Garantias do Consumo

Direito à informação na prestação jurisdicional em demandas consumeristas

Autor

  • Hugo Assis Passos

    é advogado mestre e doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e professor da Universidade Estadual do Maranhão.

15 de junho de 2022, 8h01

O Brasil possui, aproximadamente, 75 milhões de processos em tramitação; tal realidade torna o aprimoramento da gestão numérica tema central no âmbito do Poder Judiciário.

Nesta perspectiva, segundo o relatório Justiça em Números 2021, no critério quantidade de processos cadastrados em determinada classe e assunto, os procedimentos de conhecimento da matéria processo cível e do trabalho obtiveram o maior quantitativo de processos nas Justiças Estadual, Federal e do Trabalho [1].

No mesmo sentindo, o Direito Civil aparece entre os cinco assuntos com os maiores quantitativos de processos em todas as instâncias da Justiça Estadual, destacando-se, também, o tema de Direito do Consumidor [2].

Na busca da concretização do princípio constitucional da razoável duração do processo, diversas alterações legislativas e estratégias administrativas forma idealizadas e implementadas nas últimas décadas, com exemplo, cita-se o prestígio à conciliação e a mediação, a criação do incidente de resolução de demandas repetitivas, a sistemática de julgamento do RE e do Resp prevista no CPC, o processo judicial eletrônico, o plenário virtual do STF, apenas para exemplificar algumas medidas que corroboram a afirmação.

Contudo, o esforço de melhoramento da prestação jurisdicional permanece em curso, a partir da criação e a adoção de novas tecnologias que podem ser analisadas a partir de teorias informacionais [3], com o intuito de se buscar fundamentos teóricos para a compreensão do estado da arte das soluções inovadoras idealizadas e seus efeitos na prestação jurisdicional, nesta análise, com ênfase à tutela do consumidor em juízo.

Apresenta-se como solução para os dilemas numéricos que impactam na tutela jurisdicional, o desenvolvimento e aplicação de Inteligência Artificial como mecanismo de apoio para elaboração de decisões judiciais e, para os mais otimistas ou, até mesmo, eufóricos, julgamentos por IA em casos com jurisprudências consolidadas, casos repetitivos e repercussão geral já reconhecida.

Nos termos do relatório [4] da pesquisa Tecnologia Aplicada à Gestão dos Conflitos no âmbito do Poder Judiciário Brasileiro, desenvolvido pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getulio Vargas (CIAPJ/FGV), coordenado pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luís Felipe Salomão, existem em curso 64 projetos de inteligência artificial no Brasil, em 47 tribunais.

Desse estado de coisas, problematiza-se se existem limites constitucionais para adoção de IA na prestação jurisdicional aptos concretizar o rol de direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988 e, em específico, a tutela do consumidor.

Compreende-se os direitos fundamentais como categorias jurídicas descritas e sistematizadas na constituição brasileira destinadas a proteção da dignidade humana, dispondo-se a tutela dos direitos e garantias de diversas abrangências, dentre estas a tutela do consumidor. Trata-se de pré-compromisso que entrincheira na norma máxima e vinculante do ordenamento jurídico nacional, disposições que servem requisito de validade e limitação para toda e qualquer atuação estatal, inclusive o Estado-Juiz.

Realça-se, nesta primeira abordagem do tema, que a adoção de IA no Poder Judiciário dever observar o direito à informação, prerrogativa com status constitucional, manifestada, igualmente, no CDC.

Pode-se entender o direito informação sob três perspectivas, quais sejam, a prerrogativa de transmitir informações; o direito buscar e obter informações sem embaraços e restrições desprovidas de embasamento constitucional e infraconstitucional, ainda que sejam barreiras tecnológicas; e o direito de ser informado, faculdade de receber dos órgãos públicos e privados informações de interesses particular ou coletivo.

Levando-se em consideração tal a exigência do Estado Constitucional brasileiro, como hipótese, propõe-se como limite objetivo para a utilização de IA na prestação jurisdicional o dever observância em qualquer projeto da transparência algorítmica como mecanismo de materialização do direito à informação. Logo, o direito à informação do artigo 5º, XXXIII, limita os projetos de emprego de IA à necessidade de permissibilidade de alcance dos métodos utilizados pela máquina para concretização das tarefas atribuídas e garantia de acesso a estas informações.

Admitindo-se que o Código de Defesa do Consumidor concretiza direitos constitucionais, extrai-se que a efetiva reparação de danos materiais e morais, o real acesso aos órgãos judiciários com vistas a tais reparações e a facilitação da defesa, direitos previstos no artigo 6º, VI, VII e VIII, respectivamente, devem ser considerados em quaisquer projetos de adoção de IA para a tutela jurisdicional que alcancem julgamento de lides consumeristas.

Na construção de decisões judiciais, o juiz deve demonstrar de modo coerente os caminhos lógicos do raciocínio, a forma de apreciação das alegações das partes e as teses ventiladas, o recorte do direito posto que se aplica ao caso concreto, assim como esclarecer como as jurisprudências se adequam perfeitamente ao caso em análise e, como arremate, apresentar conclusão consonante à argumentação jurídica exarada na fundamentação.

No entanto, há significativa opacidade na compreensão de decisões algorítmicas o que se expressa no insuficiente acesso e entendimento sobre o uso de dados e sobre os caminhos lógicos adotados para construção da decisão artificial.

Portanto, há necessidade de robusto desenvolvimento da aptidão de explanar os caminhos lógicos da construção de decisões, tais como informações sobre a autenticidade e integridade de dados, acesso ao código-fonte, modo de aprendizado de máquina e, explanação dos caminhos para estruturação da decisão e a possibilidade de revisão humana.

Por conseguinte, demanda-se o desenvolvimento de soluções aos dilemas numéricos do Poder Judiciário que forneçam níveis de acertos elevados, mas dotados de métodos que tragam informações necessárias à interpretatividade dos algoritmos ao observador e destinatário humano das decisões [5].

Há distintos níveis de interpretatividade, categorizando-se em alta, incluindo-se algoritmos de regressão, árvores de decisão, classificadores baseados em regras; média, contemplando-se algoritmos mais avançados como modelos gráficos; e, por fim, baixa, abrangendo técnicas avançadas SVM (Support Vector Machine), Ensemble Methods e redes neurais profundas [6].

Mostra-se claro que o direito constitucional à informação, fortalecido, no âmbito do direito do consumidor pelo artigo 6º do CDC, impõe limites de uso de IA na tutela do consumidor, ainda como mecanismo de apoio. Não há real acesso aos órgãos judiciários, efetiva reparação de danos, nem facilitação de defesa, caso o consumidor ou seus patronos, não entendam o modo de construção de decisões; logo, o direito à informação, sob a acepção de clareza ou transparência algorítmica, é condição sem qual não há compatibilização de projetos de IA com a necessária e constitucional da tutela do consumidor.

Referências bibliográficas
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[3] A informação demonstrou-se ser a base de teorias como a Sociedade pós-industrial, pós-moderna, Sociedade em Rede, Sociedade do Risco, Sociedade da Vigilância e Sociedade do Conhecimento, a partir de diferentes concepções dos fenômenos. Igualmente, estudo daquilo que Klaus Schwab chamou de quarta revolução industrial e da Black Box Society anunciada por Frank Pasquale possuem substrato na informação e no conhecimento.

[5] DA SILVA, Nilton Correia. Inteligência artificial. In: FRAZÃO, Ana; Mulholland, Caitlin. Inteligência artificial e direito: ética, regulação e responsabilidade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, 47.

[6] DA SILVA, Op cit.

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  • é advogado, mestre e doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e professor da Universidade Estadual do Maranhão.

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