Opinião

Implementação do Perse e controle de legalidade/igualdade no direito tributário

Autores

  • André Elali

    é professor associado de Direito Tributário da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) visiting scholar na Queen Mary University of London e no Max-Planck-Institüt für Steuerrecht.

  • Manoel Cipriano

    é advogado graduado e mestrando em Direito pela UFRN.

28 de julho de 2022, 16h07

Pretende-se examinar, no presente artigo, a eventual adequação de certas restrições de agentes econômicos, à luz do sistema constitucional tributário, aos benefícios fiscais instituídos no Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), nos termos da Lei Federal nº 14.148/2021.

O objeto da análise diz respeito às exigências formais para que as empresas do setor de eventos possam auferir os incentivos instituídos para compensar os efeitos e danos decorrentes da pandemia (Covid-19), que impôs a paralisação de atividades econômicas por longos períodos, além dos efeitos nos fluxos de caixa das empresas.

Incentivos fiscais no caso concreto. Exigência formal
Em 4/5/2021, houve a publicação no DOU 4/5/21 da Lei Ordinária 14.148/2021, acompanhada dos vetos parciais opostos pelo presidente da República (DOU 04/05/21 PÁG 07 COL 02). No dia 18/3/2022 houve a rejeição ao veto oposto pelo presidente Bolsonaro, pelo Congresso, voltando a se inserir na lei a indenização para as empresas do setor que tiveram redução superior a 50% do faturamento entre 2019 e 2020, limitada ao valor global de R$ 2,5 bilhões, bem como a instituição de alíquota zero de quatro tributos federais por 60 meses, além da participação no Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte) com taxa máxima de juros de 6% ao ano mais a Selic.

A Lei 14.148/2021 estabeleceu a limitação das atividades que são consideradas pertencentes ao setor de eventos. Segundo a lei, então, consideram-se pertencentes ao setor de eventos e, portanto, beneficiárias dela as pessoas jurídicas que exerçam, dentre outras hipóteses, as atividades de prestação de serviços turísticos direta ou indiretamente, conforme o artigo 21 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008.

A Lei 11.771/2008 (Lei Geral de Turismo), por sua vez, estabelece que se consideram prestadores de serviços turísticos as sociedades empresárias, sociedades simples, os empresários individuais e os serviços sociais autônomos que prestem serviços turísticos remunerados e que exerçam as seguintes atividades econômicas relacionadas à cadeia produtiva do turismo: meios de hospedagem; agências de turismo; transportadoras turísticas; organizadoras de eventos; parques temáticos; e acampamentos turísticos.

Contudo, no seu parágrafo único, estende o conceito de serviço turísticos a outras atividades, facultando o cadastro dessas atividades no Ministério do Turismo, expressis verbis:

"Artigo 21.  Consideram-se prestadores de serviços turísticos, para os fins desta Lei, as sociedades empresárias, sociedades simples, os empresários individuais e os serviços sociais autônomos que prestem serviços turísticos remunerados e que exerçam as seguintes atividades econômicas relacionadas à cadeia produtiva do turismo:
I – meios de hospedagem;
II – agências de turismo;
III – transportadoras turísticas;
IV – organizadoras de eventos;
V – parques temáticos; e
VI – acampamentos turísticos.
Parágrafo único.  Poderão ser cadastradas no Ministério do Turismo, atendidas as condições próprias, as sociedades empresárias que prestem os seguintes serviços:
I – restaurantes, cafeterias, bares e similares;
II – centros ou locais destinados a convenções e/ou a feiras e a exposições e similares;
III – parques temáticos aquáticos e empreendimentos dotados de equipamentos de entretenimento e lazer;
IV – marinas e empreendimentos de apoio ao turismo náutico ou à pesca desportiva;
V – casas de espetáculos e equipamentos de animação turística;
VI – organizadores, promotores e prestadores de serviços de infra-estrutura, locação de equipamentos e montadoras de feiras de negócios, exposições e eventos;
VII – locadoras de veículos para turistas; e
VIII – prestadores de serviços especializados na realização e promoção das diversas modalidades dos segmentos turísticos, inclusive atrações turísticas e empresas de planejamento, bem como a prática de suas atividades."

Confirmando a expansão do conceito de serviços turísticos, a regulamentação da Lei Geral de Turismo, nos termos do Decreto 7.381/10, na seção II, que dispõe sobre os "Prestadores de Serviços Turísticos de Cadastramento Facultativo", afirma que tanto os previstos no caput como no parágrafo único estão compreendidos como prestadores de serviços turísticos.

Diante desse contexto, as empresas nunca se viram obrigadas, por expressa disposição legal, ao cadastro no Ministério do Turismo, mesmo sendo consideradas prestadoras de serviços turísticos, já que o parágrafo primeiro do artigo 21 da Lei Geral de Turismo excepciona a obrigatoriedade do cadastro feita pelo artigo 22 da mesma Lei.

O fato de serem consideradas prestadoras de serviços turísticos independentemente de cadastro no Ministério do Turismo está expresso na Lei Geral de Turismo e no seu regulamento (Decreto nº 7.381/10), de modo que, pela simples leitura do §1º, IV, artigo 2º da Lei 14.148/2021, qualquer empresa do setor está enquadrada no conceito de eventos e, portanto, seria beneficiária do Programa Emergencial de Retomada do Setor.

O Ministério da Economia publicou a Portaria nº 7.163/2021 que, confirmando a explanação feita acima, enquadrou as empresas como prestadoras de serviços turísticos e, por consequência, enquadrou as mesmas no setor de eventos. No entanto, ao fazer isso, dispôs o anexo que "as pessoas jurídicas que exercem as atividades econômicas relacionadas no Anexo II a esta Portaria poderão se enquadrar no Perse desde que, na data de publicação da Lei nº 14.148, de 2021, sua inscrição já estivesse em situação regular no Cadastur, nos termos do art. 21 e do art. 22 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008".

Ora, os agentes econômicos que prestam serviços e circulação de mercadorias, no âmbito de restaurantes e similares, são considerados prestadores de serviços turísticos independentemente do cadastro no Ministério do Turismo, sendo facultativa o seu cadastro. Portanto, a Portaria do Ministério da Economia, ao limitar indevidamente o benefício concedido pela Lei 14.148/2021, foi de encontro ao previsto no CTN (CTN, artigo 111, II). Vejamos.

Legalidade e confiança legítima
O artigo 150, I, da CF, estabula o "Princípio" da Legalidade, o qual determina que nenhuma pessoa jurídica de direito público institua ou majore tributos sem Lei que o estabeleça. No entanto, a vinculação à legalidade perpassa à necessidade de obediência à lei na instituição e majoração do tributo e isso porque o "princípio" da legalidade está vinculado ao modelo do Estado do Direito (artigo 1º da CF) e deve ser interpretado sistematicamente, para que se possa atribuir coerência ao sistema tributário.

O "princípio" da Legalidade, portanto, é expressão do sistema de freios e contrapesos, ao exigir o consenso entre Legislativo (que aprova o texto legal) e Executivo (que o promulga) como condição para a instituição ou majoração de um tributo e serve para que se possa ter previsibilidade e estabilidade nas relações jurídica, retirando os particulares (contribuintes) do arbítrio e insegurança, já que deve haver uma vinculação direta da conduta do Estado-Fiscal ao disposto na Lei vigente (legalidade da Administração).

Considerando isso, o §6º do artigo 150 da CF dispôs que "qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei", vinculando a concessão dos benefícios fiscais ao princípio da legalidade. É dizer, o "Princípio" da Legalidade não abrange apenas a instituição ou aumento de tributo, mas também sua redução, extinção, exclusão e suspensão.

Eis, portanto, um ponto que merece atenção: em virtude da própria ideia de hierarquia de leis, não há dúvida de que se o legislador ordinário fixou uma alíquota, não pode a administração modificá-la. Seria caso de ilegalidade flagrante. Do mesmo modo, se o legislador dispensou determinados contribuintes do recolhimento de determinado tributo, não poderá a administração incluí-los sem que isso represente uma afronta direta à legalidade.

É nesse contexto que, ao se analisar a Lei nº 14.148/2021, percebe-se que houve uma violação à legalidade. A Lei Geral de Turismo, ao estabelecer quais são as pessoas jurídicas que podem ser consideradas prestadoras de serviços turísticos, dispôs, no artigo 22, que todos eles estão obrigados ao cadastro no Ministério do Turismo, no entanto afirmou que deveriam ser observadas as formas e nas condições fixadas na Lei Geral de Turismo e na sua regulamentação.

Ao se fazer uma leitura sistemática e orgânica da Lei Geral de Turismo, mesmo o artigo 22 dispondo que o cadastro no Ministério do Turismo seja obrigatório, há de se atentar ao fato de que o próprio artigo limita a obrigatoriedade do cadastro à observância das disposições contidas na própria lei e na regulamentação.

Portanto, considerando a legalidade e a interpretação que deverá ser atribuída aos benefícios fiscais, não se mostra possível que o Poder Executivo, por meio de Portaria, crie condições para a concessão do benefício da alíquota zero, sem que isso represente uma afronta direta à legalidade e à isonomia, pois os prestadores de serviços turísticos do §1º do artigo 21 da Lei Geral de Turismo, embora sejam considerados prestadores de serviços turísticos, não estão obrigados ao cadastro.

Ora, o significado de segurança jurídica está conectado à própria ideia de Direito. Nas palavras de Humberto Ávila [1], "[…] a segurança jurídica não é uma qualidade intrínseca do Direito ou de suas normas, vinculada à sua prévia determinação, porém um produto cuja existência, maior ou menor, depende da conjugação de uma série de critérios e de estruturas argumentativas a serem verificadas no processo de aplicação do Direito".

Isonomia e livre concorrência
Inter alia, há de se relacionar o tema à ordem econômica. E isso porque a aplicação do artigo 170 da CF não pode permitir que pessoas que exerçam a mesma atividade econômica sejam, de alguma forma, tratadas de maneira desigual sem que isso acarrete uma violação à ordem econômica e à isonomia, principalmente quando tal distinção é feita sem fundamento legal e/ou constitucional. A cobrança de qualquer obrigação tributária indevida prejudica a livre concorrência, pois coloca em desfavor de um agente econômico um ônus que gera maior custo de sua atividade, gerando uma possibilidade de danos dos concorrentes que obtiveram a suspensão da exação.

Conclusões
Desse modo, a exigência do cadastro às empresas do setor, estatuído por Portaria (ato infralegal), contraria frontalmente a legalidade tributária e gera efeitos nocivos em relação à igualdade e à liberdade concorrencial. As empresas que se enquadram no status da Lei que instituiu os incentivos fiscais têm direito ao tratamento jurídico determinado não obstante a restrição arbitrária e ilegal. As empresas do setor, ou equiparadas legalmente, por decisão política, devem se submeter ao mesmo regime tributário.


[1] ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica. Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 136.

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