Opinião

Affectio societatis

Autor

  • Raul Bergesch

    é advogado na área do Direito Empresarial especialista em proteção patrimonial sócio fundador do escritório Bergesch Martin Advogados membro do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial (Ibrademp) e da Comissão de Direito Falimentar da OAB-RS Subseção de Novo Hamburgo.

1 de junho de 2022, 11h04

De antemão, insta conceituar a affectio societatis, uma vez que é um elemento do Direito Empresarial que se distingue sobremaneira dos demais desde a sua essência, pois enquanto o primeiro possui natureza eminentemente pessoal e subjetiva, os outros são reconhecidos justamente em razão de sua impessoalidade e objetividade.

Ao contrário do que muitas pessoas leigas no Direito acreditam, o Código Civil de 2002, em seu artigo 981, caput, não prevê a obrigatoriedade da presença da affectio societatis para a constituição de uma sociedade, limitando-se a estabelecer a exigência de vontade livre e expressa dos sócios em assumir as obrigações previstas na legislação brasileira e no contrato social, ipsis litteris:

"Artigo 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados."

Não obstante, a jurisprudência e doutrina, juntamente com a prática comercial, demonstram que a afeição para finalidade societária tem especial relevância, sendo até mesmo indispensável em determinadas conjunturas no Direito Empresarial.

Assim como em alguns contratos regidos pelo Direito Civil, como o de compra e venda, de locação residencial, de prestação de serviço, entre outros, na maioria dos contratos comerciais, como os contratos de transporte, de seguro, de promessa de compra e venda mercantil, dentre diversos outros, as vontades das partes em aderir ao negócio jurídico advém de interesse precipuamente antagônico.

Ou seja, cada contratante guarda uma intenção específica acerca do resultado proveniente daquela transação, a qual se contrapõe ao intuito do outro contraente daquela relação jurídica. Em outras palavras, a título de exemplo, podemos examinar o contrato de compra e venda, seja o de natureza civil ou mercantil, no qual os integrantes do ato têm o objetivo de tirar vantagens díspares daquele negócio jurídico.

Enquanto o vendedor pretende obter vantagem econômica por meio do recebimento de pecúnia, o comprador detém a vontade de ser proprietário de determinado bem, sendo certo que ambos acreditam, em seu ponto de vista, que aquele contrato é vantajoso para si. Essa individualidade substancial que observamos nessas relações contratuais é o cerne da diferenciação para os vínculos em que é necessária a presença da affectio societatis.

Neste ponto, importante anotar que há duas espécies de sociedades empresárias, que são as denominadas sociedades de capital e sociedade de pessoas. Na primeira, prevalece o capital, ou seja, o que importa é a contribuição financeira daquele sócio para a consecução das atividades societárias, não havendo qualquer relevância as características pessoais do mesmo. Já na segunda, o ponto relevante é justamente os atributos individuais da personalidade do sócio.

É neste exato instante que encontramos a definição da affectio societatis que estamos a analisar deste o início do presente artigo, pois a peculiaridade deste elemento é o resgate das relações humanas do Direito de Família e outros ramos ao Direito Empresarial, em que a personalidade, o sentimento, as individualidades, a emoção, o temperamento dos integrantes da sociedade têm maior importância que o capital envolvido para o êxito desta.

Em outras palavras, é a hipótese em que as particularidades do indivíduo tem maior relevância do que o dinheiro, não sendo o capital investido por cada integrante o ponto principal, já que a continuidade da sociedade pode restar inviabilizada pelos desencontros de ideais dos sócios.

Sendo assim, fica cristalina a diferenciação de alguns contratos civis e comerciais que estávamos a comentar, pois na sociedade de pessoas não somente há um intuito comum de constituir e permanecer em uma sociedade, como também os interesses dos membros no negócio jurídico é uno, compartilhado entre todos, que tem o dever de cooperação entre si para atingimento dos objetivos socais almejados.

A finalidade precípua é o sucesso do empreendimento, a geração de lucro, o crescimento do negócio, não havendo como olvidar que eventuais percalços na harmonia entre as pessoas dos sócios, ou seja, entre a visão que cada um destes tem para aquele ente empresarial, vão influenciar diretamente no êxito desta.

Conforme ensina o prestigiado jurista Fábio Konder Comparato:

"(…) a velha classificação das sociedades mercantis em sociedades de capitais e de pessoas (…) aparece agora subvertida; ou melhor, a clivagem entre as espécies passa no interior do próprio direito acionário. Se ainda é aceitável classificar a companhia aberta na categoria das sociedades de capitais, pelo seu caráter marcadamente institucional, a companhia fechada já apresenta todas as características de uma sociedade de pessoas, animada por uma affectio societatis que se funda no intuitus personae. Ao contrário da simples consideração dos capitais, na companhia fechada prepondera, tanto entre acionistas quanto perante terceiros, a confiança e a consideração pessoal".

Nessa orientação, destaca-se que o tipo societário não é fundamento determinante para definir se a natureza da sociedade é pessoal ou de capital, pois, ainda que a affectio societatis predomine nas sociedades limitadas, é possível que encontremos sociedades anônimas de capital fechado com essência intuitus personae.

Diante disso, extrai-se o entendimento de que somente há a pertinência do conceito de affectio societatis quando estamos diante de uma sociedade de pessoas, que são aquelas que têm como qualidade intrínseca o intuitus personae. Como consequência lógica-jurídica, não há coerência em analisar esses aspectos subjetivos nas entidades de capital, pois o componente imperativo nestas são os recursos financeiros, e as decisões são tomadas por meio de votações, não sendo imprescindível a concordância da íntegra do corpo societário.

No campo factual, lamentavelmente não são raros os casos de dissolução total da sociedade em virtude da quebra da afeição societária. Não obstante, nos dias atuais, também verifica-se algumas hipóteses nas quais há a possibilidade de preservar a entidade empresarial com a dissolução societária parcial.

A jurisprudência pátria tem entendimento no sentido de que a dissolução total da sociedade deve ser a última ratio dado que, em respeito ao princípio da preservação da empresa, deve-se intentar outros caminhos, sendo o encerramento das atividades empresariais cabível apenas nos casos em que a discordância for em tal grau que impeça a execução do objeto social.

Soluções estas que podem se dar com a exclusão dos membros que deram origem à desarmonia societária. Nestas hipóteses, em caso de ajuizamento de ação judicial de dissolução parcial da sociedade por quebra da affectio societatis, deve haver prova da culpa, através da comprovação da quebra de dever social do membro que deu ensejo à discordância.

De modo algum ignora-se que o caso envolve a produção de conjunto probatório complexo, entretanto, não há como descuidar da observância ao princípio da preservação da empresa, que deve prevalecer sempre que possível, tendo em vista o valoroso papel que os entes empresariais desempenham na coletividade com a geração de empregos, renda, tributos, etc.

Referências Bibliográficas
COMPARATO, Fábio Konder. Exclusão de sócios nas sociedades anônimas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 44-45.

SANTOS, Grazielle Benedetti. Quebra da "affectio societatis": motivo para dissolução societária?. Disponível em: https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/8796/Quebra-da-affectio-societa tis-motivo-para-dissolucao-societaria. Acesso em 23/5/2022.
TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário, v. 1, 8ª ed. rev. e atual, São Paulo: Atlas, 2017.

Autores

  • é advogado na área do Direito Empresarial, especialista em proteção patrimonial, sócio-fundador do escritório Bergesch Advogados, mentor de advogados e membro do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial (Ibrademp) e da Comissão de Direito Falimentar da OAB-RS, subseção de Novo Hamburgo.

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