Opinião

Cotas raciais no quinto constitucional

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30 de julho de 2022, 9h03

O sistema de cotas raciais está passando por processo de revisão neste ano. Embora seus resultados sejam positivos e até revolucionários, há vozes ainda hoje discordantes. Alguns, sob o falacioso argumento da meritocracia, pretendem acabar com as oportunidades concedidas às pessoas negras de disputarem vagas no mercado de trabalho, no serviço público e nas universidades, com paridade de armas em relação às cidadãs e aos cidadãos brancos.

As estatísticas analisadas de forma isolada não são suficientes para garantir o sucesso de uma política pública. Mas se somadas a outros fatores e quando se apresentam como evidências por si mesmas, podem e devem ser levadas em consideração. É o que se percebe, por exemplo, na análise dos dados relativos às cotas implementadas no ensino superior.

Iniciado o sistema por meio de programas internos das universidades públicas em alguns Estados brasileiros, atualmente a matéria encontra-se disciplinada por iniciativa do Legislativo. Trata-se da Lei 12.711/2012, que após sua primeira década de vigência passa por revisão. Por essa norma, as vagas nas instituições de ensino caracterizadas como universidades e institutos federais são distribuídas proporcionalmente em relação à população de cada unidade da Federação, entre pessoas indígenas, pretas, pardas e portadoras de deficiência.

Os dados revelados pela incidência dessa legislação, como dito, por si mesmos mostram a eficiência do sistema. Em uma década, houve aumento de quase 400% de pessoas negras ocupando vagas no ensino superior brasileiro [1]. É preciso destacar que esse movimento ascendente provoca uma real diversidade e universalidade no campo do ensino, da extensão e da pesquisa que, afinal, é um dos objetivos a serem alcançados pelas instituições de educação superior.

Nesse contexto, o sistema de Justiça não pode ficar à margem. É imperioso que suas instituições e membros estejam inseridos na busca pela igualdade no sentido de equidade. Com isso, contribuirá para o permanente processo de enfrentamento das diversas dimensões do racismo no Brasil [2]. Se o objetivo de erradicar a maldição do racismo é muito ousado, ao menos que façamos, cada qual, nas nossas esferas de individualidade e pequenas coletividades, a nossa parte para que as mazelas causadas pela discriminação negativa e pelo preconceito comecem a ser dissipadas.

A realidade do Judiciário, contudo, está ainda muito distante do ideal que aqui desenhamos. Em 2021 apenas 12,8% da magistratura brasileira é negra, em contraposição a um elenco de juízas e juízes brancos à ordem de 85,9%, ficando a diferença explicada por 1,2% de julgadores identificados com a cor amarela e 0,1% de indígenas [3]. Portanto, como espaço de poder reprodutor da desigualdade racial inerente à formação e ao desenvolvimento do povo brasileiro, o Judiciário precisa amoldar-se a uma perspectiva mais igualitária e justa no que tange à distribuição de cargos e funções por raças e gêneros.

É certo que os critérios de seleção dos futuros juízes pelo concurso público vêm sendo adaptados à nova realidade que se impõe. O Conselho Nacional de Justiça vem, desde 2015, por meio de sua Resolução 203, implementando o sistema de cotas raciais nos concursos de provas e títulos. É reservado o percentual de 20% das vagas para pessoas negras e, neste ano de 2022, a resolução foi aperfeiçoada, tornando mais justo e transparente o concurso. Não será mais permitida a nota de corte para os cotistas, que devem atingir 60% de acertos nas provas, ao lado de instituir-se uma comissão de especialistas para o processo de heteroidentificação desde o início do certame.

É preciso avançar, porém. O quinto constitucional estabelecido em 1988 é procedimento de democratização e oxigenação do Judiciário. O ingresso na magistratura de segunda instância de membros da advocacia e do Ministério Público faz dos tribunais espaços de maior pluralidade. Mas isso, de forma isolada, não os transforma em ambientes de diversidade. Ao contrário, os tribunais ainda são reflexos do racismo empreendido na sociedade, aí incluída a ideia de "racismo por denegação", categoria sistematizada por Lélia Gonzalez [4].

Nossa proposta é de que as listas sêxtuplas apresentadas pela OAB aos tribunais para a escolha dos representantes da instituição a ocuparem o cargo de desembargador também se associe a esse movimento emancipatório do sistema cotista. Sugerimos a adoção do critério já definido pela OAB do estado de São Paulo que, por meio de sua Resolução 3/2022, instituiu o percentual de 30% de advogadas negras e advogados negros para comporem as listas sêxtuplas a serem enviadas ao Tribunal de Justiça de São Paulo, ao Tribunal do Trabalho da 2ª e 15ª Região e ao Tribunal de Justiça Militar de São Paulo.

A iniciativa é revolucionária. É preciso compreender que só as revoluções promovem transformações emancipatórias. E estas são as principais mudanças de que necessita uma república. Ou estaríamos ainda hoje sob o jugo do império e dos imperialistas.


[2] Ver, dentre outros, MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020. ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

[4] Por um feminismo latino-americano. São Paulo: Zahar, 2020.

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