Combate ao autoritarismo

"Legitimidade democrática de cortes reside na proteção de direitos", diz jurista francês

Autor

9 de junho de 2022, 8h22

As cortes constitucionais, no Brasil e em outros países, são responsáveis por autorizar e consolidar os direitos das minorias, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a permissão do aborto. No entanto, críticos desse pensamento argumentam que o Poder Judiciário não tem legitimidade democrática para tomar decisões como essas.

Spacca
O jurista Dominique Rousseau, um dos mais importantes constitucionalistas da atualidade na França, discorda. Para ele, uma democracia não se define apenas pela votação, mas também pelo respeito aos direitos e princípios constitucionais.

"Se a legitimidade democrática do Parlamento reside em sua função representativa eleitoral, a legitimidade democrática do controle de constitucionalidade reside na função protetora dos direitos e das liberdades que ele desempenha", afirma Rousseau, que é professor emérito da universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne.

No fim de maio, o jurista fez uma palestra na Câmara dos Deputados a respeito da ideia que defende de uma nova forma de participação no processo democrático — a chamada "democracia contínua". Ele a define como "um lugar para além da representação política tradicional", que transforma e amplia o espaço destinado ao cidadão com procedimentos que possibilitam às pessoas comuns o exercício da atividade política.

Em entrevista à ConJur, Rousseau apontou os benefícios da democracia contínua, refletiu sobre a ascensão de políticos populistas em diversos países e explicou qual é o papel do controle de constitucionalidade em uma democracia.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Como o senhor avalia a crise da democracia contemporânea?
Dominique Rousseau — A crise atual não é uma crise da democracia, mas da forma representativa da democracia. Nessa forma de democracia, os cidadãos votam e, em seguida, são convidados a ficar calados para deixar os representantes eleitos falarem, decidirem "em seu nome". Entretanto, de eleição em eleição, os cidadãos tomam consciência de que seu voto não tem efeito, que ele não muda suas vidas e que os representantes eleitos estão mais preocupados com seus próprios interesses e com os interesses dos grandes grupos econômicos e financeiros. Assim, eles deixam de votar, acusam toda a classe política de ser corrupta e rebelde contra "o sistema".

É nesse momento político que alguns políticos do sistema — Marine Le Pen (candidata de extrema-direita nas últimas eleições presidenciais na França), Jean-Luc Mélenchon (candidato da extrema-esquerda nas últimas eleições presidenciais na França), Donald Trump (ex-presidente de extrema-direita dos Estados Unidos), Viktor Orbán (primeiro-ministro de extrema-direita da Hungria) e Jair Bolsonaro são do sistema — aproveitam para se apresentar como "limpadores" do sistema, desobstruindo o Parlamento, a Justiça, a imprensa e se apresentando como a encarnação do povo. As instituições são "podres", dizem eles; não deve haver nada entre o líder e o povo. Esse é o denominador comum de todos os populismos, que assumem diferentes formas em diferentes países.

ConJur — Qual é o papel da classe média na ascensão de políticos populistas de extrema-direita como Marine Le Pen, Donald Trump e Jair Bolsonaro?
Dominique Rousseau — A esse fator político, devemos acrescentar um fator social ou societário. Todos os princípios sobre os quais as sociedades costumavam se representar e funcionar — e ainda funcionam — estão sendo enfraquecidos, discutidos e postos em questão: a família já não é o que era, o trabalho está sendo transformado em teletrabalho, os padrões de consumo estão mudando, a relação com a natureza está se tornando um elemento na relação entre os povos, a independência e a soberania dos Estados está dando lugar à interdependência e à cooperação entre os Estados. E, nesse momento da sociedade, se os princípios antigos estão em colapso, os novos princípios ainda não estão claros. Daí um sentimento de incerteza causado pelo fato de que as pessoas veem o que está partindo, mas não veem o que está por vir.

E, mais uma vez, alguns políticos usam este momento de incerteza para provocar medo do futuro e se apresentar como os guias capazes de restaurar os velhos princípios — Éric Zemmour na França (candidato de extrema-direita nas últimas eleições presidenciais na França), por exemplo. Por ser particularmente afetada pelo questionamento de princípios antigos, a classe média é obviamente a mais sensível a esse tema.

ConJur — Como funcionaria a democracia contínua?
Dominique Rousseau — A democracia contínua é uma resposta a este momento de incerteza política e social, radicalmente oposta à resposta do populismo. As "pessoas comuns", como se diz, devem ser levadas a sério. Elas têm aspirações, exigências, desejos e conhecimentos que devem ser levados em consideração ao fazer leis e políticas públicas. Hoje, esse conhecimento cotidiano é esquecido ou marginalizado. A democracia contínua o reabilita, fazendo dele a fonte das regras de convivência através de um método: a deliberação de saberes.

ConJur — A deliberação de saberes seria algo semelhante a plebiscitos e referendos?
Dominique Rousseau — A deliberação de saberes na sociedade não deve ocorrer pelo método do referendo, que é um "método-cutelo" de escolha que produz uma maioria por acaso, uma maioria de circunstâncias impondo sua vontade. Nas sociedades atuais, há diversas formas de estar no mundo, diversas formas de conceber a vida, diversas maneiras de ver e pensar o mundo. Um referendo dá vitória a uma só forma de ver e desacredita todas as outras.

Ao contrário, a deliberação permite que essas diferentes maneiras de ver a vida sejam confrontadas, sejam debatidas e, por meio desse trabalho argumentativo de discussão, façam surgir as normas que permitirão que todos esses modos de ver vivam juntos. Há várias formas de fazer uma família: o referendo imporá apenas uma, a deliberação encontrará os meios para fazê-las conviver.

ConJur — Qual é o papel do controle de constitucionalidade em uma democracia?
Dominique Rousseau — O controle de constitucionalidade das leis é um elemento fundamental da qualidade democrática de uma sociedade, na medida em que garante que as leis aprovadas não infrinjam os direitos e liberdades dos cidadãos. O controle de constitucionalidade não impede que os políticos exerçam seu poder; impede que os políticos abusem de seu poder; impede que os políticos se aproveitem de sua posição majoritária para atentar contra os direitos e liberdades.

ConJur — O senhor estuda a legitimidade dos poderes, especialmente do Judiciário. No Brasil e em outros países, as Supremas Cortes são responsáveis por autorizar e consolidar direitos de minorias, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a permissão do aborto. Há quem critique essa iniciativa, afirmando que o Judiciário não tem legitimidade democrática para tomar decisões desse tipo. Por outro lado, há quem diga que, sem essa iniciativa, direitos de minorias não seriam protegidos. Como avalia essa questão?
Dominique Rousseau — Uma democracia não se define apenas pelo sufrágio universal. Também se define pelo respeito ao que constitui, no sentido principal do termo, os cidadãos, ou seja, os direitos e princípios constitucionais. De fato, todos podem ver que um regime autoritário não abole o sufrágio universal, mas abole ou diminui a liberdade de opinião e expressão, a liberdade acadêmica, a independência do Judiciário, entre outras medidas. Prova de que esses direitos não são elementos externos à filosofia democrática, mas elementos que constituem a qualidade democrática de uma sociedade.

Se a legitimidade democrática do Parlamento reside em sua função representativa eleitoral, a legitimidade democrática do controle de constitucionalidade reside na função protetora dos direitos e liberdades que ele desempenha.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!