Opinião

O filtro da relevância para o recurso especial

Autor

  • Guilherme Veiga Chaves

    é especialista em Direito Constitucional Internacional pela Universitá di Pisa / UNIPI Itália mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco advogado sócio do escritório Gamborgi Bruno & Camisão.

4 de junho de 2022, 11h05

O Superior Tribunal de Justiça tem a função constitucional de interpretar a lei nos termos da Constituição, uniformizar a jurisprudência e editar precedentes. Isto significa, antes de tudo, conferir sentido à lei, já que a Constituição, ainda que também seja compreendida e vista com determinado significado, no processo interpretativo, se coloca como parâmetro interpretativo e não como o objeto a que a atividade de interpretação busca atribuir sentido. A função de interpretar a lei não pode se separar da função de interpretar a lei nos termos da Constituiçã[1].

A ordem jurídica, como é obvio, não é formada apenas pelas leis, mas também pelas decisões judiciais. Apenas o sistema que privilegia os precedentes pode garantir a coerência do direito, a previsibilidade e a igualdade [2].

Para bem decidir o STJ deve promover uma seleção de casos a serem decididos, cujo interesse social, econômico e político transcende as partes.

PEC nº10/2017
A PEC de 2017 (PEC nº 209, de 2012, na Câmara) teve origem em proposição aprovada pelo Pleno do Superior Tribunal de Justiça em março de 2012, com a participação do saudoso ministro Teori Zavascki, responsável pela comissão que elaborou seu anteprojeto [3].

O filtro de relevância, aprovado no Senado em 2021, em dois turnos (PEC 10/2017  conhecida como PEC da Relevância), acrescenta os §§1º e 2º ao artigo 105 da Constituição e renumera o parágrafo único para instituir, no recurso especial, o requisito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional. 

Dispõe o §1º que o recorrente, no recurso especial, deve demonstrar a relevância das questões de direito infraconstitucionais discutidas no caso, para que o STJ examine a admissão do recurso, somente não podendo conhecer por esse motivo pela manifestação de 2/3 dos membros do órgão competente para julgamento.

Por sua vez, no seu §2º, pré-define os casos em que a relevância será presumida: a) ações penais; b) ações de improbidade administrativa; c) ações cujo valor ultrapasse 500 salários-mínimos; d) ações que possam gerar inelegibilidade; e) hipóteses em que o acórdão contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça; f) outras hipóteses previstas em lei [4].

Conforme consta do Parecer Nº 266, DE 2021-Plen/SF [5], firmado pelo senador Rogério Carvalho, que a presunção de relevância havia sido rejeitada na CCJ, na Emenda nº1-CCJ [6]. Contudo, pela Emenda nº — Plen, entendeu-se necessário que o Constituinte reformador já defina objetivamente no texto constitucional algumas hipóteses de presunção de relevância do recurso especial. Além disso, deve o texto constitucional abrir margem para que outras hipóteses previstas em lei possam ter previsão de relevância como forma de se possibilitar a correta calibragem posterior do filtro recursal [7]. Ainda segundo o parecer [8], justifica-se a presunção de relevância em razão dos seguintes fatos:

"Há fortes razões para o estabelecimento das presunções de relevância. Algumas das hipóteses mencionadas tratam de direitos fundamentais, como o direito à liberdade e os direitos políticos, questões que entendemos não devem ser impedidas de chegar ao exame do STJ. No caso do valor de alçada proposto, é estabelecida uma presunção de relevância econômica para a análise dos recursos especiais, medida coerente com a proposta de filtro idealizada. Ao prever a presunção de relevância nas hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, busca-se manter no recurso especial a função uniformizadora da jurisprudência nacional por parte do STJ" [9].

Verifica-se que por uma opção legislativa não é dado ao STJ rejeitar de plano a relevância em algumas matérias.

Direito intertemporal para aplicação da nova regra
A relevância será exigida nos recursos especiais interpostos após a entrada em vigor da presente emenda constitucional, oportunidade em que a parte poderá atualizar o valor da causa para os fins de que trata o artigo 105, §2º, III, da Constituição, conforme dispõe o artigo 2º, da PEC.

Importância do filtro da relevância
O filtro de relevância conferirá ao Superior Tribunal de Justiça poder para não decidir todos os casos que lhe são levados a partir de afirmação de violação da lei federal. Embora isso seja evidente, para o bom funcionamento da Corte de Precedentes, é oportuno sublinhar que a Corte não terá o dever de analisar o mérito de recursos especiais, ainda que esses tenham obedecido os requisitos extrínsecos e intrínsecos de admissibilidade recursal, até então vigentes. 

Há, portanto, pelo filtro da relevância, verdadeiro poder virtuoso de não decidir toda e qualquer causa. Esse poder, como é óbvio, representa parcela do poder deferido à Corte para a tutela da ordem jurídica infraconstitucional.

A discussão do filtro de relevância para conhecimento do recurso especial, ou seja, dar ao STJ o poder de não decidir, nessa dimensão, não pode ser visto apenas como o oposto de decidir. Esta não decisão tem valor positivo autônomo. A mera impossibilidade do uso do poder de decidir, não deve ser confundido com o poder de não decidir. Em outras palavras, não decidir é algo relevante.

Mais do que isso, não decidir tem significado dotado de qualidade positiva, na medida em que para uma corte de precedentes o caso concreto posto em julgamento é um ponto de partida para a formação do precedente.

O interesse e a relevância do julgamento não podem ficar restritos às partes. Deve ter repercussão social, econômica, jurídica ou política. Dito de outra forma, decidir o que importa é, sem dúvida, deixar de decidir os casos cuja solução interessa somente às partes ou não tem relevo nas perspectivas econômica, política, social ou jurídica [10].

Dotar o STJ do poder para bem decidir, mediante a instituição do filtro da relevância, é declarar que há fatos com dimensão econômica, política e social que transcendem o interesse inter partes. Ou seja, a análise sobre a importância do thema decidendum e seu impacto social, político e econômico transcende o caso singular [11].

O filtro da relevância é instrumento de eficiência, atuando em favor da segurança jurídica, da coerência e do bom funcionamento do sistema judicial.

Conclusão
A predefinição dos casos em que a relevância da questão federal será presumida decorre dos seguintes fatores: a) limitar o poder discricionário do STJ na seleção de casos que irá julgar; b) diminuir o subjetivismo do que é uma questão relevante; c) controlar questões econômicas, jurídicas e sociais relevantes decididas pelos Tribunais de 2ª instância [12].

Caso aprovado o filtro da relevância, o STJ passará a justificar o motivo pelo qual entende que uma questão é, ou não, relevante, mas também deverá apresentar razões para deixar de decidir um caso que, a princípio, pode ser visto como relevante.

A justificativa tem maior importância quando a relevância não é reconhecida, especialmente nos casos em que ela está predefinida no §1º. Dentre as justificativas para rejeitar a relevância podemos citar a necessidade de esclarecimento dos fatos ou de maior debate sobre a questão nos tribunais e, sobretudo, da percepção de que a questão ainda deve ser discutida pela população e contar com decisão parlamentar.

O filtro da relevância busca uma função sistêmica para redução do número de casos a serem submetidos ao STJ, focado na questão qualitativa da discussão (relevância jurídica, social, econômica ou política) [13] e quantitativa (casos repetitivos).


[1] MARINONI, Luiz Guilherme. A definição da interpretação da lei pelo STJ como requisito para a atuação do STF. Revista de Processo| vol, v. 311, n. 2021, p. 167, 2021.

[2] MARINONI, Luiz Guilherme et al. Precedentes obrigatórios. Palestra Editores, 2013.

[3] O filtro de relevância ou arguição de relevância foi inicialmente prevista na Emenda Regimental (ER) nº 3/1975 ao Regimento Interno do STF (RI/STF) numa época em que o recurso extraordinário se destinava à guarda da Constituição e leis federais (CF/1969, artigo 119, III).

[4] Proposta de Emenda Constitucional nº10, em anexo em pdf.

[5] Parecer nº Nº 266, DE 2021-PLEN/SF na íntegra em anexo em pdf.

[6] Pela Emenda nº1º CCJ, que foi rejeitada na CCJ, de autoria do Senador Flexa Ribeiro, buscava-se prever no texto as seguintes hipóteses de presunção de relevância das questões objeto do recurso especial: 1) quando o valor da causa objeto do recurso especial fosse igual ou superior a 200 vezes o valor do salário-mínimo vigente à data da propositura da ação; 2) quando do julgamento da causa pudesse resultar inelegibilidade do réu; 3) quando se tratasse de ação penal; e iv) quando a decisão recorrida desse à lei federal interpretação divergente da que lhe houvesse atribuído outro tribunal.

[7] Parecer na íntegra em anexo em pdf.

[8] O parecer conclui pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição nº 10, de 20170, com acolhimento parcial da Emenda nº 3-PLEN, e rejeição das Emendas nºs 1-CCJ e 2-CCJ.

[9] Parecer nº 266, DE 2021-PLEN/SF na íntegra em anexo em pdf.

[10] MARINONI, Luiz Guilherme. A definição da interpretação da lei pelo STJ como requisito para a atuação do STF. Revista de Processo| vol, v. 311, n. 2021, p. 172, 2021.

[11] CABRAL, Antonio do Passo. Requisitos de relevância no sistema recursal alemão. DANTAS, B.(Org.). Repercussão Geral da Questão Constitucional. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, p.72, 2014.

[12] Há um trabalho acadêmico pelo qual a Ministra Isabel Gallotti e os Ministros Sérgio Kukina e Paulo de Tarso Sanseverino foram entrevistados sobre o filtro de relevância do STJ, com destaque para o apêndice do trabalho, p. 75-99, e no corpo do trabalho p. 64-66. (MATOS, Amanda Visoto de. Os limites da PEC da relevância (PEC nº 209/2012) como uma possível solução para a crise do Superior Tribunal de Justiça. 2017. Disponível em https://bdm.unb.br/handle/10483/18819. Acesso em 18/05/2022.

[13] "Filtros de relevância são aqui definidos como mecanismos qualitativos de seleção de causas a serem julgadas". (BARROSO, Luís Roberto; REGO, Frederico Montedonio. Como salvar o sistema de repercussão geral: transparência, eficiência e realismo na escolha do que o supremo tribunal federal vai julgar. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 7, nº 3, p. 697, 2017.

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