Opinião

Evolução do conceito de cegueira deliberada

Autor

  • Ricardo Ribeiro Velloso

    é advogado especializado em crimes econômicos e financeiros e pós-graduado em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo (ESMP) e em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal)/IBCCrim.

6 de junho de 2022, 12h09

As discussões sobre a cegueira deliberada remontam ao século 19, mais especificamente ao ano de 1861, na Inglaterra, no julgamento Regina v. Sleep. Ali, mesmo não sendo explícito, começa a germinar a ideia de que a conduta deliberada em não obter conhecimentos sobre possíveis ilicitudes mereceria a mesma resposta do Estado em relação a quem tem esse conhecimento.

Entretanto, é somente em 1899, em decisão proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Spurr v. United States, é que se tem a menção expressa a willful blindness (cegueira deliberada), também conhecida como conscious avoidance (ignorância consciente) e ostrich instructions (instruções de avestruz). Essa doutrina foi inicialmente aplicada em delitos de falência, contudo, a partir da década de 1970, seu uso passou a ser mais generalizado, principalmente em razão do combate ao narcotráfico.

No Brasil, para a ocorrência de crime de lavagem de dinheiro previsto na Lei nº 9.613/98 pressupõe-se a existência de um crime antecedente. Dessa forma, o erro ou o desconhecimento da infração anterior toma contornos mais substanciais.

Determinar a origem delitiva dos bens e o conhecimento dessa origem criminosa por parte do autor da lavagem são alguns dos principais debates com relação à lavagem de dinheiro enfrentados atualmente pelos tribunais do mundo inteiro, cada um a sua maneira.

Por ser a lavagem de dinheiro um crime essencialmente doloso em razão da necessidade básica de se ter conhecimento de crime antecedente, é necessário que o autor da lavagem tenha consciência e vontade livre em participar da conduta típica.

Dessa forma, sendo a consciência da origem ilícita dos recursos um elemento do tipo, é importante determinar o grau de conhecimento necessário sobre a origem desses bens para que uma pessoa possa ser acusada de lavagem de dinheiro.

Entretanto, a prova do elemento subjetivo é difícil, uma vez que ocorre indiretamente, através de provas circunstanciais que determinam qual era a intenção, ou o grau de conhecimento do autor sobre a origem dos bens. No caso do crime de lavagem de dinheiro, a legislação não traz qualquer indicação objetiva sobre como determinar a presença do elemento subjetivo.

Existem duas linhas de pensamento para solucionar essa questão. Sustentam alguns que é necessário o pleno conhecimento (dolo direto) da origem ilícita dos recursos para a imputação por lavagem; em posição diametralmente oposta há os que afirmam que a simples suspeita da origem criminosa dos bens (dolo eventual) basta para a existência do crime de lavagem de dinheiro.

O dolo eventual para o cometimento do crime de lavagem de dinheiro é aceito na Alemanha, na Suíça e na Espanha. Em Portugal, exige-se a ocorrência do dolo direto, enquanto na Itália a legislação não especifica qual a classe de dolo necessária para a ocorrência do crime de lavagem de capitais.

A melhor solução para a legislação nacional parece ser a proposta pela primeira corrente, a qual prega a imputação do crime de lavagem de dinheiro ao agente que tinha plena consciência da origem ilícita dos recursos. Entretanto, tal posicionamento não foi adotado no rumoroso julgamento da Ação Penal 470/MG, conhecido como "caso do Mensalão", que admitiu a possibilidade do dolo eventual na prática de lavagem, conforme veremos adiante, julgamento que foi utilizado como paradigma para os futuros processos de lavagem de capitais, como o da "operação lava jato".

Esse posicionamento decorre da seguinte análise: diferentemente de outros tipos penais, o legislador não menciona expressamente a possibilidade de admissão do dolo eventual, uma vez que não utiliza a expressão "dever saber", aplicada sempre que "o comportamento típico se pressupõe a ciência de um estado/fato/circunstância anterior, e o legislador almeja a incidência da norma penal em toda sua extensão (dolo direto e eventual)".

Admitida a hipótese de dolo eventual, para sua ocorrência é necessário que, mesmo não existindo a condição volitiva do resultado, nem a consciência da ilicitude dos recursos, o agente tenha a real noção do contexto no qual está inserido, ou seja, o de atuar em uma área na qual a possibilidade de lavagem de dinheiro é real. Assim, ele poderia prever o resultado criminoso e ter a condição de anuir quanto à possibilidade de sua ocorrência.

O Supremo Tribunal Federal, no acórdão da Ação Penal nº 470, admitiu a possibilidade de dolo eventual na prática de lavagem de dinheiro, principalmente nos casos de "terceirização da lavagem".

Esse argumento é construído a partir da análise da Lei nº 9.613/98, artigo 1º, uma vez que "não exige elemento subjetivo especial", e do item 40 da Exposição de Motivos nº 692/1996, o qual admite a possibilidade do "dolo eventual somente para a hipótese do caput do artigo", combinados com o artigo 18, I, do Código Penal.

Utilizando-se do Direito Comparado, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, apresentou em suas razões os preceitos desenvolvidos pela doutrina da cegueira deliberada (willful blindness), equiparando-a ao dolo eventual. Uma das justificativas dessa equiparação se dá em razão de que aquele que, voluntariamente, cria mecanismos para não ter conhecimento da origem dos bens manipulados, teme e acredita, ao menos como possibilidade, que os bens são de origem ilícita.

Diante da dificuldade, quando não da impossibilidade em provar o grau de conhecimento do autor do crime de lavagem de dinheiro quanto à origem dos bens manipulados, acabou-se reduzindo as exigências no âmbito subjetivo, assim como ocorreu em diversos países, inclusive nos Estados Unidos.

Importante salientar que nos Estados Unidos, como regra geral, exige-se um requisito subjetivo muito estrito, uma vez que deve ser provado o conhecimento da origem delitiva dos bens (knowlwdge), rechaçando-se toda tentativa de ampliar esse requisito. A exceção ocorre quando o agente atua de forma a criar uma ignorância intencional sobre a origem dos recursos empregados (willful blindness).

Muito embora tenha sido admitida pelo Supremo Tribunal Federal a possibilidade de ocorrência do crime de lavagem de dinheiro por dolo eventual fundamentada nos critérios doutrinários da cegueira deliberada, o que de certo modo é justificável do ponto de vista político-criminal e pela dificuldade envolvida em demonstrar a prova no dolo fica evidente os riscos desse posicionamento.

O Supremo Tribunal Federal ao interpretar a Lei nº 9.613/98 sob os princípios da doutrina da cegueira deliberada, sem ter elencado os limites para sua utilização, amplia a discricionariedade concedida ao magistrado ao analisar o caso concreto, aumenta a abrangência da norma e gera insegurança.


BIBLIOGRAFIA
BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos processuais e penais: comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: RT, 2012.
BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de blanqueo de capitales. 2.ed. Navarra: Aranzadi, 2002.
PALMA HERRERA, José Manuel. Los delitos de blanqueo de capitales. Madrid: Edersa, 2000.
RAGUÉS i VALLÈS, Ramon. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007.

Autores

  • é advogado criminalista, especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal).

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