Paradoxo da Corte

Inequívoca conquista pelo TJ-SP da razoável duração dos recursos

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

2 de junho de 2022, 9h07

Desde o segundo ano de bacharelado, o meu saudoso professor Antonio Carlos de Araújo Cintra afirmava, em tom de exortação, que o maior problema do jurisdicionado, além de ter que suportar o ônus da própria demanda, consistia na demora do processo. E então repetia, invocando Rui Barbosa, o triste bordão da famosa Oração aos Moços, "justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta"!

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E, de fato, já no exercício profissional de advogado, durante sucessivas décadas presenciei inúmeras e repetidas vezes a angústia do meu cliente — e igualmente minha — de ver os anos passarem, longe da decisão de primeiro grau, ou, mesmo, como ainda ocorre hoje, a pendência de um recurso que ultrapassa um lustro, sem qualquer perspectiva de julgamento, perante os tribunais superiores.

É lugar comum dizer que pronunciamento judicial que decide uma controvérsia no momento oportuno proporciona às partes, aos interessados e aos operadores do direito grande satisfação. Até mesmo aquele que sai derrotado não deve lamentar-se da pronta resposta do Judiciário, uma vez que, sob o prisma psicológico, o possível e natural inconformismo é, sem dúvida, mais tênue do que o excessivo e intolerável prolongamento da luta processual.  

É inegável, por outro lado, que, quanto mais distante da ocasião tecnicamente propicia for proferida a sentença, a sua respectiva eficácia será proporcionalmente mais fraca e ilusória. De tal sorte, um julgamento tardio irá perdendo progressivamente seu sentido reparador, na medida em que se postergue o momento do reconhecimento judicial dos direitos.

Não se pode olvidar, nesse aspecto, a existência de dois postulados que, em princípio, são opostos: o da segurança jurídica, exigindo um lapso temporal razoável para a tramitação do processo ("tempo fisiológico"), e o da efetividade deste, reclamando que o momento da decisão final não se procrastine mais do que o necessário ("tempo patológico"). Obtendo-se uma simetria destes dois regramentos — segurança/celeridade — emergirão as melhores condições para garantir a justiça no caso concreto, sem que, assim, haja diminuição no grau de efetividade da tutela jurisdicional. E é esse alvitrado equilíbrio que vem sendo perseguido, desde há muito, nas mais diferentes experiências jurídicas contemporâneas.

Importa reconhecer que a garantia à tempestividade da tutela jurisdicional complementa o ideário de um processo mais justo e, portanto, constitui um direito fundamental, expressamente consagrado nas cartas políticas que foram editadas em época mais moderna.

No Brasil, no entanto, consideradas as profundas discrepâncias regionais, a distribuição de justiça sempre foi deveras morosa. Aqueles que judicam e advogam há mais tempo bem se recordam, por certo, da absurda demora dos recursos em matéria de locação, então da competência do extinto 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo. Anos e anos transcorriam sem a menor perspectiva do julgamento…

Na Europa Ocidental e na América do Norte, a despeito da lentidão verificada na justiça de vários países, o direito a um processo sem dilações indevidas vem igualmente reconhecido em inúmeros textos legislativos, dos quais derivou fecunda elaboração doutrinária e jurisprudencial.

O famoso artigo 6º, 1, da Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, subscrita em Roma no dia 4 de novembro de 1950, prescreve que: "Toda pessoa tem direito a que sua causa seja examinada equitativa e publicamente num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial instituído por lei, que decidirá sobre seus direitos e obrigações civis ou sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal contra ela dirigida".

Foi, sem dúvida, a partir da edição desse diploma legal supranacional, que o direito ao processo sem dilações indevidas passou a ser concebido como um direito subjetivo constitucional, de caráter autônomo, de todos os membros da coletividade (incluídas as pessoas jurídicas) à tutela jurisdicional dentro de um prazo razoável.

Efetivou-se, outrossim, ao longo do tempo, a necessária exegese da abrangência do supra transcrito dispositivo, tendo-se, unanimemente, como dilações indevidas, "os atrasos ou delongas que se produzem no processo por descumprimento dos prazos estabelecidos, por injustificados prolongamentos das etapas mortas que separam a realização de um ato processual de outro, sem subordinação a um lapso temporal previamente fixado, e, sempre, sem que aludidas dilações dependam da vontade das partes ou de seus mandatários" (cf. José Antonio Tomé Garcia, Protección procesal de los derechos humanos ante los tribunales ordinarios, Madrid, Montecorvo, 1987, p. 119).

Todavia, torna-se impossível fixar a priori uma regra específica, determinante da violação à garantia da tutela jurisdicional dentro de um prazo razoável.

E, por isso, consoante orientação jurisprudencial da Corte Europeia dos Direitos do Homem, consolidada em 1987, no famoso caso Capuano, três critérios, segundo as circunstâncias de cada caso concreto, devem ser levados em consideração para ser apreciado o limite temporal razoável de duração de um determinado processo. Por via de consequência, somente será possível diagnosticar a ocorrência de uma indevida dilação processual a partir da análise: a) da complexidade do assunto; b) do comportamento dos litigantes e de seus procuradores; e c) da atuação do órgão jurisdicional.

Esse expressivo precedente impôs condenação ao Estado italiano, fixando-a numa indenização pelo dano moral "derivante do estado de prolongada ansiedade pelo êxito da demanda", experimentado por uma litigante nos tribunais daquele país.

O reconhecimento de tais critérios, que exigem uma análise casuísta, bem revela que as dilações indevidas não decorrem da simples inobservância dos prazos processuais pré-fixados. Assim, é evidente que se uma determinada questão envolve, por exemplo, a apuração de danos à natureza, a prova pericial a ser produzida poderá demandar muitas diligências que justificarão duração bem mais prolongada da fase instrutória.

O Tribunal Europeu exige da parte reclamante diligência normal no desenrolar do processo, não lhe sendo imputável a demora decorrente do exercício de direitos ou poderes processuais, como o de recorrer ou de suscitar incidentes.

Desse modo, não poderão ser taxadas de "indevidas" as dilações proporcionadas pelo esforço das partes, as quais, valendo-se das próprias regras processuais, acabam causando um natural prolongamento do procedimento.

É necessário, pois, que a morosidade, para ser reputada realmente inaceitável, decorra do comportamento doloso de um dos litigantes ou da inércia, pura e simples, do órgão jurisdicional encarregado de dirigir as diversas etapas do processo. É claro que a pletora de causas, o excesso de trabalho, não pode ser considerado, neste particular, justificativa plausível para a lentidão da tutela jurisdicional.

Cumpre esclarecer que, na contínua evolução exegética da Corte Europeia, o prazo considerado excessivo é atualmente aquele que supera cinco anos. É, pois, em princípio, considerado razoável o limite de três anos, para a tramitação do processo em primeiro grau; e de 2 anos, para o procedimento recursal.

Aduza-se que tal lapso temporal é, geralmente, computado entre a citação e o trânsito em julgado da sentença; e, no processo de execução, o dies ad quem é o do término do respectivo procedimento, pouco importando se houve ou não a satisfação do crédito. Terminando o processo por meio de transação, considera-se a data da respectiva homologação.

Ademais, para a configuração do dano moral sofrido pelos litigantes, não importa o desfecho do processo; ou seja, qualquer uma das partes pode pleitear a respectiva indenização. Na verdade, o direito à reparação equânime respeita a todas as partes do processo e independe do resultado deste.

Pois bem, com a consolidação do processo eletrônico, do aprimoramento de outras ferramentas operacionais e, outrossim, de gerenciamento adequado, mesmo antes destes anos de pandemia, a justiça brasileira deu um grande passo em busca da efetiva duração razoável do processo. É evidente que há ainda inúmeros gargalos e disfunções que emperram a máquina judiciária.

Leio nas notas e informações do jornal O Estado de S. Paulo, na edição de domingo retrasado (29.05), críticas ao nosso sistema de justiça, apontando-se, ao menos, dois graves problemas, quais sejam, a sobrecarga do Poder Judiciário e a lentidão dos julgamentos. Nesse artigo — intitulado Ideias para o sistema de Justiça — há referência a inúmeras propostas formuladas pelo Instituto Millenium, em prol da agilidade dos processos e, em especial, de uma maior estabilidade dos julgamentos, a ensejar previsibilidade mais acentuada da interpretação e aplicação das normas jurídicas.

Registro, no entanto, que, sopesadas as coisas, devido aos fatores acima mencionados, somados às metas traçadas em passado não muito remoto pelo Conselho Nacional de Justiça, bem como à inescondível vontade política de seus últimos dirigentes, o Tribunal de Justiça de São Paulo tem julgado os recursos num lapso temporal invejável.

Eu jamais imaginei que, ainda no exercício profissional, pudesse sentir a satisfação que tenho experimentado nestes últimos dois anos, de ver uma apelação ser julgada, em regra, de três a oito meses na Corte de Justiça bandeirante.

É certo que esse interregno suplanta as melhores expectativas de qualquer tribunal do mundo!

Causa realmente enorme conforto — e por isso devemos dar a mão à palmatória — de constatar esse inusitado e auspicioso fenômeno, que tem ocorrido de forma sistemática, ressalvando-se é claro algumas exceções, relacionadas, em sua maioria, a processos físicos mais antigos.

Não é preciso salientar que continuam existindo várias distorções no processamento dos recursos, como, por exemplo, a declaração de incompetência de determinada seção do tribunal por meio de acórdão, a insensibilidade de alguns desembargadores, que se recusam a receber advogados, o abuso das sustentações orais, a banalização dos embargos de declaração…

Ressalto, por fim, que, como advogado militante, não posso deixar de reconhecer o esforço dos últimos, dos atuais dirigentes e, em particular, dos integrantes do Tribunal de Justiça de São Paulo, decorrente da conscientização da mais alta missão que lhes cabe, vale dizer, a de distribuir justiça tempestiva!

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