Controvérsias Jurídicas

O princípio do poluidor-pagador e a taxa de preservação ambiental

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

2 de junho de 2022, 8h04

A lei que institui a Taxa de Preservação Ambiental (TPA) foi aprovada pela Câmara Municipal de Guarulhos e publicada no Diário Oficial no dia 27 de maio de 2022. Segundo a nova legislação, o município passará a cobrar, a partir de 2023, uma taxa de poluição das companhias aéreas que utilizarem o Aeroporto Internacional Governador André Franco Montoro. O valor da taxa terá como base três Unidades Fiscais de Guarulhos (UFG) para cada tonelada de peso da aeronave, sendo que cada UFG equivale a R$ 3.938. De acordo com os Poderes Legislativo e Executivo, os recursos advindos da cobrança serão destinados a projetos de proteção ambiental, saúde pública e servirão como compensação ao erário público pela extinção da taxa do lixo. O setor aeroviário foi contra, afirmando ter a nova lei invadido a competência exclusiva da União para legislar sobre a matéria, conforme preceitua o artigo 22, I da Constituição Federal. Importante ressaltar que a taxa não será cobrada da população, mas exclusivamente das companhias aéreas, cujas aeronaves despejam combustível e degradam o meio ambiente no entorno do aeroporto em seus pousos e decolagens.

A preocupação com a degradação dos recursos naturais e a construção de um meio ambiente sadio tem levado diversos segmentos da sociedade a encontrarem mecanismos que integrem o interesse econômico do mundo globalizado com a utilização responsável do ecossistema. Nesse sentido, agindo de modo preventivo e repressivo, o Direito, ciência responsável pela resolução de conflitos e harmonização social, foi uma das áreas do conhecimento que mais elaborou métodos de proteção e promoção de um meio ambiente saudável. Pela natureza extrafiscal das tributações, os legisladores implementam políticas públicas que visam coibir atividades econômicas que degradem o meio ambiente, incentivando o setor privado a adotar tecnologias ecologicamente sustentáveis, sem que percam competitividade no mercado de consumo.

Para que o sistema tributário possa servir à proteção do meio ambiente, os princípios do poluidor-pagador e do protetor-recebedor ganharam especial relevo. De modo geral, o princípio do poluidor-pagador visa a desmotivar ações ecologicamente incorretas por meio da tributação, enquanto o do protetor-recebedor incentiva a iniciativa privada a colaborar com o Estado na edificação de um meio ambiente sustentável através da concessão de benefícios fiscais.

Nas palavras de Maria Alexandra Aragão [1], o Estado tem o dever de intervir na questão ambiental, tendo em vista que o ordenamento jurídico e as atividades econômicas propiciam a degradação do meio ambiente. Desta forma, a preservação do ecossistema tornou-se um poder/dever do Estado Social, utilizando-se de mecanismos de direção (normas proibitivas e permissivas, tais como as de limitação de emissão de CO2 ou a previsão de punição para os infratores da legislação ambiental) ou indução (normas e medidas aplicadas pelo Estado que incentivem os particulares às boas práticas na proteção e recuperação do meio ambiente) para a obtenção de seus objetivos.

A intervenção do Estado na ordem econômica em defesa do meio ambiente encontra fundamento constitucional nos artigos 170, VI e 225 [2], mesmo que não haja menção expressa do manejo do sistema fiscal como política protetiva. Todavia, como é sabido, o tributo possui acessoriamente a função extrafiscal, possibilitando sua previsão para fins repristinatórios. Nesse sentido, afirma Hugo de Brito Machado: "o tributo é extrafiscal quando seu objetivo principal é a interferência no domínio econômico, para buscar um efeito diverso da simples arrecadação e recursos financeiros" [3]. A ação também encontra referência no direito comparado, uma vez que países da União Europeia já elaboraram leis, tratados e programas que chancelam tal intervenção: "A utilização de instrumentos econômicos e fiscais terá que passar a construir uma parte cada vez mais importante da abordagem global, tendo em vista o estabelecimento correto dos preços e a criação de incentivos, baseado no mercado, a um comportamento econômico benéfico ao meio ambiente" [4].

A Recomendação do Conselho sobre Princípios Orientadores Relativos aos Aspectos Econômicos Internacionais das Políticas Ambientais (1989), elaborada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), foi o primeiro documento legal que citou o princípio do poluidor-pagador, definindo-o como: "o princípio que se utiliza para alocar os custos das medidas de prevenção e controle da poluição". O documento estabeleceu que o princípio visa incentivar o uso racional de recursos naturais escassos, devendo o agente poluidor arcar com os custos, refletidos em seus produtos ou serviços, das medidas de prevenção e reparação de danos ao meio ambiente.

Para que seja possível o melhor entendimento acerca do tema, faz-se necessário abordar a Teoria das Externalidades, fundamento sob o qual se edificou o princípio. Para tanto, supõe-se que o processo produtivo de um produto ou serviço pode gerar, por vezes, efeitos adversos à sociedade. Tais efeitos atingirão terceiros, absolutamente externos ao processo ou ao consumo dos produtos ou serviços. Assim, como forma de compensação pelos danos causados aos que nada tinham com a relação de produção ou consumo do bem, deverá o fornecedor suportar um custo adicional sob forma de tributação.

"Efetivamente, pode haver bens cuja produção e/ou consumo dê origem a benefícios que vão ser concedidos, ou perdas que vão ser impostas a outras pessoas, que não são as que compram, sequer as que consomem ou utilizam esse bem e se situam fora da relação econômica fundamental considerada, entre produtor ou prestador de serviços o consumidor (…)" [5].

Em que pese não estar presente na Constituição Federal, o artigo 4º, VII da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente tangenciou o princípio do poluidor-pagador ao se referir que o usuário do produto poluente será obrigado a contribuir pela utilização dos recursos naturais com fins econômicos. O tangenciamento se deu mais pelo caráter de responsabilização dos danos trazidos pelo instituto, do que pela internalização dos custos, premissa do princípio do poluidor-pagador, no sentido de proteger o meio ambiente pela perda de competitividade do produto sobretaxado e a mudança comportamental do consumidor. Além de contribuir na arrecadação de receitas para a manutenção de órgãos ambientais e financiamento dos custos públicos com preservação, renovação, conservação e reparos ambientais, a tributação também promove uma mudança comportamental do consumidor, que em função da perda de competitividade do produto por seu encarecimento, procura novas opções. Assim, não caberia outra alternativa ao poluidor que não o investimento em novas tecnologias que tornem seu produto ambientalmente sustentável.

Além de estipular quem deve pagar, é necessário que o Estado estabeleça a métrica da cobrança, podendo variar de acordo com a quantidade de poluição produzida e a qualidade dos resíduos expelidos. A depender da especificidade, países da Europa indicam a incidência da tributação para o produtor/fabricante, para o consumidor ou para o grupo familiar. Entretanto, levando em consideração as condições financeiras do povo brasileiro, já comprometido com o pagamento de tributações escorchantes, sem receber a contrapartida em serviços públicos de qualidade, parece que o modo escolhido pelo município paulista foi o mais adequado. Cobrar do cidadão, além de injusto, poderia inviabilizar todo o segmento econômico de transporte aéreo, viagens e turismo, em nada contribuindo para a retomada do crescimento econômico nacional.

Contudo, requerer das companhias aéreas, empresas multinacionais de grande poderio financeiro, o pagamento das taxas para a preservação do meio ambiente degradado pela sua própria atividade econômica, auxilia o Estado na preservação dos direitos dos cidadãos. Guarulhos, em específico, se utilizará das receitas provenientes da TPA para extinguir a taxa do lixo, servindo como exemplo mais fidedigno de como toda a coletividade deve ser recompensada pelo dano causado por alguns.

Nenhuma forma de intervenção na atividade econômica para a proteção do meio ambiente traz consigo a fórmula perfeita de sopesamento de direitos. Muitos críticos do princípio do poluidor-pagador afirmam que a taxação somente faria sentido em casos em que exista grande diversidade de produtos disponibilizados no mercado, possibilitando ao consumidor a substituição do produto/serviço poluente sobretaxado por outro de menor preço. Em economias fechadas, nas quais poucas empresas dominam determinado segmento, a taxação poderia causar uma elevação conjunta do preço de todos os fornecedores, onerando, em último caso, o consumidor final.

Não parece ser o caso da lei aprovada em Guarulhos. Não é de hoje que a população do município sofre com as consequências ambientais da operação do aeroporto internacional. Além da emissão de gases e produtos tóxicos, as poluições sonora e visual também devem consideradas, cabendo ao causador da ação poluidora pagar pelas medidas estatais assecuratórias do meio ambiente.

 


[1] ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O princípio do poluidor-pagador: pedra angular da política comunitária do ambiente. Stvdia Ivridica, 23. Coimbra: Coimbra Editora, 1997.

[2] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

[3] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, 30ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009.

[4] COMUNIDADE EUROPEIA. Relatório do grupo de trabalho de peritos dos estados-membros sobre a utilização de instrumentos econômicos e fiscais na política do ambiente da Comunidade Europeia/Comissão das Comunidades Europeias. Bruxelas: Direção-Geral Ambiente, Segurança Nuclear e Proteção Civil, 1990, p. 07.

[5] ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O princípio do poluidor-pagador: pedra angular da política comunitária do ambiente. Stvdia Ivridica, 23. Coimbra: Coimbra Editora, 1997.

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