Opinião

ADI 5.766/DF e instrumentos para consertar desacerto normativo

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31 de julho de 2022, 15h56

Em outubro de 2021, o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento da ADI 5.766 ajuizada pelo procurador-geral da República, em 2017, que tinha como objeto o pedido de declaração de inconstitucionalidade de preceitos normativos introduzidos pela Lei 13.467/17 (de reforma trabalhista).

Dentre os diversos preceitos normativos trazidos na petição inicial como incompatíveis com a Constituição Federal de 1988, estava em debate a validade do §4° do artigo 791-A da lei n° 5.452/43 — CLT. Esta norma tinha como base o sistema adotado no Código de Processo Civil de 2015 àqueles que tivessem sido deferida a gratuidade da justiça. Porém, com a obrigação de o detentor da gratuidade arcar com os ônus da sucumbência se obtivesse em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa.

A partir da entrada em vigor da norma, o judiciário trabalhista passou a aplicá-la, em sua maioria, assim como posta. Fixou-se informalmente na praxe forense a tese de que o detentor da gratuidade da justiça estaria obrigado a arcar com os ônus da sucumbência caso ele tivesse obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa. Esta última parte teve uma adaptação jurisprudencial para entendê-la como uma circunstância que retirasse o litigante da condição de miserabilidade, o que autorizaria a compensação, como forma de conferir "proporcionalidade" à norma.

O debate sobre a (in)constitucionalidade da norma se intensificou durante o julgamento da ADI 5.766, até que, em outubro de 2021, o STF pacificou a questão.

A ação declaratória estava sob relatoria do ministro Roberto Barroso, que defendia a constitucionalidade da norma, como forma de se limitar a litigância abusiva (posicionamento anteriormente adotado por ele na ADI 3.995  que tratou do depósito prévio na ação rescisória), aderindo a técnica de decisão da interpretação conforme para autorizar a cobrança de verbas sucumbenciais em situações específicas.

Em voto vogal, o ministro Edson Fachin, divergiu da posição adotada pelo relator. Fez uma incursão histórica e aprofundada do direito à gratuidade da justiça, que alcançou patamar constitucional em 1934, na Constituição Federal reconhecida por absorver, em alguma medida, os ideais das revoluções constitucionalistas sociais do México, de 1917, e da Alemanha, de 1919. O ministro pontuou que a restrição legislativa imposta às garantias fundamentais, como é o acesso à justiça, causa risco de violação em cascata de outros direitos iminentes e reais.

Posição ratificada pelo ministro Alexandre de Moraes, que foi o incumbido de redigir o acórdão, por possuir solução aceita pelo demais membros do Tribunal em relação às outras normas postas em julgamento.

Assim, decidiu o STF pela inconstitucionalidade do §4° do artigo 791-A da CLT, especificamente quanto a expressão "ainda que beneficiária da justiça gratuita" e "desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa".

O STF, portanto, restabeleceu a integralidade do acesso à justiça do trabalho, tido como único instrumento para efetivação do mínimo existencial, para Ana Paula de Barcellos [1], e como direito humano de excelência, segundo Mauro Capelletti e Bryant Garth [2]. Obra reverenciada por diversos Ministros nos votos, e que mostrou, na década de 60, por meio do projeto Florença, três ondas renovatórias que buscavam diminuir os obstáculos à efetivação do acesso à justiça. É inegável que a norma introduzida no ordenamento por meio da lei 13.467/17 criou um obstáculo aos trabalhadores para acessar efetiva e adequadamente a justiça.

Fato vivenciado diariamente por quem integra o sistema de justiça do trabalho. Exemplifico trazendo a situação, não rara, do trabalhador que vai à justiça reivindicar direitos legítimos, como salários não pagos, verbas rescisórias pagas incorretamente, horas extras não reconhecidas e etc. Pedidos que são cumulados eventualmente com um dano extrapatrimonial em virtude da violação a direitos da personalidade e que, também, não raro, é reconhecido pelo judiciário como um mero dissabor. Situação que, a partir da aplicação da norma inserida pela reforma trabalhista, permitiria a redução de direitos legítimos para pagamento de verbas sucumbenciais, em claro e manifesto obstáculo ao acesso à justiça.

Isso sem contar as inúmeras reclamações ou pedidos em reclamações que deixaram de ser feitos, embora legítimos, por situarem-se numa zona cinzenta de divergência jurisprudencial, por exemplo, em que órgãos do mesmo tribunal têm posicionamentos diversos.

Importante ressaltar que o STF, no julgamento, não adotou a modulação de efeitos prevista no artigo 27 da lei 9.868/99. Ou seja, a partir do sistema adotado no Brasil para controle abstrato de constitucionalidade, como decorrência da natureza declaratória da decisão de nulidade tomada na ADI, a norma jurídica é reconhecida como nula, por conter um vício congênito insanável. Noutras palavras, é como se ela sequer houvesse integrado o sistema normativo.

Portanto, não há discussão quanto aos efeitos proativos da decisão do STF na ADI 5766/DF  não será mais exigido o pagamento de verbas de sucumbência do detentor da gratuidade da justiça, ainda que tenha recebido créditos capazes de suportá-la. A essa altura o leitor deve estar pensando nas seguintes questões: já que não foi feita a modulação de efeitos, como ficam as relações jurídicas regidas pela norma até a declaração da sua invalidade? Devem ser devolvidos os valores descontados dos trabalhadores para pagamento de verbas de sucumbência fundadas na lei declarada inconstitucional?

Quanto à primeira pergunta, o próprio STF, no RE 730.462 [3], de relatoria do ministro Teori Zavascki, já possui entendimento, firmado por meio da Repercussão Geral, de que a decisão tomada em controle concentrado de constitucionalidade não é aplicada automaticamente às sentenças transitadas em julgado, necessitando de ação específica para desconstituição do julgado. Trago trecho da ementa do precedente: "Afirma-se, portanto, como tese de repercussão geral que a decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das sentenças anteriores que tenham adotado entendimento diferente; para que tal ocorra, será indispensável a interposição do recurso próprio ou, se for o caso, a propositura da ação rescisória própria, nos termos do artigo 485, V, do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, artigo 495)".

Embora o STF tenha utilizado como parâmetro o Código de Processo Civil vigente na época, o CPC de 1973, a sistemática foi aperfeiçoada pelo CPC de 2015.

Considera-se, pois, inexigível, segundo o artigo 525, §12°, do CPC, as obrigações reconhecidas em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo STF, em controle concentrado ou difuso.

A partir daí surgem dois caminhos processuais, segundo o CPC: 1º – se a decisão proferida pelo STF é anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, há a possibilidade de impugnação por meio de recurso cabível no momento (artigo 525, §14, do CPC); 2º  se a decisão do STF é posterior ao trânsito da decisão exequenda, há a necessidade de ajuizamento de ação rescisória para desconstituição da obrigação, cujo prazo se inicia a partir da consolidação da coisa julgada da decisão proferida pelo STF  artigo 525, §15, do CPC  trata-se de regra especial sobre o prazo da rescisória.

Assim, para os casos que ainda estão em julgamento, sem o trânsito em julgado, a decisão do STF pode ser aplicada imediatamente, se valendo a parte dos meios adequados.

Aos casos que já transitaram em julgado, é preciso o ajuizamento da rescisória, com observância dos demais requisitos indicados pelos artigos 966 e seguintes do CPC, para desconstituição da obrigação de pagamento de verbas sucumbenciais, declarando-se a isenção integral do pagamento de honorários ao detentor da gratuidade da justiça.

Recentemente, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região proferiu decisão em ação rescisória para desconstituir acórdão proferido pelo mesmo tribunal, em que a reclamante havia sido condenada ao pagamento de honorários advocatícios, autorizando-se o desconto dos créditos que ela futuramente iria receber. Em juízo rescisório, o TRT-3 declarou a isenção das verbas à reclamante, nos termos do entendimento adotado na ADI 5.766/DF.

O referido julgamento teve como ementa:

"AÇÃO RESCISÓRIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS. PARTE BENEFICIÁRIA DA JUSTIÇA GRATUITA. ADI 5766. INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 791-A, §4º, DA CLT. O Pleno do STF, em sessão realizada por videoconferência em 20/10/2021, decidiu, no bojo da ADI 5766, pela inconstitucionalidade do artigo 791-A, §4º, da CLT. Prevaleceu, no aludido 'decisum', que os artigos 790-B, 'caput' e §4º, e 791-A, §4º, da CLT restringem os direitos fundamentais de acesso à Justiça e da assistência judiciária gratuita. Por conseguinte, em sendo a parte autora da reclamação trabalhista beneficiária da justiça gratuita, é descabida a sua condenação ao pagamento de honorários de sucumbência. Ação rescisória julgada procedente, a fim de desconstituir a decisão proferida na reclamação trabalhista jacente, especificamente na parte em que condena a reclamante (autora da ação rescisória) ao pagamento de honorários advocatícios em favor do patrono da reclamada, e declarar, em juízo rescisório, a isenção da reclamante quanto ao pagamento da verba honorária". (TRT da 3.ª Região; PJe: 0010104-76.2022.5.03.0000 (AR); Disponibilização: 11/07/2022, DEJT/TRT3/Cad.Jud, Página 1104; Órgão Julgador: 2ª Seção de Dissídios Individuais; relator: Taisa Maria M. de Lima).

A ação rescisória, nos casos em que já houve o trânsito em julgado de decisões que aplicaram indistintamente a norma do artigo 791-A, §4°, da CLT, é um importante instrumento de reparação de violação do acesso à justiça, pois confere efetividade à vontade do constituinte, de garantir a todo cidadão brasileiro o direito de ir ao poder judiciário sem qualquer obstáculo que restrinja esse exercício, direta ou indiretamente, especialmente àqueles que tenham assegurado o direito  e não benefício  da gratuidade do ônus financeiro do processo.

Quanto à segunda questão (de restituição dos valores deduzidos dos créditos obtidos em juízo), não há dúvida, também, da necessidade de devolução dos valores aos trabalhadores que litigaram no intervalo de tempo entre a vigência da norma e declaração de inconstitucionalidade do STF.

A ausência de modulação dos efeitos da decisão implica na retirada, desde o seu nascimento, da norma declarada inconstitucional. As obrigações assumidas com base nesse preceito normativo perdem sua justificativa legal, o que acarreta, invariavelmente, na inexequibilidade do título judicial, tornando a obrigação incompatível com o ordenamento. Autoriza-se, portanto, a desconstituição dela e, em virtude da impossibilidade do enriquecimento ilícito, deve haver a devolução dos valores recebidos.

Sobre esse ponto específico, o TRT da 3ª Região não se manifestou no julgamento da ação rescisória acima citada, senão pelo entendimento de que a execução do acórdão deve se realizar no juízo de origem, conforme manda o artigo 836, Parágrafo Único, da CLT.

A questão (devolução dos valores recebidos pelos advogados) ainda será objeto de muito debate no poder judiciário, com eventual manifestação do STF a respeito, que poderá dar efeito temporal diverso do adotado na ADI 5766/DF.

Fato é que os instrumentos previstos no CPC são fundamentais à reparação de um erro normativo ocasionado pela Lei 13.467/17, que impactou no exercício de um direito essencial para a consolidação da cidadania, do estado democrático de direito e das obrigações assumidas pelo país internacionalmente ao ratificar inúmeros tratados de direitos humanos.


[1] BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro. Renovar, 2002.

[2] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988.

[3] RE 730462, relator (a): TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 28/05/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL — MÉRITO DJe-177  DIVULG 08-09-2015  PUBLIC 09-09-2015.

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