Defesa da Concorrência

Atualizações antitruste da Comissão Europeia sobre acordos verticais

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6 de junho de 2022, 8h03

Questões antitruste derivadas de contratos e relações verticais entre agentes em diferentes elos de uma cadeia produtiva, como fabricantes e distribuidores, estão entre as mais complexas do direito concorrencial. Ao mesmo tempo, trata-se de um tipo de relação contratual das mais comuns, e, portanto, entre as mais relevantes para empresas e seus administradores.

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Diante dessa constatação, algumas autoridades de concorrência mundo afora estabeleceram, ao longo dos anos, guias e repositórios de precedentes sobre esse tema, a fim de orientar, dar segurança jurídica e promover compliance entre agentes de mercado no que diz respeito às normas antitruste.

A complexidade dessas relações contratuais verticais e os consequentes desafios interpretativos sob uma ótica concorrencial cresceram significativamente com a digitalização da economia, gerando novas questões e alterando antigos entendimentos.

Em razão disso, em 10 de maio de 2022, a Comissão Europeia publicou uma versão atualizada de seu Regulamento de Isenção por Categoria dos Acordos Verticais (Ricav) [1], junto a novas Orientações Relativas às Restrições Verticais (Orientações Verticais) [2], que entrarão em vigor no dia 1 de junho de 2022.

O Ricav informa critérios para que acordos verticais sejam isentos da proibição do artigo 101, inciso 1, do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE). Tal dispositivo delineia arranjos caracterizados como restritivos à concorrência e, a princípio, proibidos pelo direito antitruste europeu (como fixação de preços, divisão de mercado ou discriminação injustificada de parceiros comerciais). O inciso 3 do mesmo artigo, entretanto, prevê critérios cumulativos para que condutas sejam excluídas do escopo dessa proibição. A exclusão que dá licitude à prática ocorre quando os efeitos deletérios à concorrência são improváveis, e quando as eficiências derivadas da conduta claramente superam eventuais efeitos negativos [3]. O Ricav apresenta tipos de arranjos verticais que preenchem automaticamente os critérios de exclusão de ilicitude. As Orientações Verticais, por sua vez, fornecem diretrizes sobre a sua aplicação, bem como para a análise de relações verticais em geral — ou seja, mesmo aquelas que não integram as categorias mencionadas no Ricav.

A atualização desses instrumentos regulatórios se fez necessária para adequar a análise do órgão concorrencial europeu a um contexto marcado pela evolução do e-commerce e do aumento do número e da relevância de players digitais. Objetiva também esclarecer e simplificar as diretrizes a fim de reduzir os custos de compliance, especialmente para pequenas e médias empresas; bem como endereçar discussões sobre acordos de sustentabilidade, à luz do crescente destaque das políticas ESG [4] no mundo corporativo. Ela é fruto de um processo de revisão que vem ocorrendo desde setembro de 2020, por meio de consultas públicas, relatórios de especialistas e discussões entre o Diretório-Geral da Concorrência com outras autoridades concorrenciais e interessados.

Apesar de a legislação brasileira não possuir um regulamento análogo ao Ricav, é certo que sua atualização pode ser um parâmetro importante para empresas nacionais, considerando a relevância do posicionamento da Comissão Europeia no cenário antitruste mundial, e sua referência para o Brasil. Em especial, é bem provável que o tratamento dado a sistemas de distribuição, cláusulas de não concorrência, preços de revenda, entre outros temas, auxilie a nortear a atuação do Cade em relação a essas práticas.

Apresentamos um breve resumo das principais mudanças do novo Ricav. Ressalta-se que, assim como no regulamento anterior, os tipos de acordos abordados só farão jus à isenção nele prevista se as partes detiverem participação de mercado igual ou inferior a 30%. O diploma especifica que, "acima do patamar de 30%, não se pode presumir que eventuais benefícios decorrentes do arranjo vertical serão aptos a compensar as desvantagens à concorrência por ele produzidas" [5]. Assim, caso os agentes envolvidos detenham participação superior a esse percentual, tal arranjo não integrará o escopo de isenções do Ricav — o que não significa que ele será automaticamente considerado ilícito, apenas indica que as partes terão o ônus de comprovar o preenchimento dos critérios cumulativos do artigo 101, inciso 3, já que não haverá uma presunção automática nesse sentido.

Sistemas de distribuição dual [6]
São aqueles em que fornecedores vendem seus produtos/serviços tanto via distribuidores, quanto diretamente a seus clientes finais. Tais sistemas eram isentos nos termos do antigo Ricav, contanto que as partes não concorressem no mercado a montante. O novo diploma traz algumas modificações em sua abordagem:

  • Extensão a outros níveis da cadeia produtiva: o novo regulamento estende a isenção, anteriormente aplicável somente a sistemas de distribuição em que o fornecedor era o fabricante do produto, também àqueles em que os fornecedores atuam como atacadistas e importadores no mercado a montante.
  • Novas regras para trocas de informação: nos termos do novo Ricav, sistemas de distribuição dual integrarão o escopo de isenção do regulamento somente quando as trocas de informações entre as partes forem "diretamente relacionadas à implementação do acordo, e/ou necessárias para melhorar a produção ou distribuição dos produtos/serviços". Nesse sentido, as Orientações Verticais fornecem um rol exemplificativo de trocas do gênero, tais como informações sobre preços atuais e preços recomendados; dados agregados relativos a preferências e feedback dos consumidores (com base em suas compras); informações sobre volume de vendas, inventário, dados de marketing, entre outros [7].
  • Exclusão das plataformas "híbridas" do escopo da isenção, por exemplo, players que atuam como intermediários de vendas online e também com vendas diretas de produtos/serviços concorrentes (como marketplaces). Isso porque, nos termos das Orientações Verticais, em certos contextos tais agentes podem ter capacidade e incentivos para promover condutas anticompetitivas [8].

Cláusulas de Paridade (Most favored nation clause) no varejo online [9]
No contexto de varejo online, cláusulas de paridade, ou cláusulas de nação mais favorecida (MFN) proíbem que agentes interessados em vender produtos ou serviços em uma plataforma virtual ofereçam condições mais favoráveis para venda dos mesmos produtos/serviços em seus próprios canais, ou em canais de venda/sites concorrentes. Diferentemente do regulamento anterior, que previa uma isenção geral para esse tipo de dispositivo, integram o escopo do novo Ricav apenas as versões mais restritas, que estipulam uma proibição do tipo MFN somente em relação ao canal de venda próprio do agente, mas permitem o oferecimento de melhores condições em plataformas e outros canais de venda online concorrentes. Não obstante, em mercados onde o número de intermediários de vendas online é limitado, as Orientações Verticais especificam que mesmo cláusulas de paridade restritas podem afetar a concorrência, tendo efeito análogo àquele de dispositivos mais amplos. Nestes mercados mais concentrados, portanto, esse tipo de previsão deverá ser avaliado com base nos critérios do artigo 101, inciso 3 do TFUE (listados acima) [10].

Restrições a vendas em sistemas de distribuição
O novo Ricav traça distinções entre sistemas de distribuição exclusiva e seletiva:

  • Distribuição exclusiva [11]: o regulamento introduz o conceito de exclusividade "compartilhada", permitindo que um fornecedor determine até cinco distribuidores exclusivos por território ou por grupo de consumidores. De acordo com as Orientações Verticais, este limite visa evitar o free riding, isto é, situações em que distribuidores procuram se beneficiar de investimentos alheios, em vez de realizar seus próprios investimentos para a promoção dos produtos comercializados.
  • Distribuição seletiva [12]: o novo Ricav também amplia a proteção de sistemas de distribuição seletiva, ou seja, aqueles em que o fornecedor seleciona distribuidores com base em critérios específicos. Nesse sentido, permite que fornecedores proíbam que distribuidores por eles selecionados revendam seus produtos a distribuidores "não autorizados" (por tanto, não integrantes do sistema de distribuição seletiva). A proibição, contudo, deve ser circunscrita ao território de funcionamento do sistema de distribuição seletiva.
  • A fim de preservar os incentivos de investimento na promoção de seus produtos, fornecedores podem determinar que suas exigências sejam repassadas a "elos inferiores" da cadeia de distribuição. Assim, podem exigir que seus distribuidores imponham as mesmas condições (como não revender a distribuidores não autorizados, ou não possuir mais de cinco distribuidores exclusivos por território, por exemplo), a seus respectivos clientes.

Restrições a vendas online
No ambiente de vendas online, o novo Ricav também admite que fornecedores imponham maiores restrições a seus distribuidores, ressalvando, contudo, que tais exigências não podem obstar o uso efetivo da internet como canal de vendas pelo distribuidor, ou pelos clientes deste último [13]. As Orientações Verticais fornecem alguns exemplos de restrições permitidas [14], tais como impor requisitos relativos à aparência e à qualidade do canal de vendas online; proibir vendas dos produtos em marketplaces; exigir que o revendedor tenha lojas físicas; e também que o revendedor venda uma quantidade mínima dos produtos/serviços offline, a fim de assegurar a operação eficiente de suas lojas físicas.

Dual pricing [15] e equivalência online-offline [16]

  • A possibilidade de fornecedores estabelecerem preços distintos conforme o canal de vendas utilizado por seus distribuidores (físico ou online), antes proibida, passa a ser amparada pelo novo Ricav, desde que tenha por objetivo incentivar ou recompensar o investimento destinado à manutenção e à utilização do respectivo canal de venda.
  • Ainda, as novas diretrizes eliminam a obrigatoriedade de que requisitos qualitativos exigidos de distribuidores online e offline sejam equivalentes, dadas as especificidades de cada canal de vendas.

Cláusulas de não-concorrência [17]
A fim de endereçar as reclamações atinentes à rigidez do regulamento anterior em relação à duração das cláusulas de não concorrência, as Orientações Verticais flexibilizam a isenção para este tipo de dispositivo. Nesse sentido, apesar de frisar que "cláusulas de não concorrência de duração indeterminada ou superior a cinco anos não fazem jus à isenção", determinam que permanecem isentas cláusulas em acordos tacitamente renováveis por períodos superiores a cinco anos, contanto que o distribuidor tenha meios efetivos de encerrar o contrato de distribuição.

Acordos de sustentabilidade [18]
As novas Orientações Verticais esclarecem que objetivos sustentáveis podem configurar eficiências nos termos do inciso 3 do artigo 101 do TFUE [19] e, consequentemente, fazer com que o acordo não configure violação à legislação concorrencial. Nessa linha, também ilustram possíveis medidas passíveis de serem implementadas, como a exigência de obrigações de exclusividade para incentivar empresas de energia a investirem em fontes renováveis, na medida em que a exclusividade assegure à companhia um número suficiente de consumidores comprometidos, escala e um retorno sobre seus investimentos "sustentáveis".

Resultados
De maneira objetiva e abrangente, as novas diretrizes abordam temas recorrentes nas relações comerciais atuais — sobretudo no que diz respeito ao fornecimento e à distribuição pela internet, que cresceu exponencialmente desde 2010. Ao detalhar situações e exemplos concretos, os regulamentos ampliam a margem de segurança jurídica para a atuação das empresas, e contribuem para mitigar falsos positivos e negativos na análise do órgão concorrencial europeu (isto é, condenações de condutas não prejudiciais à concorrência, ou ausência de fiscalização de práticas efetivamente anticompetitivas).

Será interessante observar o impacto prático destas diretrizes no entendimento do Cade ao avaliar atos de concentração ou condutas verticais. Igualmente, o Ricav e as Orientações Verticais podem ser boas referências para companhias que operam no contexto nacional.

 


[1] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/eli/reg/2022/720/oj. Acessado em 22/5/2022.

[3] Os critérios de exclusão de ilicitude da conduta são: ela contribui para melhorar a produção ou distribuição dos produtos, ou para promover progresso técnico/econômico; reserva parte equitativa do lucro resultante aos consumidores; impõe apenas restrições indispensáveis à consecução de seus objetivos; e não elimina a concorrência relativa a elementos substanciais dos produtos em questão. Vide artigo 101, inciso 3 do TFUE.

[4] "Environmental and Social Governance", isto é, políticas relativas a aspectos socioambientais e de governança societária das empresas.

[5] Vide parágrafo 9 do preâmbulo do Ricav.

[6] Vide parágrafos 12, 13 e 14 do preâmbulo do Ricav.

[7] Vide parágrafo 99 das Orientações Verticais

[8] Vide parágrafo 105 das Orientações Verticais

[9] Vide parágrafo 16 do preâmbulo do Ricav

[10] Vide parágrafos 371 a 375 das Orientações Verticais

[11] Vide artigo 1º, alínea "h", que define sistemas de distribuição exclusiva como aqueles em que o fornecedor aloca as vendas em determinado território ou a determinado grupo de consumidores exclusivamente para si, ou a um máximo de 5 distribuidores, e proíbe que os demais distribuidores de seus produtos vendam nestas áreas/a estes grupos; e artigo 4º, alínea "b" do Ricav.

[12] Vide artigo 1º, alínea "g", e artigo 4º, alínea "c", item 2, do Ricav

[13] Vide artigo 4º, alínea "e" do Ricav

[14] Vide parágrafo 208 das Orientações Verticais

[15] Vide parágrafo 209 das Orientações Verticais

[16] Vide parágrafo 235 das Orientações Verticais

[17] Vide parágrafo 248 das Orientações Verticais

[18] Vide parágrafo 9 das Orientações Verticais

[19] Vide nota de rodapé nº 7, acima

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