Opinião

Contraditório inútil?

Autor

  • Luiz Roberto Hijo Sampietro

    é doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP) especialista em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD) bacharel em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT) advogado professor de Processo Civil no Núcleo de Direito à saúde da ESA/OAB-SP e em cursos de pós-graduação lato sensu.

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26 de julho de 2022, 6h37

Plasmada no brocardo latino audiatur et altera pars [1], a garantia do contraditório está prevista no inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes". Em harmonia com o Estado democrático de Direito, o CPC vigente disciplinou o contraditório em minúcias. Enquanto norma fundamental do processo civil, as diretrizes gerais da mencionada garantia estão previstas nos artigos 7º, 9º e 10.

A feição atual do contraditório no CPC é o resultado da aceitação do caráter público e da tomada de consciência de que o processo civil serve ao direito material, como veículo da boa prestação jurisdicional. Nesse passo, o jurista italiano Elio Fazzalari revisitou a noção tradicional da relação jurídica processual e passou a tratar o processo sob os influxos do procedimento e do próprio contraditório. Segundo o mencionado autor, o contraditório se materializa a partir do exercício de uma miríade de escolhas, reações e controles de todos os partícipes do litígio drama judicial, que se agrupam e se influenciam mutuamente [2].

No Brasil, ainda na vigência do CPC de 1973, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira [3] desenvolveu a ideia de cooperação no processo civil: ao reconhecer que as partes também poderiam contribuir com o juízo para a descoberta das regras incidentes ao caso dos autos, o processualista gaúcho retirou o protagonismo do magistrado e oxigenou a garantia do contraditório, que passou a ser entendido como a ciência bilateral dos atos do processo, a possibilidade de impugná-los e a efetiva participação das partes na formação dos provimentos sobre as matérias dispositivas e também de conhecimento oficioso.

O legislador do atual CPC parece ter acatado as recomendações da doutrina ao dispor, no artigo 10, a regra que proíbe a decisão surpresa. O dispositivo em foco não permite que o juiz profira decisão fundamentado em matéria dispositiva ou mesmo de conhecimento ex officio sem ter dado aos litigantes a possibilidade de manifestação prévia sobre o assunto. Mesmo diante de regra que visa a assegurar a genuína participação dos litigantes na formação do provimento, é pertinente o questionamento que serve de título a esse ensaio: será que existem situações em que o prévio contraditório se afigura inútil? Será que o audiatur et altera pars pode ser tido como desnecessário e dispensável em algumas hipóteses?

Com relação ao réu, o Código de Processo Civil positivou algumas situações em que o juízo está autorizado a julgar a demanda liminarmente, sem a ouvida do demandado. Assim, dispensa-se a oitiva do réu quando for o caso de indeferimento da petição inicial [4] [5] ou quando houver permissão expressa para o julgamento de improcedência liminar da pretensão do autor [6]. Nesses casos, dispensa-se o contraditório porque o julgamento irá favorecer o réu. Inútil [7], portanto, admitir o prolongamento da relação jurídico-processual nessas situações.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça também identificou algumas situações em que seria possível dispensar o contraditório por suposta inutilidade. O primeiro exemplo que identificamos concerne aos requisitos de admissibilidade para a interposição do recurso especial. No caso em debate nos autos do AREsp nº 1.496.311/MG [8], o agravante sustentou que a decisão unipessoal responsável pela negativa de seguimento ao prévio agravo em recurso especial estava apoiada na Súmula n. 283 do STF [9], e que não houve prévio debate sobre a incidência do mencionado verbete sumular ao caso daqueles autos. Para negar a suscitada violação ao artigo 10 do CPC, o STJ pontificou que os requisitos de admissibilidade do recurso especial estão "previstos em lei e [são] reiteradamente proclamados por este Tribunal".

O segundo exemplo do STJ, tirado de acórdão proferido nos autos do REsp nº 1.755.266/SC [10], entendeu pela não existência de ofensa ao artigo 10 do CPC porque o "fundamento" previsto no mencionado dispositivo legal é o fundamento jurídico  circunstância de fato qualificada pelo direito , e não o fundamento legal, que é o dispositivo de lei regente da matéria. Ao se admitir essa interpretação restritiva daquilo que seja o "fundamento" previsto no artigo 10 do CPC, o acórdão proferido no AREsp nº 1.496.311/MG se equivocou. Realmente, não se pode invocar o desconhecimento do ordenamento jurídico (Lindb, artigo 3º, e CPC, artigo 8º) para coonestar a não aplicação dele. Porém, esse raciocínio não equivale ao fato de a parte saber se o recurso dela não será conhecido por alegado descumprimento do conteúdo de súmula não vinculante, ainda que de tribunal superior.

Outro exemplo que retiramos do acervo de julgados do STJ [11] considerou, acertadamente, ter havido nulidade por ausência de intimação da parte contrária para oferecer resposta aos embargos de declaração com efeitos modificativos. A propósito, o CPC, no parágrafo único do artigo 1.023, impõe a obrigatoriedade de intimação do embargado para exercer o contraditório se os embargos de declaração tiverem a potencialidade de modificar a decisão embargada.

Em contrapartida, o quarto exemplo [12] a ser examinado atine à juntada de documentos novos aos autos. O julgado entendeu o seguinte: "só há nulidade ao artigo 398 do CPC [CPC/15, artigo 435] nos casos em que os documentos juntados pela parte adversa influenciaram o deslinde da controvérsia, gerando prejuízo à parte contrária, o que não ocorreu no caso dos autos". No entanto, o precedente deve ser utilizado com cautela, dada a impossibilidade de se estabelecer um modelo apriorístico que considere o documento fundamental ou não para a solução da demanda. Por inexistir tarifação de provas no sistema processual civil brasileiro [13], não é possível saber, isoladamente, se o documento poderá ou não influir na formação da convicção do juízo. Sozinho, o documento nada pode representar; todavia, em conjunto com os demais ou até mesmo com as outras provas produzidas (ex.: prova oral, pericial etc.), o documento pode ganhar relevância e ser decisivo para a solução do conflito de interesses. Em nossa opinião, sempre que um documento for juntado aos autos, mesmo que ele pareça insignificante ou descontextualizado à primeira vista, deve o magistrado intimar a parte contrária para apresentar manifestação, conforme o §1º do artigo 437 do CPC [14].

O último exemplo que extraímos da jurisprudência do STJ diz respeito ao parecer de jurista coligido aos autos. Ao ensejo do julgamento do REsp nº 1.641.901/SP [15], o acórdão lá proferido considerou que o "parecer de jurista não se compreende no conceito de documento novo para os efeitos do artigo 398 do CPC/73 [CPC/15, artigo 435] porque se trata apenas de reforço de argumentação para apoiar determinada tese jurídica, não sendo, portanto, imperativa a oitiva da parte contrária a seu respeito". Além do que já expusemos ao comentar o AgInt no AREsp nº 1.960.327/AM, é necessário resguardar a igualdade material entre os litigantes (CPC, artigo 7º) [16], pois quem atua no contencioso sabe que o parecer de jurista detém alta carga persuasiva, e é capaz de desequilibrar a disputa judicial contra aquele litigante que não teve a oportunidade de exercer o contraditório relativamente ao parecer.

Ir além das situações em que o próprio Código de Processo Civil trata o contraditório como inútil é sistematicamente interessante para que a jurisdição seja mais rápida e menos custosa. Porém, não se deve utilizar esse entendimento para tolher o contraditório nas hipóteses em que o efetivo exercício dele é fundamental para que se tenha decisões proferidas nos moldes do devido processo legal.


[1] Sobre a evolução histórica do contraditório, ler PICARDI, Nicola. "Audiatur et altera pars": le matrice storico-culturali del contraddittorio. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, mar./2003, p. 7-22. Há tradução em português, de responsabilidade de Luis Alberto Reichelt, intitulada Audiatur et altera pars: as matrizes histórico-culturais do contraditório. In PICARDI, Nicola. Jurisdição e processo. Organizador e revisóri técnico da tradução: Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 127-143. 

[2] FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. 7ª ed. Padova: CEDAM, 1994, p. 82-84.

[3] Garantia do contraditório. Garantias constitucionais do processo civil. Coord. José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: RT, 1999, p. 132-150.

[4] CPC, artigo 330. Essa conclusão fica mais clara a partir do exame do caput do artigo 331 do mesmo Código, que possibilita ao juízo de primeiro grau se retratar da decisão de indeferimento, a partir da interposição do recurso de apelação.

[5] O Superior Tribunal de Justiça já considerou ser desnecessário intimar as partes para se pronunciar a respeito da inépcia da petição inicial. Assim, o acórdão que declarou a inépcia sem o audiatur altera pars não viola o artigo 10 do CPC. A respeito, veja-se o REsp nº 1.781.459/MG, relator ministro Herman Benjamin, 2ª T., j. 2.6.2020)

[6] CPC, artigo 332. Dentre as hipóteses legais, o §1º admite o reconhecimento liminar da decadência ou da prescrição. Nessas condições, o reconhecimento dessa prejudicial de mérito (ou de mérito, para quem entende a prescrição/decadência como tal), é uma exceção à regra do artigo 10 do CPC. Referido alerta está no parágrafo único do artigo 487: a prescrição e a decadência não serão reconhecidas sem que as partes se manifestem sobre ela, exceto no caso do §1º do artigo 332 do CPC.

[7] É o que também pensa Welder Queiroz dos Santos: "Não há razão para movimentar toda a estrutura judiciária somente para efetivar o princípio do contraditório, sendo que a sua aparente violação não representa prejuízo à parte que não teve a oportunidade de se manifestar. Trata-se de hipótese em que o contraditório é inútil, tendo optado o legislador pela prevalência da razoável duração do processo e do acesso à ordem jurídica justa ao réu, sem ele sequer ter participado do processo". (Comentários ao código de processo civil, volume 1. Coord. Cassio Scarpinella Bueno. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 153) 

[8] Relatado pelo ministro Moura Ribeiro, da 3ª Turma, e julgado em 16.3.2020.

[9] "É inadmissível o recurso extraordinário, quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles".

[10] Relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão, da 4ª Turma, e julgado em 18.10.2018.

[11] AgInt no AREsp nº 1.261.938/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª T., j. 8.6.2020.

[12] AgInt no AREsp nº 1.960.327/AM, relator ministro Raul Araújo, 4ª T., j. 11.4.2022.

[13] É o que se extrai do artigo 371, do CPC: "O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação do seu convencimento".

[14] "Sempre que uma das partes requerer a juntada de documento aos autos, o juiz ouvirá, a seu respeito, a outra parte, que disporá do prazo de 15 dias para adotar qualquer das posturas indicadas no artigo 436".

[15] Relatado pelo ministro Moura Ribeiro, da 3ª Turma, e julgado em 9.11.2017.

[16] "É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório".

Autores

  • é doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD), bacharel em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT), advogado e professor de Processo Civil em cursos de pós-graduação lato sensu.

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