Opinião

Disciplina é liberdade: por um método na investigação

Autor

  • Fernanda Regina Vilares

    é mestre e doutora em Processo Penal pela Universidade de São Paulo (USP) pós-doutoranda em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP) procuradora da Fazenda Nacional e professora da FGVLaw e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-Brasília).

    View all posts

8 de junho de 2022, 17h02

"Se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve"
Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll

Em 18 de maio de 2022, o professor Maurício Zanoide de Moraes foi aprovado no concurso para professor titular de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. No mesmo dia, foi proferida aula de erudição ministrada de acordo com o procedimento regimental previsto. O tema escolhido dentre os 20 possíveis pontos do edital foi: "Investigação criminal e o direito de defesa".

De uma forma reducionista, a conferência percorreu o histórico da investigação criminal, mencionando, em algumas passagens, a participação (ou não) do defensor na inquisitio (metodologia do modelo criminal violento) em suas diversas formas e momentos históricos [1]. Após, afirmou que a discussão sobre a possibilidade do exercício do direito de defesa na fase preliminar da persecução penal já estaria consagrada, por ser corolário natural do sistema constitucional vigente. O mesmo raciocínio foi estendido à ideia da investigação defensiva, que emerge da paridade de armas no processo penal [2]. A grande reflexão trazida, entretanto, referiu-se à transferência do dever de realizar a reconstrução histórica dos fatos para o setor privado. Para o professor Maurício Zanoide de Moraes, a nova sistemática que confere benefícios às pessoas jurídicas que promovem a apuração dos ilícitos cometidos por seus funcionários ou em suas atividades, terceirizando uma atividade tradicionalmente levada a cabo pelo Estado ou sob a fiscalização estatal, traz uma nova gama de problemas que demandam novos estudos e adequado tratamento legal.

Sem adentrar nas especificidades do tema da investigação corporativa (que envolvem desde proteção de dados a questões trabalhistas), quer-se chamar a atenção para o caminho apontado como percurso necessário para se chegar a um bom termo para a questão: o desenvolvimento de uma teoria geral da investigação.

A atividade investigativa habita o imaginário popular como algo bastante intuitivo e dependente de características pessoais quase que místicas, como as de Sherlock Holmes. Sem querer desmerecer a contribuição de profissionais diferenciados com a sensibilidade aguçada para a reconstrução fática, o trabalho com as diversas modalidades de investigação revela que condicionar a resolução de casos a qualidades específicas pode trazer diversos problemas, tais como o tratamento diferenciado, seletivo e arbitrário dos inquéritos (isto é, a maior dedicação a solucionar alguns temas em detrimento de outros) e a falta de documentação dos atos apta a viabilizar o direito de defesa.

Nesse sentido, apenas uma organização do conhecimento sobre como os atos de investigação devem ser planejados e executados pode auxiliar não apenas a limitar o arbítrio do poder estatal na consecução da inquisitio, mas também a concretizar o princípio da eficiência que deve nortear a atuação da administração pública, colaborando não apenas para a imposição do poder punitivo se e quando necessário, mas também para pautar o exercício da atividade investigativa em âmbito empresarial.

A investigação não é uma atividade exclusiva do contexto criminal. Ao contrário, é produto de um impulso universal de buscar conhecimento e averiguar fatos ao se pretender solucionar um problema, inclusive  e, talvez, principalmente  em âmbito científico [3].  O ato de investigar possui natureza zetética, pois perquire, indaga, elucubra possibilidades, contrapondo-se a posturas dogmáticas que pretendem estabelecer certezas a partir de preconcepções sem a autêntica abertura à dúvida e à descoberta.

O conjunto dos procedimentos utilizados para retratar os fatos por meio da obtenção de informações em âmbito científico é denominado método. Conceitualmente, "método" é "…um plano de ação, formado pelo conjunto de etapas ordenadamente dispostas, destinadas a realizar e a antecipar uma atividade na busca de uma realidade". Para realiza-lo, são necessários instrumentos aptos a operacionalizar essa estratégia, isto é, técnicas ligadas ao modo de se efetivar essa atividade [4].

No contexto criminal, é comum observar a utilização de técnicas investigativas, responsáveis pela extração de elementos de informação das fontes de prova. Em geral, técnicas são identificadas com meios de obtenção de fontes de prova. É raro, todavia, deparar-se com inquéritos inspirados pelo estrito conceito de método, consistente em um plano de ação ordenado. O hábito arraigado é requerer e determinar a realização de meios de investigação na medida do desenrolar do procedimento, sem prévia reflexão do que efetivamente seria necessário, o que, num cenário idealizado, estaria em consonância com o princípio da mínima intervenção em direitos fundamentais.

Para o exercício dessa atividade de forma metódica ou metodológica, é essencial conferir bons contornos ao problema que se pretende solucionar. O ato de investigar é deflagrado pela constatação de uma situação indeterminada, a partir da qual deve ser feita a adequada problematização, identificando-se as possíveis hipóteses, os dados já existentes e aqueles que precisam ser coletados para preencher os vazios existentes. Segundo Eliomar Pereira da Silva:

A delimitação adequada do problema real da investigação implica em ganho de tempo substancial, na medida em que se descartam elementos que, ou já estão presentes nos dados disponíveis, ou são irrelevantes para a conclusão final da investigação, no que há de essencial [5].

Outro autor que se debruça sobre o tema é Luiz Henrique de Araujo Dutra, para quem "toda investigação é uma forma de averiguação", isto é, validação de hipóteses. Para ele, a verdade é um acordo entre hipóteses e as evidências a seu favor, sendo essencial definir critérios pelos quais uma hipótese universal possa ser considerada verificada, ou seja, para que esse acordo seja estabelecido, pois ele depende de uma ação do investigador e, dessa forma, estar-se-ia evitando subjetivismos em excesso. Dada a importância da linguagem nesse procedimento, aponta a existência de um dialeto investigativo [6].

Além de ter se dedicado ao estudo da epistemologia e considerar relevante a teorização sobre a verdade, revela especial preocupação com a pragmática da investigação, isto é, o estudo e o aprendizado a partir do comportamento dos investigadores em determinados contextos. Para ele, investigar é agir e, por consequência, demanda análise de estratégias empíricas, instrumentação e aparelhagem construídas para aumentar a base de dados disponíveis, de modo a construir uma teoria da investigação. Sintetiza: "A investigação bem sucedida é aquela que estabelece seu contexto próprio, consolida uma base de dados e elabora certo conhecimento específico projetável, descritos em convenções descritivas e demonstrativas que regem seu dialeto" [7].

Dutra afirma que o intelectualismo em excesso deve ser balanceado com diretivas operacionais que elucidem sobre "como" fazer para que não se recaia no equívoco da epistemologia tradicional de separar de forma exagerada os contextos da descoberta (elaboração de hipóteses, obtenção e produção de elementos informativos e aumento da base de dados) e justificação (processos intelectuais e raciocínios de valoração da prova para validar as hipóteses e consolidar a "verdade" da situação.).  Eliomar Pereita da Silva vai na mesma linha ao fazer a ponte entre os métodos de investigação em sentido estrito, utilizados para encontrar ou descobrir uma solução; e métodos de verificação, que controlam, em momento posterior, a aceitabilidade da solução [8].

A metodologia sobre como confrontar hipóteses e base de dados poderia ser aprofundada com a exploração do conceito de modelos [9]. Todavia, para os fins desse breve estudo, é suficiente afirmar que o (s) tipo (s) penal (is) cuja ocorrência é vislumbrada, bem como demais circunstâncias relativas à situação indeterminada que chega ao conhecimento do investigador, devem servir de parâmetro para se definir quais os dados fáticos já identificados e que preenchem determinadas molduras normativas e quais ainda demandam pesquisa. Isso feito, o trabalho intelectual e de organização do investigador é vislumbrar as técnicas, os meios de obtenção de elementos informativos que possam trazer respostas às indagações formuladas. Obtido o material informativo, deve haver a comparação, verificação com as hipóteses de modo a atestar a existência de acordo entre elas. Essa procedimentalização apresenta muitas vantagens:  

"O estabelecimento de uma metodologia de investigação será útil para torná-la mais eficiente, concentrando esforços nos pontos que efetivamente demandam esclarecimentos e  forçando o investigador a pensar em quais técnicas serão adequadas e necessárias para a procura e consequente descoberta dos dados faltantes antes de utilizá-las. Isso porque diligências diversas podem levar ao mesmo resultado, mas se a realização de apenas uma delas pode levar à confirmação da hipótese, haverá um ganho em termos de tempo e recursos gastos. Nesse sentido, o grau de sucesso de uma investigação está diretamente relacionado à capacidade de projeção do investigador, pois o planejamento permite equilibrar meios materiais disponíveis e objetivos pretendidos" [10].

Note-se que, embora a doutrina nacional ainda careça de um estudo sistemático da pragmática da investigação, já é possível utilizar alguns marcos teóricos para avançar no tratamento da matéria. Lembrando José Braz, "[…] não basta saber Direito para se ser investigador criminal, ainda     que não se possa ser investigador criminal sem se saber Direito" [11]. A conscientização sobre a importância da utilização de um método na investigação traz ganhos para todos os envolvidos: o investigador (público ou privado) otimiza sua força de trabalho e terá maior segurança na escolha dos seus caminhos; o investigado será beneficiado com menos arbitrariedade e menor duração da situação de imputado.

Parafraseando uma fala do professor Maurício Zanoide de Moraes em sua aula, a liberdade de atuação e a inexistência de parâmetros para a investigação (sobretudo a privada), pode levar a conflitos, potenciais ilegalidades e até acusações de crimes de violação de sigilo, assédio moral e abuso de poder. Um belo exemplo, portanto, de que a disciplina (legal ou doutrinária), maximiza a liberdade: dos investigados e também (ou principalmente) dos investigadores.


[1] Na Tese apresentada como requisito para aprovação no concurso, a inquisitio é classificada tanto pelo momento histórico (romana, católica, escolástica, inglesa) quanto pela intensidade do uso da violência e procedimento (radical, mitigada, revolucionada, humanizada e premial negociada). Cf. ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Modelo e sistema criminais não violentos: uma teoria ao processo criminal transformativo. 2022. Tese (Titularidade em Direito Processual Penal) — Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022.

[2] A investigação defensiva ainda carece de regulamentação específica e submete-se à lógica tradicional de apuração dos fatos no contexto de um inquérito presidido por uma autoridade policial, ainda que podendo ser executada por particular. Por isso, deve respeitar os deveres e garantias fundamentais incidentes na investigação preliminar.

[3] Nesse sentido, o professor Maurício Zanoide de Moraes aproxima a metodologia escolástica das universidades medievais àquela utilizada pela inquisitio. V. ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Modelo e sistema criminais não violentos: uma teoria ao processo criminal transformativo. 2022. Tese (Titularidade em Direito Processual Penal) — Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022, p. 192. Conquanto historicamente possam ser feitas críticas à influência da inquisitio na metodologia universitária, é oportuna a ressignificação dos institutos e promover a influência inversa, trazendo para a investigação criminal a evolução da metodologia científica.

[4] FACHIN, Odília. Fundamentos de Metodologia. 5 ed. Rec. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 31.

[5] PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da investigação criminal. Coimbra: Almedina, 2010, p. 43, nota 19.

[6] DUTRA, Luiz Henrique de Araújo. Verdade e investigação: o problema da verdade na teoria do conhecimento. 2 ed. rev. Florianópolis: edição do autor, 2020, p. 137-180.

[7] Idem.

[8] PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da investigação criminal…, p. 146.

[9] O tema foi explorado em VILARES, Fernanda Regina. Ação controlada: limites para as operações policiais. Belo Horizonte, Ed. D’Placido, 2017, Item 2.1.

[10] Idem, p. 69.

[11] BRAZ, José. Investigação Criminal: a organização, o método e a prova: os desafios da nova criminalidade. 2 ed. Coimbra: Almedina, 2010, p. 11.

Autores

  • é mestre e doutora em Processo Penal pela Universidade de São Paulo (USP), pós-doutoranda em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP), procuradora da Fazenda Nacional e professora da FGVLaw e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-Brasília).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!