Opinião

Pensão alimentícia e o excepcional cabimento da ação de prestação de contas

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7 de junho de 2022, 19h27

A recente Lei Federal nº 14.344/2022, que criou mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente, em seu artigo 2º, assim conceitua: configura violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente qualquer ação ou omissão que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico ou dano patrimonial.

Em relação ao dano patrimonial, a mencionada Lei, acrescentando um inciso V, ao artigo 4º da Lei Federal nº 13.431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima de violência, explica que tal tipo de violência, a patrimonial, é entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluídos os destinados a satisfazer suas necessidades, desde que a medida não se enquadre como educacional.

No que toca especificamente à satisfação das necessidades das crianças e dos adolescentes, o artigo 22 [1] da Lei Federal nº 8.069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é claro ao determinar que a pais e/ou mães, independente de qual seja sua situação conjugal, incumbe o dever de sustento dos filhos com idade inferior a 18 anos.

É certo que pais e/ou mães, enquanto no pleno exercício do poder familiar, são usufrutuários dos bens dos filhos, detendo a administração do respectivo patrimônio [2]. Entretanto, tal usufruto e administração devem ser exercidos sempre visando atender ao princípio do superior interesse da criança ou do adolescente, não podendo pais, mães ou responsáveis, contrair, com recursos pertencentes aos infantes, em nome próprio ou dos filhos, obrigações que ultrapassem os limites das reais necessidades ou dos evidentes interesses dos destinatários da verba alimentar [3].

"O pai e a mãe, enquanto no exercício do poder familiar, são usufrutuários dos bens dos filhos (usufruto legal), bem como têm a administração dos bens dos filhos menores sob sua autoridade, nos termos do artigo 1.689, incisos I e II, do Código Civil. (…) esse munus deve ser exercido sempre visando atender ao princípio do melhor interesse do menor, introduzido em nosso sistema jurídico como corolário da doutrina da proteção integral, consagrada pelo artigo 227 da Constituição Federal, o qual deve orientar a atuação tanto do legislador quanto do aplicador da norma jurídica, vinculando-se o ordenamento infraconstitucional aos seus contornos. Assim, o fato de os pais serem usufrutuários e administradores dos bens dos filhos menores, em razão do poder familiar, não lhes confere liberdade total para utilizar, como quiserem, o patrimônio de seus filhos, o qual, a rigor, não lhes pertence". (STJ. REsp n° 1.623.098/MG, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, DJe de 23/3/2018).

Noutro giro, o ECA alerta que as medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos desses cidadãos, sujeitos de direito, forem ameaçados ou violados por falta, omissão ou abuso dos pais, mães ou responsáveis [4].

Na linha do mandamento legal acima, o Código Civil atual prevê que se pais e/ou mães abusarem de suas prerrogativas parentais, faltando aos deveres de sustento, cuidado e proteção, malversando, se apropriando, desviando a finalidade ou arruinando os bens dos filhos, em proveito próprio ou de terceiros, qualquer pessoa [5] ou o Ministério Público poderá reclamar a adoção das medidas de proteção aptas a estancar tal situação, inclusive, dependendo da gravidade, as extremas atitudes da suspensão [6] ou, em caso de reincidência, da perda do poder familiar [7].

Especificamente no que toca a pais e/ou mães, no desempenho ainda que parcial do poder familiar, a fim de possibilitar o regular exercício do dever legal, da obrigação parental de supervisionar os interesses dos filhos, o Código Civil outorga a tais figuras parentais legitimidade processual e extraprocessual para solicitarem informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem o sustento, a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos [8].

Ao interpretar a regra legal heterotópica contida no Código Civil, que concede legitimidade aos genitores para postular em juízo, com a finalidade de exercerem seu dever legal de fiscalização, mecanismo essencial para se dar concretude ao princípio do superior interesse e da proteção integral das crianças ou dos adolescentes, o Superior Tribunal de Justiça [9] [10], de forma salutar, advertiu que tal direito de ação deve ser manejado de forma excepcional, com prudência e cautela, apenas com o intuito de aferir se há ou não, no caso concreto, malversação, apropriação, desvio ou dilapidação de valores ou outros bens pertencentes a cidadãos que ainda não atingiram a idade de dezoito anos, não podendo tal via processual ser utilizada com o objetivo de acertamento de contas, perseguições ou picuinhas com guardiã (ão) ou responsável, ficando vedada, em tais processos, a possibilidade de apuração de créditos ou a preparação de futura revisional, pois os alimentos são irrepetíveis e, em regra, não admitem compensação.

Neste contexto, dúvidas não restam que, havendo indícios ou dúvida razoável de que há possível situação de perigo [11], qual seja, a ocorrência de violência patrimonial em face de crianças ou de adolescentes, é autorizado, como medida de proteção, o excepcional manejo da ação de prestação de contas, lide está que, comprovada a ocorrência de malversação, apropriação, desvio ou dilapidação de valores ou outros bens pertencentes aos filhos, poderá dar azo à decretação judicial [12] da suspensão ou até mesmo à destituição do poder familiar.

O poder-dever fiscalizatório do genitor que não detém a guarda com exclusividade visa, de forma imediata, à obstrução de abusos e desvios de finalidade quanto à administração da pensão alimentícia, sobretudo mediante verificação das despesas e dos gastos realizados para manutenção e educação da prole, tendo em vista que, se as importâncias devidas a título de alimentos tiverem sido fixadas em prol somente dos filhos, estes são seus únicos beneficiários. (…) havendo sinais do mau uso dos recursos pagos a título de alimentos ao filho menor apurar a sua efetiva ocorrência, o que, se demonstrado, pode dar azo a um futuro processo para suspensão ou extinção do poder familiar do ascendente guardião (artigo 1.637 combinado com o artigo 1.638 do CC). (STJ. REsp nº 1911030/PR, relator ministro Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 01/06/2021, DJe 31/08/2021).


[1] Lei Federal nº 8.069/1990. Artigo 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.

[2] Código Civil. Artigo 1.689. O pai e a mãe, enquanto no exercício do poder familiar: I – são usufrutuários dos bens dos filhos; II – têm a administração dos bens dos filhos menores sob sua autoridade.

[3] Código Civil. Artigo 1.691. Não podem os pais alienar, ou gravar de ônus real os imóveis dos filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz.

[4] Lei Federal nº 8.069/1990. Artigo 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados: (…). II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;

[5] Lei Federal nº 13.431/2017. Artigo 13. Qualquer pessoa que tenha conhecimento ou presencie ação ou omissão, praticada em local público ou privado, que constitua violência contra criança ou adolescente tem o dever de comunicar o fato imediatamente ao serviço de recebimento e monitoramento de denúncias, ao conselho tutelar ou à autoridade policial, os quais, por sua vez, cientificarão imediatamente o Ministério Público.

[6] Código Civil. Artigo 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha.

[7] Código Civil. Artigo 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: (…). IV – incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.

[8] Artigo 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada. (…). §5º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos, e, para possibilitar tal supervisão, qualquer dos genitores sempre será parte legítima para solicitar informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos.

[9] STJ. REsp nº 1.814.639/RS, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator para o acórdão ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe de 9/6/2020.

[10] STJ. AgInt no REsp nº 1.924.422/SP, relator ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe de 16/2/2022.

[11] Decreto Federal nº 9.603/2018. Artigo 2º Este Decreto será regido pelos seguintes princípios: (…). V – a criança e o adolescente devem receber intervenção precoce, mínima e urgente das autoridades competentes tão logo a situação de perigo seja conhecida;

[12] Lei Federal nº 8.069/1990. Artigo 24. A perda e a suspensão do poder familiar serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o artigo 22.

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