Opinião

A deepening insolvency theory no Direito brasileiro

Autores

  • Alberto Tapeocy Nogueira

    é procurador do estado do Acre graduado em Direito pela UFAC pós-graduado em Direito Constitucional e Processo Civil cursando pós-graduação em Direito Empresarial e sócio da SMT Advogados Associados.

  • Thomaz Carneiro Drumond

    é procurador do estado do Acre pós-graduado em Direito Administrativo Tributário Empresarial e em Processo Civil presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB-AC e advogado sócio de Drumond Leitão Torres Advogados.

16 de junho de 2022, 17h15

A teoria norte-americana da deepening insolvency, enquanto instituto de responsabilização dos administradores de sociedades no retardo do pedido de recuperação da empresa ou de sua falência, se situa diante do regime jurídico de deveres impostos a esses condutores de negócios das companhias. É possível, ainda, uma comparação da citada teoria com a já conhecida Teoria da Perda de Uma Chance, a fim de se investigar a aproximação e diferenças entre os institutos.

1. Os deveres dos administradores das sociedades anônimas.
O conjunto de deveres e responsabilidades dos administradores das companhias se encontra estampado no artigo 153 e ss. da Lei nº 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações — LSA), sendo os principais deles o dever de diligência, dever de lealdade, dever de informar e o dever de sigilo. Vejamos.

a) Dever de diligência
O artigo 153 da LSA determina que o administrador deve, na direção da companhia, exercer suas funções com cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos negócios. Obviamente, tal dever de diligência constitui um conceito jurídico indeterminado, entretanto, a própria lei dá um norte sobre quais seriam as características de uma administração cuidadosa e diligente. O artigo 154 afirma que o administrador deve cumprir as atribuições que a lei e o estatuto da companhia lhe conferem, tudo para lograr os fins e o interesse da empresa, observando o bem público e a função social da empresa.

O professor Fabio Ulhoa Coelho [1] defende que a diligência do administrador deve ser guiada pela direção que a "ciência" da administração de empresas é capaz de dar (o professor usa o termo ciência entre aspas, pois considera que tal conhecimento é de natureza tecnológica e não científica). Nesse sentido, diligente é o administrador que empreende as melhores e mais modernas técnicas de administração, a fim de atingir, o máximo possível, os objetivos sociais da companhia, sempre lembrando que este é um dever de meio e não de resultado. Afinal, o atingimento das metas depende de muitas outras variáveis que, por vezes, não estão na governabilidade do dirigente.

b) Dever de lealdade
O artigo 155 da LSA determina que os administradores devem agir com lealdade à companhia e manter reserva sobre seus negócios. O administrador cumpre tal dever tanto por não agir de determinadas formas (aplicação negativa), quanto pelo cumprimento de seus deveres (aplicação positiva) [2], na compreensão de que o administrador é um servidor da companhia, não devendo dela se servir para seus objetivos pessoais.

Assim, o administrador cumpre o dever de lealdade quando (1) não usa as oportunidades comerciais das quais tem conhecimento em razão do cargo em benefício próprio, ainda que não haja prejuízo para a companhia; (2) não se omite na proteção dos interesses da companhia, especialmente visando a interesse próprio ou de terceiros, bem como aproveita diligentemente as oportunidades de negócio em benefício da sociedade; (3) não adquire bens ou direitos necessários à companhia ou que esta tenha a intenção de comprar, para revenda com lucro.

c) Dever de informar
Este dever está intrinsecamente relacionado com a gestão proba que deve ser exercida pelos administradores. Parafraseando o imperador romano Júlio César, não basta que o administrador seja honesto. Ele deve parecer honesto, deve divulgar, deve informar a probidade da sua gestão, sendo especialmente ampla tal obrigação nas sociedades de capital aberto. Nesse sentido, ensina Ricardo Negrão, por exemplo, que nas sociedades por ações abertas essa obrigação é mais ampla, exigindo que comunique à bolsa de valores e à imprensa qualquer deliberação da assembleia geral ou dos órgãos da administração ou outro fato relevante ocorrido em seus negócios que possa influir, de modo ponderável, na decisão dos investidores do mercado de vender ou comprar valores mobiliários emitidos pela companhia, salvo hipótese de risco a interesse legítimo da companhia (artigo 109) [3].

d) Dever de sigilo
Em que pese o dever tratado no tópico anterior que pesa sobre os ombros dos administradores, há determinadas informações acessadas pelo gestor da companhia que devem ser mantidas em sigilo, em determinadas circunstâncias.

O §1º do artigo 155 da Lei 6.404/76 determina que, se tais informações não são conhecidas do mercado e podem influir na cotação das ações da companhia, o sigilo deve ser mantido. Tal dever se impõe sobretudo na vedação de utilização de tais informações para obtenção de vantagem na compra e venda de valores mobiliários.

Não apenas o administrador não pode se valer de tais informações ou divulgá-las inadvertidamente. Este é responsável também pelo dever de sigilo que seus subordinados ou terceiros de confiança devem prezar (§2º, artigo 155, LSA).

Delineadas a estrutura básica dos deveres dos administradores, importa, neste instante, adentrar sobre a teoria do deepening insolvency e sua relação com o direito brasileiro, ante o estatuto que rege a administração das companhias

2. A teoria do deepening insolvency
A deepening insolvency theory é de origem estadunidense, cujo nascimento, segundo a doutrina especializada, deu-se no caso Schacht vs. Brown da Corte de Apelação da 7ª Região (EUA), no qual um liquidante ajuizou a demanda em face dos administradores da companhia que, a despeito de terem conhecimento da delicada situação financeira do empreendimento, teriam praticado uma série de atos que agravaram o estado de insolvência, especialmente no caso da venda de ativos importantes da empresa para pagamento de dívidas. A defesa dos administradores argumentou que a venda foi realizada para manter a liquidez das companhia diante dos débitos que venciam [4].

Já para TaeRa J. Franklin [5], o debate que originou as discussões sobre as responsabilidades dos administradores na manutenção artificial de sobrevida das companhias, causando danos a credores, remonta a 90 anos antes do caso Schacht vs. Brown, mais precisamente a 1896, em Patterson vs. Franklin, perante a Suprema Corte da Pennsylvania. Neste caso, a companhia insolvente depositou perante o Estado um certificado de que teria recebido uma determinada soma em dinheiro, o que levou investidores a estenderem créditos em favor da companhia. Entretanto, o certificado era falso. A sociedade não seria capaz de pagar seus débitos. Contudo, a insolvente companhia repassou seus débitos a terceiros, em benefício de seus credores. A cessionária desses débitos, portanto, acabou questionando a atitude fraudulenta dos administradores. Em que pese, em tal julgamento, estes não terem sido responsabilizados, ali se originou o debate que chegou a resultados diferentes quase um século depois.

Deixando-se de lado tal aspecto histórico, a conclusão a que se chega é que tal teoria, embora não tenha sido recebida por todo o sistema jurídico dos Estados Unidos — há uma parte da jurisprudência que rechaça sua utilização —, importa conceituar que se trata de uma responsabilização dos administradores da sociedade que, sabendo do estado de crise da companhia, ainda que atuando para salvaguardar interesses dos sócios de forma momentânea, fazem-no artificiosamente, avolumando os prejuízos ao longo do tempo em detrimento dos stakeholders.

Leandro Santos de Aragão discorre que seria uma causa específica de imputação de responsabilidade pelos danos gerados em razão do prolongamento artificial da vida da sociedade para além do início do estado de insolvência, que se caracterizaria pelo contínuo crescimento dos débitos combinado com a impossibilidade de pagá-los face os ativos já não tão valiosos e a projeção minguada do fluxo de caixa para períodos futuros [6].

Tal responsabilização, como se pode perceber, não está adstrita somente aos administradores, mas ela pode ser invocada em face de todos aqueles que foram capazes de influenciar nas decisões que agravaram o estado de insolvência da companhia, em detrimento do interesse de terceiros e de toda a sociedade [7].

Diante da conceituação acima, necessário se faz investigar se a deepening insolvency theory é aplicável ou não ao Direito pátrio, ante o conjunto de deveres dos administradores das companhias.

3. Da aplicação da deepening insolvency ao Direito brasileiro
Ao se analisar o conjunto de deveres que são impostos aos administradores das companhias, pode-se chegar à conclusão da possibilidade de aplicação da deepening insolvency pelos julgadores nacionais.

A começar pelo dever de diligência (artigo 153 da LSA). Ora, conforme se argumentou acima, tal dever de diligência impõe aos administradores a utilização das melhores técnicas de administração empresarial para que a sociedade por ações possa cumprir com seus objetivos institucionais. Essa diligência, por óbvio, também deve ser exigida daqueles que estão à frente da companhia no pior momento de sua existência, ou seja, no momento de crise financeira e de possível quebra e extinção do negócio.

Deixar de utilizar das ferramentas necessárias, ficando provado que o administrador não empreendeu toda a atenção possível para reverter o fim da companhia, sua responsabilização é totalmente possível.

Veja-se, entretanto, que não basta a quebra da companhia para que haja a responsabilização do administrador, embora seja condição para o início de uma ação judicial nesse sentido. Isso porque, nem sempre as ações diligentes de um administrador serão capazes de salvar o empreendimento. Entretanto, se o dever de diligência foi inobservado, é possível se falar na responsabilização dos gestores.

Afinal, o princípio do dever de mitigar as próprias perdas, conhecido pela expressão inglesa duty of mitigate the loss já possui ampla aplicação em território nacional, em diversos ramos do direito (obrigacional, consumidor, administrativo, etc.), pois sua raiz está no princípio da eticidade e da boa fé objetiva que devem reger as relações jurídicas.

A deterioração das condições econômico-financeiras da sociedade anônima, por atos dolosos ou por omissão do dever de diligência, é o desrespeito frontal a tais princípios.

A responsabilização dos administradores, por quebra dos seus deveres, demonstrando-se a quebra do princípio da boa-fé, encontra guarida da Lei das Sociedades Anônimas, conforme artigo 158. Ainda que agindo dentro de suas atribuições ou poderes, se o administrador da companhia causar prejuízos a esta, mediante culpa (imprudência, imperícia e negligência) ou dolo, ele pode ser devidamente responsabilizado. Somente agindo de boa-fé e no interesse da companhia é que sua responsabilização pode ser afastada, à luz do artigo 159, §6º, da mesma lei.

Não somente esses fundamentos dão suporte a aplicação da teoria pelo julgador brasileiro. Há doutrina que defende a identificação da deepening insolvency com a teoria da perda de uma chance (perte d’une chence), que consiste na imputação de danos que frustram expectativas ou oportunidades futuras. Tal teoria já foi acolhida pela jurisprudência do STJ, no famoso caso da participante do Programa do Milhão [8].

Concordando com essa conclusão, enxergando a identificação entre ambas as teorias, Aragão também afirma que não será a pura e simples decretação da falência que gerará a responsabilidade pelo agravamento da situação de insolvência, mas, sim, o fato de que a falência de hoje poderia ter sido evitada lá atrás se a medida de salvamento correta e eficaz (recuperação judicial) houvesse sido tomada.

Do ponto de vista processual, a legislação brasileira já oferece suporte voltada para a investigação da responsabilidade do administrador da companhia, por meio da ação de responsabilidade prevista no artigo 82 da Lei nº 11.101/2005.

Assim, diante do arcabouço normativo supra exposto, bem como da ferramenta processual disponível na Lei da Recuperação Judicial e de Falências, é possível concluir-se que a teoria ora analisada possui a viabilidade normativa necessária para sua aplicação.

4. Conclusão
As relações societárias demandam, cada dia mais, uma observância de padrões éticos e normativos, especialmente diante dos impactos que a atividade das companhias podem causar não somente no ambiente interno, entre empregados, prestadores de serviços, sócios e administradores.

A sociedade em volta também é impactada, pois a existência das companhias cumpre os princípios da ordem econômica como previstas na Constituição Federal (artigo 170 e seguintes), fazendo com que a economia do país seja alimentada com a geração de riquezas.

Dessa feita, o conjunto de deveres que pesa sobre os ombros dos administradores é de importância central no estudo do direito societário, cabendo a estes a condução dos negócios da companhia, na utilização das melhores técnicas de administração empresária. Nesse sentido, o dever de diligência, dever de lealdade, dever de informar e dever de sigilo são importantíssimos para o cumprimento dos objetivos da companhia.

Sobreleva-se tal conjunto de deveres quando o empreendimento se mostra em dificuldades financeiras ou, até mesmo, em total incapacidade de continuar. Nesse sentido, o encerramento das atividades da companhia, no momento certo, também consiste no exercício do dever de diligência a ser observado pelos gestores.

A manutenção artificial da vida da sociedade empresária, a todo custo, por meio de atos omissivos ou comissivos, culposos ou dolosos, agravando-se a possibilidade de honrar com as dívidas perante seus credores consiste não somente em inobservância do dever diligência, mas, ainda, em quebra dos deveres de boa-fé objetiva e do princípio da eticidade que inspiram as relações jurídicas.

A deepening insolvency theory, portanto, encontra guarida no Direito pátrio, especialmente sob a ótica da aplicação da teoria da perda de uma chance. Afinal, não diligenciar, no sentido de minoração das perdas e do resguardo dos interesses dos credores da companhia, provando-se o desrespeito ao conjunto de deveres dos administradores, é causa clara de responsabilização pelo aprofundamento da insolvência.


BIBLIOGRAFIA
AGUIAR, Roberto Fonseca de. A subcapitalização intencional no direito brasileiro: os benefícios para o ordenamento com a aplicação da teoria americana do deepening insolvency em sociedades limitadas e anônimas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, nº 3307, 21 jul. 2012. Disponível em: http://encurtador.com.br/jlIS1. Acesso em: 1/6/2022.
BLOK, Marcella. Deepening Insolvency: A responsabilidade dos Administradores pela não confissão da falência no momento oportuno. E-book Kindle.
CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de & ARAGÃO, Leandro Santos de (coord.). Direito Societário: Desafios atuais. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, Volume 2: Direito de Empresa. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
FRANKLIN, TaeRa K. Franklin. Deepening Insolvency: What It Is and Why It Should Prevail. In NYU Journal of Law and Business, Vol. 2:245, de 7 de junho de 2006.
MARLON, Tomazette. Curso de Direito Empresarial: Teoria Geral e Direito Societário, V. 1. 8ª ed. rev. e atual. — São Paulo: Atlas, 2017.
NEGRÃO, Ricardo. Curso de Direito Comercial e de Empresa: Teoria Geral da Empresa e Direito Societário. 14ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
PLETI, Ricardo Padovini & MOREIRA, Rodrigo Pereira. A teoria da Deepening Insolvency no Brasil: a responsabilidade do administrador pelo agravamento da crise e sociedades empresárias. Disponível aqui. Acessado em 1/6/2022.


[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, Volume 2: Direito de Empresa. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 314.

[2] MARLON, Tomazette. Curso de Direito Empresarial: Teoria Geral e Direito Societário, V. 1. 8 ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2017. p. 694

[3] NEGRÃO, Ricardo. Curso de Direito Comercial e de Empresa: Teoria Geral da Empresa e Direito Societário. 14ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 354.

[4] BLOK, Marcella. Deepening Insolvency: A responsabilidade dos Administradores pela não confissão da falência no momento oportuno. E-book Kindle.

[5] FRANKLIN, TaeRa K. Franklin. Deepening Insolvency: What It Is and Why It Should Prevail. In NYU Journal of Law and Business, Vol. 2:245, de 7 de junho de 2006. P. 438.

[6] CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de & ARAGÃO, Leandro Santos de (coord.). Direito Societário: Desafios atuais. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 180.

[7] PLETI, Ricardo Padovini & MOREIRA, Rodrigo Pereira. A teoria da Deepening Insolvency no Brasil: a responsabilidade do administrador pelo agravamento da crise e sociedades empresárias. Disponível aqui. Acessado em 1/6/2022.

[8] RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO. IMPROPRIEDADE DE PERGUNTA FORMULADA EM PROGRAMA DE TELEVISÃO. PERDA DA OPORTUNIDADE. 1. O questionamento, em programa de perguntas e respostas, pela televisão, sem viabilidade lógica, uma vez que a Constituição Federal não indica percentual relativo às terras reservadas aos índios, acarreta, como decidido pelas instâncias ordinárias, a impossibilidade da prestação por culpa do devedor, impondo o dever de ressarcir o participante pelo que razoavelmente haja deixado de lucrar, pela perda da oportunidade. 2. Recurso conhecido e, em parte, provido (STJ – REsp: 788459 BA 2005/0172410-9, relator: ministro FERNANDO GONÇALVES, data de julgamento: 8/11/2005, T4 — 4ª TURMA, data de publicação: DJ 13/3/2006 p. 334)

Autores

  • é procurador do estado do Acre, graduado em Direito pela UFAC, pós-graduado em Direito Constitucional e Processo Civil, cursando pós-graduação em Direito Empresarial e sócio da SMT Advogados Associados.

  • é procurador do estado do Acre, bacharel em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Administrativo, Tributário, Empresarial e em Processo Civil, presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB-AC e advogado sócio de Drumond Leitão Torres Advogados.

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