Opinião

Processo administrativo deve ser instruído com a íntegra dos relatos

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  • Frederico Martins

    é advogado consultor do Madruga BTW mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília (UnB) e procurador do Estado do Rio Grande do Norte/RN em Brasília/DF.

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  • Joana Siqueira

    é sócia do Madruga BTW Advogados Associados especialista nas áreas de Direito Penal Empresarial Direito Administrativo Sancionador e de Ética Corporativa e Compliance mestre em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e pós-graduada em Direito do Estado e da Regulação pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ).

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12 de junho de 2022, 15h22

É frequente que investigações e processos de responsabilização estejam instruídos por acordos de leniência, termos de colaboração premiada e outros instrumentos que permitem o exercício consensual do poder punitivo estatal, tais como Termos de Compromisso de Cessação (TCCs) firmados pelo Cade. Esse contexto gera importantes discussões quanto às questões jurídicas relacionadas ao uso e compartilhamento de tais elementos com os diversos órgãos encarregados da apuração dos fatos revelado pelo colaborador, uma vez que tais instrumentos extrapolam a natureza jurídica de mero negócio jurídico processual, caracterizando-se também como meio de obtenção de prova.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal foi instado a examinar se trechos de declarações de colaboradores são suficientes para garantir o direito à ampla defesa. Na ocasião [1], o eminente ministro Gilmar Mendes deferiu medida liminar em mandado de segurança para determinar ao TCU que junte aos autos da TCE as versões integrais de históricos de condutas de acordos de leniência e termos de compromissos de cessação de conduta ("TCCs") firmados pelo Cade, bem como documentos neles mencionados que sejam relativos às condutas imputadas e que não se refiram a diligências em curso.

O ministro relator fundamentou ser aplicável ao caso "a mesma lógica jurisprudencial" consolidada pela 2ª Turma do STF em matéria de Direito Penal [2], que consiste em garantir ao réu ou ao investigado acesso a íntegra de termos de colaboração premiada quando 1) os documentos apontem ou respaldem a responsabilização do requerente; e 2) não se refiram a diligências em andamento. Registrou ainda que a circunstância de o imputado ter tido acesso à íntegra dos históricos de conduta no bojo de outro processo não exime a Corte de Contas do dever de instruir o processo com a totalidade dos elementos de convicção, uma vez que a juntada parcial dos documentos sujeitaria o imputado à "filtragem" das autoridades estatais, além de prejudicar o direito à ampla defesa no que toca à capacidade de o particular influenciar no convencimento do julgador, já que o Estado não terá formalmente conhecimento de todos os fatos e estará impossibilitado de ponderar os argumentos da defesa nele baseados.

Entendemos que tal decisão veio para o bom caminhar da jurisprudência do Supremo em matéria de processos administrativos de responsabilização, especialmente quando transpõe garantias constitucionais penais para tais feitos, reconhecendo a unidade do jus puniendi estatal [3].

É necessário reconhecer que a utilização parcial e incompleta de elementos produzidos em outras instâncias priva o imputado de ser julgado por autoridade que conheça, na íntegra, eventuais elementos de convicção existentes e os valore em sua completude. A prova não se presta exclusivamente a fundamentar o argumento da acusação ou da defesa, mas sobretudo motivar o convencimento da autoridade julgadora (livre convencimento motivado). Portanto, não basta que o próprio imputado conheça os fatos ou a integralidade dos elementos; é imprescindível que autoridade processante tenha também acesso a íntegra dos elementos de prova, para que assim exerça propriamente juízo de valor e possa analisar adequadamente os argumentos de defesa. 

Ademais, para que seja admitida, a utilização de elementos oriundos de outras instâncias deve observar os requisitos autorizadores para o uso de "provas emprestadas" [4]. Além de necessariamente ter sido produzida de forma valida no processo de origem, deve haver prévia autorização de compartilhamento pela autoridade competente, transporte ao processo destinatário das peças relacionadas à atividade probatória, contraditório e valoração própria pela autoridade do processo destinatário.

Dessa forma, ainda que os processos administrativos sancionadores e de responsabilização estejam subordinados aos princípios constitucionais da eficiência, proporcionalidade e economicidade, não se pode privá-los da plena incidência das garantias da ampla defesa e do devido processo legal, além da instrução processual com elementos necessários ao pleno esclarecimento da controvérsia e ao convencimento da Administração. Tais garantias asseguram que os processos administrativos sirvam ao fim a que se destinam, de apuração da verdade real, conferindo, ainda, maior confiabilidade à atividade judicante da Administração Pública.


[1] Cf. STF, MS 38540 MC / DF, relator ministro Gilmar Mendes, decisão em 09/05/2022. Cabe recurso.

[2] Citou entre outros a Rcl 33543 AgR-AgR-ED-AgR, relator (a): EDSON FACHIN, relator (a) p/ Acórdão: RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 04/08/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-223 DIVULG 08-09-2020 PUBLIC 09-09-2020.

[3] Cf. STF, Reclamação 41.557 /SP, relator ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, Dje 15.12.2020.

[4] Cf. eg., STF: RE 810.906-AgR, relator ministro ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe de 14.9.2015; AI 626.214-AgR, relator ministro JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, DJe de 8.10.2010; HC 83.515, relator ministro NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, DJ de 4.3.2005 e RMS 28.774, relator ministro MARCO AURÉLIO, Rel. p/ Acórdão: ministro ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe de 25.8.2016; Pet. 7.304/SF, relator ministro Edson Fachin, Segunda Turma, julgamento 21/11/2017; HC114074, relator(A): Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 07/05/2013; Pet. 9.997/DF, relator ministro Rosa Weber, Pleno, julgamento 23/11/2021.

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