Opinião

Crescente da delação premiada e suas incongruências que teimam em não refluir

Autores

  • Eliakin Yokosawa

    é advogado em Teixeira Zanin Martins & Advogados pós-graduado (lato sensu) em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Paulista de Direito (EPD) em compliance pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-Law) e em Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC) e especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (POR).

  • Henrique Attuch

    é estudante de Direito estagiário em Zanin Martins Advogados e entrevistador no Brasil 247.

25 de julho de 2022, 21h34

Recentemente, com esteio normativo na Lei de Organização Criminosa (Lei nº 12.850/13), a 6ª Turma do STJ, no âmbito do Habeas Corpus nº 582.678, decidiu que é possível a celebração de acordo de colaboração premiada em quaisquer casos de condutas criminosas praticadas em concurso de agentes, sob o prisma de se conferir uma interpretação mais benéfica aos delatores.

Segundo a ministra relatora, diante da grande acepção pelo ordenamento jurídico pátrio de recompensas e benefícios garantidos a réus e investigados que delatam — as quais, em sua visão, considera "prerrogativas penais ou processuais" dos mesmos —, bem como em virtude de se haver certa omissão legislativa sobre a regulamentação das tratativas negociais que abrangem o instituto da barganha na própria Lei nº 12.850/2013 e no Código de Processo Penal, entendeu-se que "não há óbice a que as disposições de natureza majoritariamente processual previstas na referida Lei [das Organizações Criminosas] apliquem-se às demais situações de concurso de agentes (no que não for contrariada por disposições especiais, eventualmente existentes)".

Com esse entendimento, negou-se a concessão da ordem pretendida pela parte impetrante, que visava, dentre outras coisas, a declaração de ilegalidade de acordo de colaboração premiada que, inobstante ter sido entabulado sob a égide da Lei de Organizações Criminosas, não versava sobre quaisquer condutas tipificadas em um dos parágrafos do artigo 1º ou do artigo 2º da citada lei.

Em que pese o perímetro fático do caso em comento envolver uma série de particularidades que escapam desse delgado espaço de reflexão  tal como a presença de delito de lavagem, que per si autorizaria a celebração de acordo (artigo 1º, §5º, da Lei nº 9.613/98 [1]), ou mesmo a aplicação da teoria da aparência diante da origem mais remota das investigações, cuja hipótese ao fim e ao cabo não se realizou –, interessa-nos para o presente que a base teórica do negócio jurídico processual ordenado foi suturado sob os ditames da Lei nº 12.850/13, a qual, segundo a ratio decidendi do writ em análise, está a abarcar quaisquer condutas praticadas em concurso de agentes.

Embora não se ignore a realidade cada vez mais candente de se introduzir institutos negociais — sobretudo de cariz premial no direito penal  em nossa ordem jurídica, igualmente não se pode fechar os olhos para o fato de que este processo, bem ou mal, é produto de uma determinada política criminal, cujos fundamentos devem  ou deveriam  reger sua razão de ser no plano concreto. Nessa linha, leciona SOUZA que [2]: "A política criminal consiste no conjunto de procedimentos pelos quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal". Nessa toada, diversas são as passagens em nosso ordenamento jurídico que, para cuidar de determinado fenômeno criminal, alinham respostas premiais específicas como produto de política criminal  ainda que, como já assinalado, bem ou mal formulada.

A guisa de ilustração dessa constatação, é salutar observar, verbi gratia, a disposição premial específica insculpida para o delito de extorsão mediante sequestro (artigo 159, §4º, do CP) que, longe de se espraiar para todos os delitos patrimoniais em uma pretensa interpretação in bonam partem, revela em sua dicção uma opção político-criminal determinada no intento de facilitar "a libertação do sequestrado" [3].

Noutro exemplo distinto, apenas em reforço argumentativo de que não jaz isolada a afirmação retro, a Lei de Crimes Hediondos também é clara quanto a seus fins políticos criminais ao estabelecer previsão premial específica para aquele que, no contexto de associação criminosa para fins do cometimento de crimes hediondos, "denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento" [4]  previsão esta que também não se presta a alcançar, sob uma retórica interpretação in bonam partem, todos os delitos contra a paz pública, título no qual se encontra topograficamente o delito de associação criminosa.

É certo, nesse conduto de ideias, que a Lei nº 12.850/13 também é dotada de institutos e objetivos próprios  sendo que, no caso da delação premiada como meio de obtenção de provas, o escopo é o de desmantelar organizações criminosas. Isto fica deveras evidente na Justificação do Projeto de Lei n.º 150/06 ao Senado Federal  que posteriormente culminou, na Câmara dos Deputados, no Projeto de Lei nº 6.578/09 e, por fim, na promulgação da Lei nº 12.850/13. Nessa oportunidade, registrou a Senadora SERYS SLHESSARENKO que [5]: "Diante da difícil, mas necessária tarefa de definir, para efeitos penais, o conceito de 'crime organizado', resolvemos apresentar o presente projeto de lei, que pretende disciplinar a investigação criminal, os meios de obtenção de prova e o procedimento judicial aplicável ao referido crime, sem desrespeito às garantias do devido processo legal, tampouco às atribuições constitucionais dos órgãos envolvidos na persecução criminal".

Esta opção legislativa de prever disposições premiais de forma esparsa — sendo a delação premiada da Lei nº 12.850/13 sido criada no contexto do combate às organizações criminosas — nos parece que diz respeito sobretudo a questões ético-morais de conceder benéficos ao chamador delator, afinal, para além dos motivos utilitários que tal instituto pode carrear, é certo que tal escolha legislativa também importa em perdas ao Estado Democrático de Direito enquanto valores sociais a serem cultivados. Anota GARCIA de forma cirúrgica [6]: "Ora, delação sempre é ato imoral e aético, já que a própria vida em sociedade pressupõe o expurgo da traição das relações sociais e pessoais. A quebra de confiança que se opera com a delação gera, necessariamente, desagregação, e esta traz desordem, que não se coaduna com a organização visada pelo pacto social e com a ordem constitucional legitimamente instituída".

Visto, pois, o locus teleológico da disposição premial sitiada na Lei nº 12.850/13, somos necessariamente conduzidos a concluir que transplantar tal regra jurídica para hipóteses não abarcadas por ela  i.e, que não vertentes sobre o delito organização criminosa , apenas em razão de sua similitude  i.e, no âmbito de outras infrações cometidas em concurso de agentes , traduz-se, em verdade, em analogia cujo método de integração do Direito, em regra, é defeso na seara penal.

Comungando do mesmo entendimento, BITTENCOURT e BUSATO ao tratarem da questão, prelecionam que: "(…) o próprio conceito de organização criminosa porque mais restrito que as demais hipóteses de concurso de pessoas e muito mais enriquecido de elementares normativas restringe sua aplicação e, logicamente, não admite aplicação de analogia e tampouco interpretação extensiva ou analógica, por se tratar de norma repressiva e restritiva de liberdade. Sua natureza jurídica é mista, isto é, de direito material e de direito processual" [7].

Como é cediço, porém, admite-se somente analogia em favor do imputado, no que se convém denominar de "analogia in bonam partem", o que também não possui aderência no caso sob análise, como bem adverte BITTENCOURT e BUSATO no mesmo escólio doutrinário: "É possível, no entanto, a analogia in bonam partem quando existe uma hipótese de equivalência, não coberta por lei. Não é o caso. Considerou-se a organização criminosa algo especial em relação às demais situações de concursos de pessoas e, exatamente em função desta especialidade, criou-se condições especiais de colaboração premiada. Entender o contrário, com possibilidade de aplicação do instituto a quaisquer casos de concurso de pessoas dilataria completamente o instituto, tornando-o aplicável até mesmo ao concurso eventual de pessoas, com dois agentes reunidos para a prática de um crime. Sim, pois, se estamos cuidando de dilatar a aplicação do instituto alargando sua abrangência, simplesmente não há um limite legalmente imposto. Com base em que se estabeleceria o limite de aplicabilidade? Simplesmente não é possível o uso de analogia no caso" [8].

De fato, lançar mão do recurso da "analogia in bonam partem" na situação em debate, ignorando o fator da especialidade incidente, esbarra ainda em outro fator de ordem material, afinal, para se aferir a qualidade substancial de imputado  e não meramente formal  apto a excepcionar tal regra, é preciso responder: o delator é litisconsorte da defesa do delatado ou da própria acusação?

A Suprema Corte, no âmbito do leading case do habeas corpus nº 166.373, sob o pano de fundo da ordem das alegações finais nos processos que envolvem colaboradores premiados, esquadrinhou de forma minuciosa o status processual o delator. Vale citar o seguinte trecho do voto condutor ministro ALEXANDRE DE MORAES, onde Sua Excelência é vigoroso em gizar que o empenho processual do delator é para com o órgão acusador — situação diversa do simples concurso de agentes:

Qual o resultado da ação penal que lhe interessa?

Condenação ou absolvição do delatado?

Qual o resultado da ação penal que lhe garante futura diminuição de pena, outros benefícios ou até mesmo o perdão total acordado com o Ministério Público? A absolvição ou a condenação do delatado?

O interesse processual do delator está direta e intimamente ligado à obtenção da condenação do delatado pelo Ministério Público. Porém, pretende mais do que a obtenção da condenação.
O delator precisa da condenação baseada em informações eficazes que tenha fornecido na delação e que, concretamente, tenham possibilitado a obtenção de provas para sustentar a sentença condenatória; pois se a delação não for eficaz, o delator não fará jus aos benefícios prometidos.

Assim se dá o funcionamento da justiça premial.

A delação inútil, as informações vazias ou insuficientes, a participação irrelevante do delator geram a inefetividade da delação e não permitem que se obtenha as vantagens prometidas e acordadas com o Ministério Público nesse sistema de justiça premial.

Ora, todo o empenho processual do delator será a favor do Ministério Público, buscando a obtenção de uma sentença condenatória do delatado, condição absolutamente necessária para a plena eficácia do acordo de delação realizado.

Condição necessária, porém não suficiente; pois, a sentença condenatória precisará reconhecer a efetividade das informações do delator para a conclusão do processo.

Dessa forma, a relação DELATOR X DELATADO é de antagonismo, é de contradição, é de contraditório.

Trata-se de situação diversa daquela tratada pelo Código de Processo Penal em relação aos corréus.

O interesse do corréu é obter sua absolvição, independentemente das argumentações, inclusive imputando os fatos ao outro réu. Seu antagonismo ao Ministério Público é evidente.

Os interesses são conflitantes entre acusação – que pretende sua condenação  e defesa.

A situação do delator é diversa.

Do trecho acima reproduzido é possível extrair que, em sentido material, o pêndulo do delator tende a se qualificar como litisconsorte da acusação, o que torna impraticável, de plano, qualquer ensaio de invocação do recurso da "analogia in bonam partem", ainda mais em detrimento do imputado, propriamente dito.

Portanto, a proposição de que "em quaisquer condutas praticadas em concurso de agentes é possível celebrar acordo de colaboração premiada", mostra-se problemática sob múltiplos ângulos. A uma porque esfumaça, bem ou mal formulada, a opção político criminal do legislador (fato político criminal). A duas na medida em que se vale de um indevido critério analógico, defeso no direito penal, para integrar situação não prevista em lei (fator especialidade). E por fim, ao terceiro, promove uma indevida equivalência material entre delator e corréu, que não encontra guarida na jurisprudência (fator material).

Destarte, embora se reconheça que a delação premiada não se trata de instituto ilegítimo, isto não lhe torna indene de críticas, especialmente quanto ao abuso na generalização do instituto, que por vezes torna tais acordos em verdadeiros instrumentos excludentes do dever investigatório e probatório do Estado, perfazendo uma nova face do que a doutrina consagrou como direito penal do inimigo para obter respostas simbólicas ao corpo social. Partilhando da mesma visão crítica, verticaliza BITTAR [9]:

"Com isso, ocorre um retorno aos postulados da inquisição, onde o agora Estado moderno deve ser eficiente, no sentido de justificar um tratamento enérgico, com meios estranhos aos postulados garantistas, construído em reconhecer a admissão de uma luta para extrair de pessoas o maior número de informações visando descobrir e comprovar a prática de delitos  devolvendo à confissão o título de rainha das provas  vem, a bem da verdade, respaldar o crescimento da concessão inconsequente de toda sorte de prêmios aos investigados e processados, como resposta simbólica à sociedade, culminando com o crescimento de um arsenal 'moderno' de práticas inquisitoriais já consideradas banidas, agora coroadas pela proliferação (ou retorno) da delação premiada, na alça da consolidação de um 'novo' Direito Penal do Inimigo".

A perniciosa sedução provocada pelo instituto da delação premiada —  considerada especialmente pelo prisma de motivos utilitários —, distante das regras e fundamentos do ordenamento jurídicos, não pode ceder a pressões estranhas àquelas próprias da coerência mínima suportada pelo ordenamento jurídico, sob pena do Estado cumprir um papel ilegítimo, refém de puro pragmatismo [10]. Nesse ponto, nunca se fez tão presente a reflexão do ministro GILMAR MENDES (HC 157.627 AgR/PR) — que nada obstante tratar no trecho abaixo de outras circunstâncias, bem ilustra essa maré crescente de movimentos expansionistas, a qual, em que pese o período institucional traumático recém vivenciado, fruto de uma demasiada excitação com o instituto em comento e cujas lições ainda são processadas, teima em não refluir. In verbis:

O Bismarck que dizia: "Se as pessoas soubessem como se fazem as salsichas e as leis, nem comeria salsicha e nem cumpriria as leis". Se a gente soubesse como eram feitas as delações, como se está revelando, com a indicação de pessoas, com a possibilidade de manipulação…


[1] "Lei nº 9.613/98. Artigo 1o  Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. (…) §5º  A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime".

[2] SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal: volume 1: parte geral. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, p. 51, 2019.

[3] "CP. Artigo 159 – Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate: Pena – reclusão, de oito a quinze anos. (…) §4º – Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços".

[4] Lei nº 8.072/90. Artigo 8º – Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no artigo 288 do Código Penal, quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo. Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços.

[6] GARCIA, Roberto Soares. Delação premiada: ética e moral, às favas. In: Boletim IBCCrim, fasc. 159. São Paulo: fev. 2006, p. 2.

[7] BITTENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei 12.850/2013. São Paulo: Saraiva, 2014.

[8] Idem.

[9] BITTAR, Walter Barbosa. Delação premiada: direito, doutrina e jurisprudência. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, p. 78, 2020.

[10] Idem, pp. 161/162.

Autores

  • é advogado em Teixeira Zanin Martins & Advogados, pós-graduado (lato sensu) em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Paulista de Direito (EPD), em compliance pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-Law) e em Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC) e especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (POR).

  • é assistente jurídico no Wilton Gomes Advogados, graduado em direito pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo.

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