Opinião

Aquecimento global e o financiamento das cidades no Brasil

Autor

  • Bruno Soeiro Vieira

    é doutor em Direito (PUC-São Paulo) doutor em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (Naea/UFPA) pesquisador CNPQ (Grupo de Pesquisa Tributação e Desenvolvimento nas cidades da Amazônia) e professor adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA).

25 de julho de 2022, 7h09

Ao caminhar pelas ruas da cidade onde moro, percebendo que a temperatura está cada vez mais agressiva e desconfortável, que determinados eventos climáticos estão cada vez mais extremos, comecei a refletir intimamente e agora busco sintetizar nestas linhas lidas por milhares de pessoas que também estão preocupados com as consequências do aquecimento do planeta.

Como consequência de um processo de acelerada urbanização no século 20, é nas cidades que habitam 85% das brasileiras e dos brasileiros, de acordo com a estimativa realizada pelo IBGE e, portanto, é no ambiente urbano e metropolitano que estão as maiores e mais sensíveis demandas da sociedade, desde o simples atendimento à saúde, passando pela garantia à moradia digna, regularização fundiária, até chegar às obras de urbanização — conjunto de ações e serviços que tem potencial para garantir a dignidade a todos os habitantes das cidades.

Apesar do consolidado conjunto de normas jurídicas de cunho urbanístico-ambiental vigentes no Brasil (dentre as quais posso mencionar o capítulo da política urbana na Constituição, os Estatutos da Cidade e da Metrópole, bem como, as milhares de leis de planos diretores municipais), existe um abismo profundo entre o que dizem e regulam tais normas e a efetiva concretização de ações e obras de política urbana que podem viabilizar a construção de cidades menos desiguais e com mais justiça socioespacial.

Tal distância entre o que determinam as normas urbanísticas e a realidade das cidades brasileiras, por sua vez, aprofunda um segundo fosso já existente, neste caso, o abismo social entre aqueles que vivem com sua dignidade humana garantida (isto porque residem em espaços com infraestrutura urbana adequada e com grande acessibilidade aos serviços urbanos) e os demais habitantes das urbes (a grande maioria) que são obrigados a residirem em espaços nos quais a qualidade de vida é apenas uma ficção/quimera/utopia/sonho, devido ao pouquíssimo ou nenhum investimento público que garanta a tais seres humanos acessibilidade urbana e, o mais fundamental, a dignidade, entendida como qualidade em suas vidas. Logo, são fotografias de duas cidades distintas, tal como diz Ermínia Maricato, a formal e a informal, resultando em uma cidade fraturada, assimétrica e segregada.

Sobre as cidades fraturadas, em 2022, o IBGE concluiu uma importante pesquisa urbanística sobre o entorno dos domicílios, a qual revelará a real situação nas cidades brasileiras, explicitando de modo mais abrangente a verdade acerca da infraestrutura urbana no Brasil, sobretudo, em relação as áreas mais carentes em termos de equipamentos e serviços urbanos, viabilizando que o poder público municipal disponha de informações confiáveis e atualizadas para planejar políticas públicas que possam melhorar a qualidade de vida das populações mais vulneráveis que habitam as periferias urbanas.

Sobre essa cena urbana, muito pode ser alegado e analisado para tentar explicar e propor meios de resolução dos problemas existentes no ambiente de iniquidade urbana descrito, almejando a diminuição do descompasso entre o dever ser e o ser. Todavia, irei me concentrar apenas em analisar brevemente a questão do financiamento das cidades no Brasil em uma quadra da história na qual o aquecimento global já produz um sem-número de eventos extremos, gerando diversas catástrofes tais como o desabamento de encostas, enchentes nas cidades, desalojamento de famílias, alteração no volume de chuvas, alteração na sensação térmica e, o pior de tudo, milhares de mortes.

Assim, mais do que nunca ganha importância a denominada atividade financeira do Estado, porque o poder público para enfrentar as consequências do aquecimento global nas cidades precisará de muitos recursos para investir em obras e serviços de recuperação e prevenção, visando torná-las resilientes, ou seja, capazes de suportar os eventos de grande intensidade que o meio ambiente tem gerado devido à contínua e intensa agressão promovida pelas atividades econômicas e pelos seres humanos ao longo do último século.

Historicamente, as obras e serviços de infraestrutura urbana são custeadas com recursos públicos e apenas, excepcionalmente, são patrocinados por meio de recursos financeiros da iniciativa privada (apesar de existirem ferramentas urbanísticas que podem viabilizar a inversão do citado paradigma), sendo as operações urbanas consorciadas (OUCs) o instrumento jurídico-urbanístico mais utilizado para alterar a concepção tradicional de financiamento das cidades, cujos exemplos brasileiros mais emblemáticos são: a Operação Urbana Faria Lima; a Operação Urbana Água Espraiada e a Operação Urbana Porto Maravilha. Todavia, como disse acima, são uma “agulha no palheiro” quando o tema é a obtenção dos recursos financeiros para suportar o financiamento da infraestrutura urbana, afinal, o padrão existente em nosso país ainda é o financiamento estatal.

Sendo assim, as OUCs consistem em intervenções pontuais executadas e coordenadas pelas municipalidades agregando a iniciativa privada, os moradores e os usuários da região, visando gerar transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental. Destarte, as OUCs viabilizam que o poder público municipal, via autorização e dentro de um perímetro definido em lei própria, conceda índices e parâmetros urbanísticos adicionais aos previstos na legislação urbanística ordinária de uso e ocupação do solo em troca de contrapartida a ser suportada pelo construtor interessado.

Dessa maneira, se é o poder público (em especial, as municipalidades) que deverá arcar com os custos das obras e dos serviços (paradigma tradicional de financiamento das cidades), maior atenção deve ser dada às finanças municipais, sobretudo, em relação aos tributos próprios, pois estão no âmbito da governabilidade estatal dos municípios, ou seja, sua utilização (forma, intensidade e amplitude) pelos gestores municipais deve respeitar a dinâmica econômica, urbana e orçamentária de cada município.

Quanto às receitas que são transferidas por outros entes aos municípios, sejam de modo compulsório ou voluntário, entendo que são insustentáveis, são inconfiáveis, pois estão sujeitas, em grande medida, a decisões de política tributária tomadas por outros entes que concedem renúncias fiscais que, por sua vez, indiretamente, implicam na diminuição de repasses financeiros aos municípios, por exemplo, resultando na diminuição do valor da cota do FPM ou ICMS. Portanto, quando sou ouvido por gestores municipais, minha orientação é priorizar o incremento da receita própria, notadamente, do ISS, do IPTU e do ITBI, pois as receitas transferidas estão fora da margem de suas governabilidades.

No entanto, o Estatuto da Cidade (artigo 2º) registra que a política urbana, visando ordenar o desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, obedecerá a algumas diretrizes, dentre as quais está a recuperação dos investimentos públicos dos quais tenham resultado na valorização de imóveis urbanos, aquilo que os urbanistas denominam de recuperação da "mais valia" urbana que funciona como outro meio de captação de recursos para o financiamento das cidades.

Sendo assim, se o poder público municipal aloca recursos próprios em obras de infraestrutura e desta ação ocorre a valorização imobiliária, passa a ter o direito de recuperar o valor compatível com o enriquecimento privado obtido pelos proprietários e posseiros dos imóveis que se valorizam após a conclusão das obras e serviços urbanos. Logo, o enriquecimento privado citado é considerado uma "mais valia" urbana, sendo possível a sua recuperação pelas municipalidades, afinal de contas, está longe do ideal de justiça o fato de apenas determinados cidadãos enriqueçam a custas de recursos financeiros que são de toda uma coletividade.

Tento explicar com outras palavras, a recuperação consiste em outro meio de ingresso de receita pública, (tributária e não tributária), porém utilíssimo ao custeio de outras obras e serviços urbanos, prioritariamente realizadas nas zonas mais carentes de infraestrutura, gerando, por consequência, diminuição da desigualdade socioespacial.

Dessa maneira, além de constituir-se em nova e estável fonte de financiamento das cidades, a captura das "mais valias" urbanas agrega outros benefícios, dentre os quais posso citar a diminuição da especulação do solo urbano — o calcanhar de Aquiles da política urbana — e, ainda, gera maior transparência e justiça socioespacial.

Apenas a título de anúncio, passo a falar brevemente sobre dois instrumentos jurídico-urbanísticos que servem à recuperação das "mais valias" urbanas. O primeiro seria a outorga onerosa do direito de construir (OODC) que consiste na cobrança pelas municipalidades de uma contrapartida (prioritariamente financeira) dos construtores para que sejam autorizados a construir acima de determinado limite de altura imposta por lei.

Infelizmente, a aplicação do instrumento mencionado e das OUCs é muito tímida, apesar dos enormes benefícios que trazem à urbanização e às finanças municipais (a título de exemplo, o caso do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, os índices construtivos vendidos geraram uma receita de R$ 3,5 bilhões ao município). Por conseguinte, tal diagnóstico negativo sobre a baixa efetividade da utilização da OODC e das OUCs deve-se, em grande medida, à questão cultural, que precisa ser mudada pelo bem da sustentabilidade e justiça urbana, afinal, são instrumentos que são fartamente aplicados (isolada ou conjuntamente) há muitas décadas em diversas cidades do mundo.

Outro instrumento urbano-ambiental — classificado no estatuto da cidade como um instituto tributário e financeiro — é a contribuição de melhoria, considerada um tributo pelo Supremo Tribunal Federal, pela legislação e pela doutrina jurídica. Todavia, neste caso, a utilização da contribuição de melhoria ganha contorno extrafiscal, isto porque é manejada com fim, prioritariamente, urbanístico, neste caso, visando recuperar a "mais valia" urbana.

Além disso, é necessário abordar a temática do planejamento municipal, não apenas sob o ponto de vista orçamentário-financeiro, mas também sob o prisma do planejamento do desenvolvimento urbano, afinal, o legislador federal andou muito bem quando fez prever no §1º do Artigo 40 do Estatuto da Cidade que a lei do plano diretor (instrumento básico da política urbana municipal) é parte integrante do processo de planejamento.

Desse modo, segundo o dispositivo mencionado, deverá o plano plurianual (PPA), as diretrizes orçamentárias (LDO) e o orçamento anual (LOA) incorporar as diretrizes e as prioridades expressamente enumeradas no plano diretor, obrigando que todas as leis relativas ao planejamento municipal estejam conectadas a ponto de formarem uma cadeia de elos que interagem e se completam na sua elaboração, aplicação e gestão, ou seja, o legislador almejou a construção de um planejamento municipal integral, onde as finanças públicas devem ser compreendidas como instrumentos de execução de uma adequada e sustentável política urbana, evitando-se, portanto, que exista uma desconexão entre a gestão orçamentária-financeira e urbanística nas cidades brasileiras.

Por fim, entendo que os responsáveis pelas finanças das cidades devem conversar mais com os urbanistas, pois qualquer mudança na legislação urbanística municipal, mudando usos, parâmetros e índices construtivos gera uma mudança significativa no valor da terra (criando "mais valia") e parte desse valor deve retornar para que novas obras e serviços urbanos sejam realizados e, assim, garantir o bem coletivo, a segurança e do bem-estar de todos os cidadãos, bem como, o equilíbrio ambiental.

Autores

  • é doutor em Direito (PUC-São Paulo), doutor em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (Naea/UFPA), pesquisador CNPQ (Grupo de Pesquisa Tributação e Desenvolvimento nas cidades da Amazônia) e professor adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA).

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