Opinião

Retroatividade da Lei nº 14.230/2021, de improbidade administrativa

Autor

  • Saul Tourinho Leal

    é pós-doutor em Direito Constitucional pela Humboldt e ex-assessor da Corte Constitucional da África do Sul e da vice-presidência da Suprema Corte de Israel.

28 de julho de 2022, 6h07

O plenário do Supremo Tribunal Federal se debruçará, dia 3 de agosto, sobre o agravo em recurso extraordinário nº 843.989, relatado pelo ministro Alexandre de Moraes, discutindo o Tema nº 1.199, qual seja: "Definição de eventual (ir)retroatividade das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação: (I) a necessidade da presença do elemento subjetivo — dolo — para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no art. 10 da LIA; e (II) a aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente" [1].

Spacca

O debate tem início com o advento da Lei nº 14.230/2021, que redesenhou a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), dispondo que a configuração da responsabilidade civil por ato de improbidade exige a comprovação da responsabilidade subjetiva dolosa, fixando também o prazo de prescrição em oito anos contados da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência (artigo 23), mas trazendo marcos interruptivos da prescrição (artigo 23, §4º) e a prescrição intercorrente; assim verificada uma das causas interruptivas, "o prazo recomeça a correr do dia da interrupção", mas "pela metade do prazo previsto no caput deste artigo" (artigo 23, § 5º).

Como o inciso XL do artigo 5º da Constituição diz que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu", o caso indaga se seria tal comando aplicável aos implicados em improbidade administrativa, diante do advento da referida Lei nº 14.230/2021.

Entendendo ser o caso de se julgar procedente o referido recurso e propondo uma resposta afirmativa às questões postas pelo Tema 1.099, apresento pelo menos dois fundamentos jurídicos que justificam tal conclusão. São eles: (1) o fato legislativo caracterizado pela opção do Congresso de não inserir comando prevendo expressamente a retroatividade, por já haver jurisprudência do STJ nesse sentido; e (2) atual jurisprudência de quase todos os tribunais (estaduais e federais e STJ) reconhecendo a aplicação retroativa da lei.

Primeiramente, o fato legislativo. O professor João Trindade lembra que, na tramitação do Projeto de Lei (PL) nº 2.505/2021, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado deliberou sobre a retroatividade das novas normas. Ao rejeitar a emenda nº 40 — que inseria no texto do PL referência à retroatividade das normas benéficas — o relator do PL, em manifestação acolhida pelos pares, registrou o seguinte [2]: "A Emenda nº 40, do senador Dário Berger, propõe a inclusão de artigo, onde couber, no Projeto de Lei nº 2.505, de 2021, para que as alterações dadas pela presente proposição, se apliquem desde logo em benefício dos réus. Rendendo homenagens ao senador Dário Berger, deixo de acolher a proposta tendo em vista que já é consolidada a orientação de longa data do Superior Tribunal de Justiça, na linha de que, considerando os princípios do Direito Sancionador, a novatio legis in mellius deve retroagir para favorecer o apenado" (Resp nº 1.153.083/MT, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 19/11/2014) [3]

O mesmo precedente do STJ que ensejou o diálogo entre o Congresso e àquela corte de modo a fazer o Legislativo optar, em respeito à jurisprudência, por não inserir expressamente a retroatividade na lei, também foi objeto de lembrança pelo relator do leading case que será julgado da 3/8 no STF, ministro Alexandre de Moraes, que em seu voto quanto à repercussão geral assim pontuou, na página 25 do acórdão: "a Ilustre Min. Regina Helena Costa, inaugurando a divergência, defendeu a existência no Direito Administrativo Sancionador de um princípio implícito da retroatividade da lei mais benéfica, extraído do art. 5º, XL, da CF" [4].

O Congresso, portanto, confiou no Judiciário, tendo sido leal à posição do STJ no tema, optando, por essa razão, por não emendar o PL inserindo expressamente a retroatividade, mas justificando a razão pela qual fazia aquela opção. Esse tipo de fato legislativo é importante para a jurisdição constitucional em temas com repercussão geral [5].

Por fim, uma decisão do STF que reconheça a incidência do inciso XL do artigo 5º da Constituição na espécie, aplicando, portanto, retroativamente, a Lei nº 14.230/2021, em nada surpreenderia a comunidade ou o Sistema de Justiça, incluindo o próprio Ministério Público, não havendo, portanto, mácula alguma ao primado da segurança jurídica. É que em quase todos os tribunais do país essa posição já vem sendo adotada.

Segundo o TRF-2, "a retroatividade da lei mais benéfica ao acusado deve ser assegurada nos processos de improbidade, por analogia à ação penal, embora se trate de matéria cível" [6]. Para o TRF-3 [7], “relativamente à retroatividade da norma, no que se refere à prescrição intercorrente, instituto de direito processual, parte da doutrina e jurisprudência tem se posicionado pela aplicação imediata e retroativa da Lei nº 14.230/2021 aos processos em andamento, desde que para beneficiar o réu (artigo 5º, inciso XL, da CF), ao fundamento de que o artigo 1º, § 4º, da lei determina a aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador ao sistema da improbidade, entre os quais se destaca o princípio da retroatividade da lei mais benéfica" [8]. O mesmo anota o TRF-4 [9] e o TRF-5 [10].

No âmbito dos Tribunais de Justiça, o quadro não é diferente. Eis os estados que já decidiram por aplicar retroativamente a lei: AP, BA, CE, DF, ES, GO, MA, MG, MS, MT, PA, PB, PE, PI, PR, RJ, RR, RS, SC, SE, SP e TO.

No âmbito do STJ, para além da jurisprudência admitindo a retroatividade [11], recentemente o presidente, ministro Humberto Martins, deferiu liminares com efeito suspensivo a recursos contra condenações por improbidade (TPs 4.022, 4.023 e 4.036).

Por fim, no STF, há a decisão do ministro Nunes Marques no ARE nº 1.325.653 AgR (DJe 5/7/2022), segundo a qual "havendo uma norma específica (§ 5º do art. 23 da Lei 14.230/2021) prevendo o reinício, pela metade, da contagem do prazo prescricional interrompido, tal disposição há de prevalecer sobre a regra geral estatuída na novel disposição do Código Civil (art. 206-A). Tampouco o art. 921 da Lei Adjetiva Civil, aludido no supra transcrito dispositivo legal, tem o condão de impedir, suspender ou interromper a prescrição, porquanto aquele preceito se refere às causas de suspensão da execução — o que somente poderia ser invocado, na espécie, em favor do ora recorrente".

Assim, a conclusão é a de que o inciso XL do artigo 5º da Constituição — "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu" — autoriza a retroatividade das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação: (1) à necessidade da presença do elemento subjetivo — dolo — para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no art. 10 da LIA; e (2) à aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente.

 


[1] Houve a suspensão do processamento dos recursos especiais nos quais suscitada, ainda que por simples petição, a aplicação retroativa da Lei nº 14.230/2021. Suspendeu-se também o prazo prescricional nos processos com repercussão geral. No plano jurisprudencial, o STF havia definido a Tese nº 666, no RE nº 669.069, de relatoria do saudoso ministro Teori Zavascki: "É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil". Posteriormente, fixou a Tese nº 897, no RE nº 852.475, cuja redação para acórdão coube ao ministro Edson Fachin: "São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade". Por fim, a Tese nº 899 (RE nº 636.886, rel. min. Alexandre de Moraes), que diz: "É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas".

[2] Cavalcanti Filho, J. T. Retroatividade da Reforma da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021). Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/Conleg/Senado. Novembro 2021 (Texto para Discussão n. 305). Disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td305, p. 24.

[3] Resp. nº 1.153.083/MT, 1ª Turma, redação para acórdão da ministra Regina Helena Costa: "(…) O art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage. Precedente. II. Afastado o fundamento da aplicação analógica do art. 106 do Código Tributário Nacional, bem como a multa aplicada com base no art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil. III. Recurso especial parcialmente provido".

[4] Também o AgInt no RMS nº 65.486/RO, rel. min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, DJe 26/8/2021: "(…) 2. O processo administrativo disciplinar é uma espécie de direito sancionador. Por essa razão, a Primeira Turma do STJ declarou que o princípio da retroatividade mais benéfica deve ser aplicado também no âmbito dos processos administrativos disciplinares. À luz desse entendimento da Primeira Turma, o recorrente defende a prescrição da pretensão punitiva administrativa. (…)".

[5] Como anotou o ministro Gilmar Mendes: "Em outros termos, a aferição dos chamados fatos legislativos constitui parte essencial do chamado controle de constitucionalidade, de modo que a verificação desses fatos relaciona-se íntima e indissociavelmente com a própria competência do Tribunal". Anotações acerca da apreciação e revisão de fatos e prognoses legislativas perante a Corte Constitucional alemã e o Supremo Tribunal Federal brasileiro, p. 267. In: Almeida, Fernando Dias Menezes de; Amaral Júnior, José Levi Mello do; Leal, Roger Stiefelmann; Horbach, Carlos Bastide (coord.)- Direito Constitucional, Estado de Direito e Democracia: Homenagem ao Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Quartier Latin, 2011.

[6] Apelação/Remessa Necessária 0003494-90-2008-4-02-5110, rel. des. Ricardo Perlingeiro, 5ª T Especializada, DJ 19/5/2022. ApCiv 0003486-68-2007-4-02-5104, rel. des. Ricardo Perlingeiro, 5ª T Especializada, DJ 19/5/2022. AI 50004064020204020000, rel. des. Ricardo Perlingeiro, 5ª T Especializada, DJ 19/5/2022.

[7] ApCiv 5000547-79.2018.4.03.6118, 3ª T, rel. des. fed. Luis Carlos Hiroki Muta, DEJF 17/1/2022. ApCiv 5000547-79.2018.4.03.6118, 3ª T, rel. des. fed. Luis Carlos Hiroki Muta, DEJF 17/1/2022.

[8] ApCiv: 50006609720174036108, rel. juiz fed. convoc. Marcelo Guerra Martins, 4ª T, DJEN 25/2/2022.

[9] AG 50477988220214040000, rel. des. fed. Vivian Josete Pantaleão Caminha, j. 30/3/2022, 4ª T. AG 50120522220224040000, rel. des. fed. Vânia Hack de Almeida, j. 21/6/2022, 3ª T.

[10] APL 08000946920174058203, 2ª T, rel. des. fed. Paulo Roberto de Oliveira Lima, j. 14/12/2021. Ap 00006989620134058205, rel. des. fed. Rubens De Mendonça Canuto Neto, j. 8/3/2022, 4ª T. Ap 08075553720184058307, rel. des. fed. Arnaldo Pereira de Andrade Segundo (convoc.), j. 26/5/2022, 3ª T.

[11] Mais um exemplo: RMS nº 37.031/SP: "(…) o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no artigo 5, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador" (rel. min. Regina Helena Costa, 1ª Turma, DJe 20/2/2018).

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