Freud, especialmente em suas constantes comparativas com o luto. Persistem também os episódios de mania, sintetizados por superlativa euforia, disfarce sintomático do desespero e do desamparo.

E porque o luto e a melancolia são tratados normativamente no espaço relativo às relações de trabalho, com mais frequência, pode-se comprovar a hipótese de certo filósofo francês (Michel Foucault) para quem as patologias da alma justificam-se nos regimes de reclusão e de exclusão humanas. Mas há ainda amplo campo a ser investigado, especialmente em âmbito de responsabilidade civil e penal, a propósito de como o luto, a melancolia e a mania contaminam a vontade.

Longe o tempo em que ficávamos entre os mentecaptos e os furiosos de um imaginário direito romano. Categorias freudianas de consciente e de inconsciente, de ego e de id, podem auxiliar na compreensão das ações e omissões volitivas, no quadro geral da responsabilização subjetiva ou aquiliana. Mais. Auxiliam na busca da compreensão humana, fazendo de cada um de nós um vigilante prosélito do aviso da entrada do oráculo de Delfos, no sentido de que devemos, antes de qualquer outra coisa, conhecermos a nós mesmos.

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