Escritos de Mulher

Ainda sobre o desrespeito às mulheres: a menina que queria jogar futebol

Autor

27 de julho de 2022, 8h03

Não se trata de redundância, mas será preciso recontar as ocorrências de desrespeito às mulheres para que não passem em branco, para que não se repitam, para que não haja mais tanta injustiça e tanta agressão. Não bastasse o anestesista que estuprava mulheres em trabalho de parto; o cardiologista que atacava filhas de pacientes durante as consultas; o ginecologista que implantava óvulos fecundados por ele mesmo no útero das pacientes que ansiavam tornar-se mães, sem informá-las de que estava utilizando espermatozóides não pertencentes aos seus maridos. Não bastassem os estupros, os feminicídios, os assédios sexuais, o boicote, o dia-a-dia insultuoso nas ruas e nos transportes coletivos. Isso tudo além dos desrespeitos cotidianos sofridos pela maioria da população, que é composta de mulheres.

Spacca
A sociedade patriarcal é culpada pelos dissabores repetitivos que sofrem os seres humanos do sexo feminino. A rejeição aos direitos mais básicos das mulheres se manifesta no cotidiano e, na maioria esmagadora dos casos, não há punição, apesar de termos legislação cerceadora penal para a maioria das condutas praticadas. Foi em consonância com o sentimento de exclusão que uma família de Belo Horizonte (MG) precisou entrar na Justiça para garantir que uma garota de dez anos fosse admitida em um time de futebol! Só um país muito atrasado em termos de direitos humanos poderia chegar a esse extremo. A família da garota precisou acionar a escola judicialmente para garantir os direitos da filha. Tal ocorrência foi divulgada pela Folha de S.Paulo do dia 26 de julho de 2022, no caderno de esporte, destacando que, ao conseguir jogar, a menina fez cinco gols em um jogo que terminou 6×1.

Pode parecer irrelevante, mas, na verdade, trata-se de uma grave violação aos direitos humanos, tais como de desenvolvimento físico, mental, profissional, moral, sentimental e sexual da população feminina. A sociedade patriarcal restringe as mulheres de todas as formas possíveis, impedindo que as meninas se desenvolvam adequadamente e apresentem as habilidades para as quais foram dotadas, seja de nascença ou não. Na verdade, as crianças do sexo feminino são cerceadas em seus direitos básicos desde tenra idade, quando ouvem conselhos como "não saia de casa sozinha", "mulher não sabe dirigir veículo automotor", "mulher é frágil", "mulher não pode exercer profissão de homem", "mulher não pode e não sabe jogar futebol"…

Peço licença para repetir a Constituição Federal do Brasil sobre os direitos que ela garante à população em geral e à população feminina em especial. Antes de mais nada, a CF estabelece que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (artigo 5º, I, da CF). Somente essa frase resolveria todos os problemas, mas em terra de cego onde quase ninguém tem um olho e não se reconhece "um rei", poucos se sentem na obrigação de obedecer. É preciso esclarecer as minúcias. Evidentemente, se todos e todas são iguais perante a lei, nenhum cerceamento pode ser aplicado a qualquer pessoa, mesmo que essa pessoa seja mulher. No entanto, a ignorância em relação às leis é tamanha que poucos se dão conta de seu descumprimento cotidiano. Não percebem a discriminação generalizada de gênero, de raça, de cor, de opção sexual, de nacionalidade, etc. Nem o direito à vida é respeitado como deveria, principalmente quando se trata da vida de mulheres. O Brasil é um dos países em que mais ocorrem feminicídios no mundo. As mulheres são mortas por seus maridos, ex-maridos, namorados e afins porque, diante de padrões sociais muito arraigados, elas são menos do que os homens e não merecem nem o direito à vida. O massacre chega ao assassinato, cotidianamente, e ninguém ensina as mulheres a se defender com unhas e dentes.

Nos Estados Unidos da América, até algum tempo atrás, as mulheres tinham dificuldades para integrar times de basquete. Lá, tal categoria esportiva equivale ao futebol no Brasil. Evidentemente, o patriarcado não foi inventado pelo Brasil nem é exclusividade nossa, mas o que se percebe ao redor do mundo é que os esportes nacionais de certos países excluem as mulheres para impedir seu desenvolvimento físico, financeiro, patrimonial e intelectual, de modo a evitar a concorrência de gênero a qualquer custo. Trata-se de massacre psicológico. No entanto, nada justifica esse comportamento, que, no mais das vezes, pode configurar crime.

A menina que queria jogar futebol em Belo Horizonte está no íntimo de todas nós. Não apenas pelo futebol, mas pelo que essa exclusão significa. Nós, mulheres, homens e LGBTQIA+ não devemos nem podemos aceitar qualquer tipo de discriminação, por mais ínfima que seja. A prática de esporte é um direito de todes no Brasil, sem distinção de gênero. A lei é clara e indiscutível em relação a isso. A discriminação de qualquer espécie é proibida pela CF e constitui crime fartamente previsto no Código Penal, em várias de suas modalidades.

A prática de esportes não é uma questão de gênero. É, isto sim, um direito da cidadania, tanto que se mostra obrigatória nas escolas. A mãe da garota de BH salvou sua filha de uma frustração injustificável. Ao apoiar a menina, surgiram outras alunas pedindo para jogar futebol e, finalmente, a escola organizou um time feminino. O Brasil tem as leis que equiparam os gêneros. Faltam-nos iniciativas para fazê-las funcionar.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!