Diário de Classe

A relação entre a ADC 81 e a ADI 5.035: análise crítica sobre o que é um precedente

Autor

  • Pietro Cardia Lorenzoni

    é advogado professor de Direito Público do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) diretor jurídico da Associação Nacional de Jogos e Loterias e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

30 de julho de 2022, 8h02

A Crítica Hermenêutica do Direito, cunhada pelo maestro Lenio Streck, há muito denuncia os equívocos cometidos pela comunidade jurídica relacionados com o suposto sistema de precedentes brasileiro e o processo constitucional. Como exemplo dessas críticas, cito trabalhos que se notabilizaram pela precisão em formato de coluna [1], de artigo científico [2] e de livro [3]. Nesse sentido, o Diário de Classe de hoje aborda um problema prático a partir, justamente, desse tema.

A questão relaciona-se com a Ação Declaratória de Constitucionalidade 81. Trata-se de ação ajuizada pela Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup) diante de alegada controvérsia judicial relevante, na qual se argumenta pela constitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 12.871 de 2013, que criou o Programa Mais Médicos. O artigo 3º do citado diploma legislativo versa sobre o processo regulatório, no âmbito do Ministério da Educação, para o funcionamento de cursos de graduação em Medicina.

Ademais, o dispositivo condiciona a autorização para funcionamento desses cursos pelas instituições privadas a prévio chamamento público, aberto pelo próprio Ministério da Educação quando entender necessário. Essa é a única espécie de processo autorizativo que depende de irrestrita discricionariedade do Ministério da Educação.

Nesse sentido, há diversas manifestações que, por uma compreensão equivocada do sistema de precedentes e do processo constitucional, sustentam que a constitucionalidade do artigo 3º da Lei dos Mais Médicos já foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal no "suposto precedente da ADI 5.035". Dentre essas manifestações, há instituições importantes, com elevadíssimas responsabilidades políticas e histórico de notável protagonismo no desenvolvimento jurídico nacional. Por exemplo, dentre elas estão o Senado Federal (Informação 54.881/2022), a Advocacia-Geral da União, a Associação Brasileira das Mantenedoras das Faculdades (Petição 44.658/2022) entre outras.

Ademais, em sede de controle difuso de constitucionalidade, há diversas decisões judiciais afirmando a constitucionalidade do artigo 3º, cujo fundamento é, também, o pretenso precedente da ADI 5.035. Há, nesse sentido, deliberações de integrantes da 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

O fundamento dessas manifestações compreende, essencialmente, 1) que houve a improcedência da ADI 5.035, ou seja, o pedido de inconstitucionalidade não foi acolhido, sendo o dispositivo constitucional (tendo em vista o caráter dúplice do controle de constitucionalidade brasileiro, forte no artigo 24 da Lei nº 9.868/99); 2) que, no voto vencedor do ministro Marco Aurélio, ele afirma que "a constitucionalidade dos artigos 3º, 6º e 8º da Medida Provisória nº 621/2013 — correspondentes aos artigos 3º, 10 e 14 da Lei nº 12.871/2013 — é questionada sob o argumento de ofensa ao princípio da autonomia universitária, consagrado no artigo 207 da Lei Maior (…). Surge impróprio considerar ofensivas à autonomia universitária as diretrizes fixadas quanto à autorização para o funcionamento de curso de graduação em medicina, à adequação da matriz curricular e ao aperfeiçoamento dos médicos participantes do programa" (páginas 14 a 16 do voto do ministro Marco Aurélio na ADI 5.035).

Observa-se, portanto, que o ministro Marco Aurélio, no voto da ADI, menciona que ela abrange também o artigo 3º da Lei dos Mais Médicos. Essa informação é importante para entender a confusão interpretativa gerada.

Contudo, tais conclusões estão amparadas em equívocos relacionados com o que é um precedente e a amplitude das decisões do controle concentrado de constitucionalidade, ambos os pontos relacionados com o processo constitucional e corretamente respondidos pela Crítica Hermenêutica do Direito.

Segundo Streck, o precedente envolve uma decisão passada que é seguida em um caso posterior, em razão de ambos os casos serem similares. Ele, necessariamente, envolve a compreensão sobre o que são obiter dicta e ratio decidendi. Com base na Crítica Hermenêutica do Direito: "Em linhas gerais, obiter dicta são aqueles argumentos utilizados pelos juízes, ou mesmo comentários en passant, que são prescindível[eis] para o deslinde da controvérsia. Não há muitos problemas até aí. A ratio decidendi, por sua vez, é o que constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto" [4].

Com efeito, deve ficar claro que o aspecto vinculante do precedente é o princípio. Como afirma Streck, o elemento justificador que ilumina o problema jurídico como próprio da moralidade substantiva. Se é assim, a genuína ratio decidendi vai se estabelecendo e aclarando com o devir interpretativo em função dos futuros casos [5].

Numa análise crítica, percebe-se que não há precedente na ADI 5.035 sobre o artigo 3º da Lei dos Mais Médicos. Também, não há declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade da Corte Suprema sobre o dispositivo. Explica-se.

Em 2013, duas ações diretas de inconstitucionalidade foram protocoladas contra o Programa Mais Médicos, previsto na Medida Provisória nº 621 e convertido na Lei nº 12.871 de 2013. Essas ações foram as ADI 5.035, ajuizada pela Associação Médica Brasileira, e ADI 5.037, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados. Os fundamentos e os pedidos de cada uma dessas ações são relevantes para a solução do presente problema.

A ADI 5.035 postulava, tão somente, a declaração de inconstitucionalidade do artigo 7º, incisos I e II; do artigo 9º, §1º, §2º, incisos I e II, §3º; do artigo 10 e do artigo 11 da MP convertida em Lei. De outro giro, a ADI 5.037 postulava a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 3º a 11, 13 e 14 do mesmo texto.

Para ressaltar: não houve pedido de inconstitucionalidade do artigo 3º da Medida Provisória na ADI 5.035 — utilizada como fundamento nas decisões acima mencionadas —, mas tão somente na ADI 5.037.

A ADI 5.035 foi julgada improcedente. Contudo, a ADI 5.037 foi extinta sem resolução de mérito, com fundamento em falta de legitimidade da CNTU para figurar no polo ativo, por maioria dos votos, sendo vencedor o voto do ministro Alexandre de Moraes e vencido o voto do ministro Marco Aurélio, relator.

Com efeito, é evidente que a única ação que veiculou o pedido de inconstitucionalidade do artigo 3º foi julgada extinta, portanto, sem resolução de mérito e, consequentemente, sem decisão pela constitucionalidade do artigo em análise. De outro giro, a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 5.035 consolidou, em razão da sua natureza dúplice própria do controle concentrado de constitucionalidade, a constitucionalidade do artigo 7º, incisos I e II; do artigo 9º, §1º, §2º, incisos I e II, §3º; do artigo 10 e do artigo 11. Frisa-se: não do artigo 3º.

Em que pese isso, a ADI 5.035 continua sendo utilizada em diversas decisões judiciais como sendo um precedente que teria declarado a constitucionalidade do citado artigo 3º. Contudo, seu objeto sequer alcançou esse dispositivo.

O equívoco da problemática pode ter origem na conceituação de um precedente e do que faz parte dele. Isso demonstra a importância das frequentes críticas por parte da CHD e, notadamente, do maestro Lenio Streck sobre a simplificação do que é um precedente. Afinal, há reflexos práticos muito relevantes e, inclusive, potenciais direitos violados em razão da má compreensão sobre precedentes judiciais — como no tema em análise.

O leitor deve lembrar que, anteriormente, se mencionou o voto do ministro Marco Aurélio, relator da ADI 5.035. Ele afirmou que a constitucionalidade do artigo 3º estava sendo questionada naquela ação. Na citação, o ministro analisa a questão relacionada com a garantia constitucional da autonomia universitária, e concluiu pela suposta constitucionalidade do artigo 3º.

Isso ocorreu, porque o voto é oriundo de uma proposta de julgamento conjunto das ADIs 5.035 e 5.037 que não prosperou. Esse equívoco, portanto, gerou a errônea impressão de apreciação da constitucionalidade da norma. Entretanto, o ponto fulcral é: trata-se de obiter dicta.

Mais ainda, trata-se de algo não pedido pelo autor da ação. Logo, diante da adstrição do julgamento ao pedido, não há decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o artigo 3º. Diante de tudo isso, resta evidente que a ADI 5.035 não é precedente para a discussão sobre a constitucionalidade do referenciado artigo.

Noutro sentido, veja-se que a afirmação de que a ADI 5.035 declarou a constitucionalidade do artigo 3º da Lei dos Mais Médicos é exemplo claro e evidente acerca de como, no Brasil, os precedentes são tratados com simplificação e esvaziamento de sentido, tal como a CHD comumente expõe. Não se busca, para a sua aplicação, a ratio decidendi, e, como afirma Streck, Raatz e Morbach, isso não parece incomodar boa parte da doutrina, que, em vez de se rebelar diante de uma espécie de subversão judicial do princípio da separação de poderes, prefere chancelar tais práticas [6].

Por tudo isso, exalta-se a importância de combater a simplificação do sistema de precedentes brasileiros. Afinal, o aprofundamento da temática soluciona problemas complexos e impede que direitos sejam violados em razão de erros essencialmente hermenêuticos. Assim, ressalta-se, mais uma vez, a importância da crítica doutrinária frequentemente veiculada pela Crítica Hermenêutica do Direito.

 


[1] STRECK, Lenio Luiz. Por que commonlistas brasileiros querem proibir juízes de interpretar? Revista Consultor Jurídico, set. 2016, disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-set-22/senso-incomum-commonlistas-brasileiros-proibir-juizes-interpretar

[2] STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; MORBACH, Gilberto. Da complexidade à simplificação na identificação da ratio decidendi: será mesmo que estamos a falar de precedentes no Brasil? Revista Juridica, [S.l.], v. 1, n. 54, p. 317 – 341, mar. 2019. ISSN 2316-753X. Disponível em: http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/view/3312/371371804. Acesso em: 28 jul. 2022. doi: http://dx.doi.org/10.26668/revistajur.2316-753X.v1i54.3312.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2021.

[4] STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; MORBACH, Gilberto. Da complexidade à simplificação na identificação da ratio decidendi: será mesmo que estamos a falar de precedentes no Brasil?, p. 320.

[5] STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015, 2021.

[6] STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; MORBACH, Gilberto. Da complexidade à simplificação na identificação da ratio decidendi: será mesmo que estamos a falar de precedentes no Brasil?

Autores

  • é advogado, professor de Direito Público do Centro Universitário Ritter dos Reis (Uniritter/RS) e do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF), doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dadein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Rede Ibero-Americana de Advocacia Criminal.

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