Opinião

Antecipação dos honorários do administrador judicial pelo credor

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7 de junho de 2022, 6h02

Dispõe do artigo 25, da Lei de Recuperações Judiciais e Falências (LRF) que "caberá ao devedor ou à massa falida arcar com as despesas relativas à remuneração do administrador judicial e das pessoas eventualmente contratadas para auxiliá-lo".

O Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Estado de São Paulo, todavia, consolidou o entendimento de que é lícita a determinação de adiantamento do pagamento dos honorários do administrador judicial pelo credor que requereu o pedido de falência [1]. O Tribunal paulista entende que a quantia poderá ser restituída ao credor posteriormente como crédito extraconcursal (artigo 84, II, da LRF), fato que ocorrerá, por óbvio, somente em caso de arrecadação de ativos suficientes para o pagamento.

Pela análise dos julgados das Câmara Reservadas tem-se, de fato, uma unanimidade quando ao tema, sendo ressaltado que o administrador judicial "não trabalha graciosamente" para o Tribunal. Neste sentido, veja-se excerto extraído do voto do ilustríssimo desembargador César Ciampolini, nos autos do Agravo de Instrumento nº 2217859-16.2020.8.26.0000 [2]:

"Contudo posto que o administrador judicial não trabalha graciosamente as Câmaras Reservadas de Direito Empresarial deste Tribunal consolidaram o entendimento de que o credor requerente da falência pode ser obrigado a garantir esse pagamento, obtendo, futuramente, se possível, sua restituição, como crédito extraconcursal, nos termos do artigo 84, II, da Lei de Recuperações e Falências. A conferir, os AIs. 2108710-85.2020.8.26.0000, ARALDO TELLES; 2135197-29.2019.8.26.0000, SÉRGIO SHIMURA 2183103-15.2019.8.26.0000, ALEXANDRE LAZZARINI; 2105405- 98.2017.8.26.0000, CARLOS DIAS MOTTA; 2239259-28.2016.8.26.0000, RICARDO NEGRÃO".

Da análise da ratio decidendi dos julgados que consolidaram a jurisprudência do Tribunal, percebe-se a existência de duas diferentes interpretações para aplicabilidade da tese de adiantamento da verba honorária, quais sejam: 1) quando existem indícios de que inexistirão ativos para pagamento dos honorários do administrador judicial; e 2) pelo simples pedido de falência por parte do credor, sobretudo nos casos em que a causa petendi trata-se da impontualidade ou da existência de execução frustrada (artigo 94, I e II, da LRF).

No âmbito do C. STJ, todavia, o entendimento predominante é no sentido de que o credor somente pode ser compelido ao adiantamento dos honorários caso a empresa devedora não seja localizada (REsp 1.784.646/SP, 3ª T., relatora ministra Nancy Andrighi, j. 04.06.2019). Isso porque, não sendo a devedora localizada, é possível que não serão verificados ativos para pagamento dos honorários do administrador judicial, sendo prudente que o credor antecipe a verba honorária a título de caução.

Chama atenção, todavia, o fato de que o artigo 25, da LRF, não deixa qualquer margem para que se interprete que o credor deve antecipar os honorários do administrador, não aparentando ser uma norma de interpretação aberta. A disposição legal, pelo contrário, ao que indica, é uma norma evidentemente fechada, de interpretação restritiva, senão vejamos: "Caberá ao devedor ou à massa falida arcar com as despesas […]".

Ainda, não se vislumbra qualquer outra interpretação (seja sociológica, axiológica, teleológica ou sistemática) que leve à interpretação de que o credor deve arcar, antecipadamente, com os honorários do administrador, pois parece ser muito clara a intenção do Legislador no sentido de que cabe ao devedor ou à massa falida arcar com as referidas despesas.

Não se despreza, por outro lado, que o ordenamento jurídico deve ser analisado como um todo, de modo a ser dada especial importância para a jurisprudência dos Tribunais como fonte do direito. Ou seja, a interpretação dada pela Corte Paulista e pelo C. STJ, antes da "reforma" da LRF, são válidas.

Ocorre que, como sabe, recentemente houve alteração da Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei nº 14.112/20), e o Legislador, muito embora ciente da interpretação jurisprudencial consolidada quanto ao tema, preferiu manter a disposição do art. 25, da LRF, ipsi litteris.

Ou seja, a opção do Legislador  que tem o papel de disciplinar legalmente as relações jurídicas  é de que cabe ao devedor ou à massa falida arcar com as despesas do administrador judicial.

Assim, com o devido respeito, a literalidade do artigo 25, da LRF, deve ser respeitada, sob pena de negativa de vigência ao princípio da legalidade.

Ora, não cabe ao Judiciário julgar em dissonância com a lei quando a intenção do Legislador é clara. Isso porque, como dito, 1) a norma do artigo 25, da LRF, não deixa qualquer margem de dúvidas quanto ao tema; e 2) o Legislador, ciente da intepretação jurisprudencial quanto ao tema, mesmo após as discussões legislativas quando do projeto de "reforma" da LFR, preferiu manter inarredável a disposição artigo 25.

Portanto, com a nova LRF, tem-se que a interpretação de que o credor deve arcar com a remuneração do administrador configura-se como inconstitucional atuação do Poder Judiciário como Legislador positivo [3].

Ao Judiciário é possível atuar como Legislador negativo (não aplicando ou extirpando normas incompatíveis com o ordenamento jurídico), sendo inviável o desempenho de modo a inovar no ordenamento, alterando interpretação inequívoca da norma.

Isso porque, pelo princípio da legalidade (artigo 5, II, da CF), "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", sendo importante destacar que a atuação como Legislador positivo afronta, também, o princípio da separação de poderes (artigo 2º, da LRF), um dos pilares básicos e inalteráveis do da República Federativa (artigo 60, §4º, III, da CF).

Lado outro, impor ao Jurisdicionado uma obrigação que, pela lei, não lhe pertente, afronta o princípio da segurança jurídica, tanto em seu aspecto objetivo (artigo 5º, XXXVI, da CF), quanto em seu aspecto subjetivo (proteção da confiança).

Como se sabe, o cidadão acredita e espera que os atos praticados pelo poder público serão mantidos e respeitados. Ou seja, o Jurisdicionado confia que o artigo 25, da LRF, por não ter sido modificado com a alteração da LRF, de modo a ser claro, portanto, a intenção do Legislador de que cabe ao devedor ou à massa falida o pagamento dos honorários, seja respeitado.

Em outras palavras, o credor realiza o pedido de falência com base na lei e espera, pelo princípio da legalidade, que a disposição legal seja cumprida pelo Judiciário. Isso porque cabe ao Poder Legislativo, na qualidade de representante da vontade do povo, a função de legislar,  sendo que o cidadão Jurisdicionado somente é "obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

Assim, ao pedir a falência de determinado devedor, o credor não pode ser surpreendido com a imputação de uma obrigação não prevista em lei, em afronta à legítima confiança de que o ato normativo não alterado, ainda que contrário ao entendimento jurisprudencial antes formado, será aplicado pelo Poder Judiciário de acordo a intepretação clara nele prevista. 

É importante ressalvar, ainda, que não está se falando que o administrador judicial deve arcar com o risco de não receber a verba advocatícia, mas que a lei deve ser aplicada nos termos da intenção legiferante, porquanto a legalidade se trata de garantia mínima inerente ao Estado democrático de Direito.

Mais a mais, a interpretação de que o credor deve arcar, exclusivamente, antecipadamente, com os honorários do administrador judicial, desencorajará a realização do pedido de falência, estimulando a manutenção de sociedades empresariais improdutivas, gerando prejuízo para o sistema econômico como um todo, em dissonância com os objetivos do procedimento falimentar, os quais, frise-se, possuem natureza social (jamais subjetiva), quais sejam 1) preservação e a otimização da utilização produtiva dos bens, dos ativos e dos recursos produtivos, inclusive os intangíveis da empresa; 2) permitir a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia; 3) fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica, nos termos do artigo 75, da LRF.

Lado outro, o credor já tem o prejuízo decorrente do próprio inadimplemento do devedor, não sendo razoável ter mais um dispêndio inesperado, como é o caso do adiantamento dos honorários à mercê da disposição legal.

A atividade do administrador judicial no procedimento falimentar, por ser imprescindível, conta com diversas garantias decorrentes da própria lei (as quais, frise-se, são evidentemente mais robustas que a do credor comum), como o fato de o seu crédito ser considerado extraconcursal, sendo pago com preferência, inclusive mediante recursos disponíveis em caixa (art. 84, I-A, e §1º, da LRF), sendo prudente a manutenção do entendimento literal do artigo 25, da LRF.

Diante do exposto, mantido, pela nova LRF, que o devedor ou à massa falida devem arcar com os honorários do administrador judicial, ainda que haja anterior jurisprudência consolidada quanto ao tema, não é lícito que o Judiciário continue interpretando que o credor deve antecipar a verba honorária, atuando inconstitucionalmente como Legislador positivo, desestimulando, assim, os pedidos falimentares, os quais, como visto, possuem cunho social de extrema relevância.


[1] TJSP, Agravo de Instrumento nº 2221903-20.2016.8.26.0000, relator desembargador HAMID BDINE, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 09/03/2017;
TJSP, Agravo de Instrumento n. 2204495-11.2019.8.26.0000; relator desembargador CESAR CIAMPOLINI, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 11/12/2019;
TJSP, Agravo de Instrumento nº 2239259-28.2016.8.26.0000, reator desembargador RICARDO NEGRÃO, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 28/08/2017.

[2] TJSP, Agravo de Instrumento nº 2217859-16.2020.8.26.0000, relator desembargador CÉSAR CIAMPOLINI, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 30.11.2020.

[3] "A jurisprudência das Turmas desta Corte é firme no sentido de que é vedado a este Tribunal, via de declaração de inconstitucionalidade de parte de dispositivo de lei, alterar o sentido inequívoco da norma. A Corte Constitucional só pode atuar como legislador negativo. Não, porém, como legislador positivo" (AI 153.334 AgR-EDv-AgR, relator ministri Maurício Corrêa, j. 30/10/1995).

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