Diário de Classe

A cisão do Positivismo Jurídico: inclusivistas X exclusivistas

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23 de julho de 2022, 8h05

Este texto pretende abordar o Positivismo Jurídico e suas diferentes vertentes na atualidade, e para isso, os trabalhos de Herbert Hart, um dos mais importantes juristas da tradição anglo-saxônica, são fundamentais. Hart como qualquer positivista, pregava a "Tese da Separação" entre Direito e moral, de forma que a Moral seria a criadora do Direito. Mas, uma vez criado o Direito, em um sistema propriamente jurídico, as regras seriam protegidas de anseios morais. Hart sustentava uma visão sociológica de análise do Direito. Por meio de seu descritivismo, ele tentava captar melhor o funcionamento dos sistemas jurídicos e o significado que o Direito assumia dentro da sociedade. Streck (2017) nos ensina que Hart pregava a inexistência de fatos morais, de forma que o Direito não poderia depender da moralidade para a sua identificação, critério de validade ou determinação de seu conteúdo. Deste modo, as fontes sociais deveriam se proteger, em tese, da dimensão moral. Consequentemente, para além dos limites do Direito, não haveria critérios públicos para verificar a correção de uma decisão judicial ou para delimitá-la.

Em 1961, ele publica o livro "O conceito de Direito". O propósito por trás de sua obra é o desenvolvimento de uma teoria descritiva do Direito, a partir de uma atenção dedicada à linguagem jurídica. Para Hart, nem o direito nem outra forma de estrutura social podem ser compreendidos sem que se tenha em conta certas distinções cruciais entre dois tipos diferentes de enunciados, chamados pelo autor de "internos" e "externos".

Em sua principal obra, Hart (2009) reduz a grande questão de "o que é o Direito?" em três perguntas essenciais, às quais se esforça em responder: 1) O que diferencia o Direito de mera coerção? 2) Quais são as relações, semelhanças e diferenças entre obrigações morais e jurídicas? 3) O que são regras sociais e em que medida o Direito é por elas constituído? Por meio de seu rigor analítico e métodos sociológicos de análise, Hart entende a moral e o Direito como fenômenos distintos, porém relacionados.

A ideia que até então acompanhava a tradição Positivista, de que o Direito depende apenas de um comando do soberano, preocupava muito Hart, que a compara com o caso de um assaltante que diz ao funcionário de um banco: "entregue-me o dinheiro ou atiro". Compreendendo que nas sociedades contemporâneas, o Direito era algo muito diferente de meras ameaças, Hart diferenciava o verbo "to order" ("ordenar") de "give an order" ("dar uma ordem”), sustentando que o segundo caso sugere uma espécie de Direito, uma espécie de autoridade ou competência para emitir ordens, o que definitivamente não está presente em meras ameaças. Por isso, para ele, o que diferencia o Direito de mera coação é a existência de regras primárias e secundárias. As regras primárias estabelecem deveres e obrigações, enquanto as regras secundárias indicam como reconhecer as regras primárias existentes (regras secundárias de reconhecimento), como alterá-las (regras de secundárias de modificação) e como resolver as pendências que surgem diante da questão sobre se uma determinada regra foi ou não violada (Regras secundárias de julgamento).

Apesar de avanços, a tese Positivista continuava esbarrando em casos complexos em que a lei não possuía respostas concretas. Assim, nos casos em que a resposta não pudesse ser explicitamente encontrada na lei (hard cases), o julgador teria pouco além de sua discricionariedade para o conduzir sua decisão.

Em casos em que existisse uma zona de penumbra, Hart sustentava que a decisão deveria ser dos juízes para decidirem "[…]do modo que nos seja mais satisfatório, uma escolha entre os interesses conflitantes" (HART, 2009, p. 126), ou seja, a escolha deles teria altos traços de discricionariedade. Em frente às dificuldades de respostas sobre como lidar com problemas relativos a respostas que não podem ser encontradas na legislação (zona de penumbra), o Positivismo Jurídico encontrou o seu maior desafio teórico.

As construções doutrinárias de Ronald Dworkin (1986) foram um forte ataque ao Positivismo Jurídico, e geraram uma cisão dentro desse movimento, que fez com que os seus adeptos tivessem que escolher um dos dois caminhos, o do Positivismo Inclusivo ou o do Positivismo Exclusivo. Essa cisão entre os Positivistas envolveu uma diferença inconciliável na interpretação da tese central do Positivismo: A de que por natureza o Direito, não estabelece nenhum teste moral necessário de validade jurídica na sua regra de reconhecimento.

Dworkin (2014) afirmava que o positivismo declara a independência absoluta entre os sistemas do Direito e da Moral, de forma que para os Positivistas, o Direito dependeria somente de questões factuais históricas: dependeria, em última análise, daquilo que a comunidade em questão aceita como direito em matéria de costume e de prática. Se uma lei injusta atende aos critérios aceitos para determinar o que é Direito — se foi promulgada por um órgão legislativo e todos os juízes concordam em que esse órgão legislativo tem o poder supremo de fazer lei — a lei injusta é lei e ponto-final. O interpretativismo, tese proposta por Dworkin, por outro lado, nega que o direito e a moral sejam sistemas totalmente independentes. Portanto, afirma que o Direito inclui não somente as regras específicas postas em vigor de acordo com as práticas aceitas pela comunidade, mas também os princípios que proporcionam a melhor justificativa moral para essas regras promulgadas.

De forma muito simplificada (e deixando de lado muitas das construções do autor relativas à moral), pode-se dizer que o grande trunfo de Dworkin (1986) consiste em trazer os princípios para dentro do Direito, que, segundo o autor, deve seguir padrões de "Coerência e Integridade". Coerência para com o que foi legislado e decidido, e Integridade para com o resto do Direito, de forma que uma única frase solta não poderia contrariar todo um ethos moral que permeia um sistema jurídico. Os Positivistas inclusivos da moral tendem a concordar com muitas ideias de Dworkin (às quais em razão de sua complexidade e extensão terão de ficar de fora deste texto).

Aqueles Positivistas que incluem a moral como uma ferramenta de reconhecimento do que é Direito foram chamados de Positivistas inclusivos (da moral), e aqueles que acreditam que a moral não se encontra entre as fontes de reconhecimento do que é ou não Direito foram chamados de Positivistas exclusivos (da moral) — a partir da discussão com Dworkin, o próprio Hart (2009) reviu muitos de seus pensamentos, e se aproximou mais de um Positivismo Inclusivo, tendo, em texto postumamente publicado, considerado que sua visão sobre o direito corresponde "àquilo que foi designado como 'positivismo flexível'".

Brian Bix (2020) afirma que, na medida em que para positivistas exclusivos como Joseph Raz, "a existência e o conteúdo das leis é completamente determinado por fontes sociais", para o positivismo inclusivo, um determinado sistema jurídico particular pode, por uma regra convencional (ou seja, criada), fazer de critérios morais critérios suficientes ou necessários para a validade de um ordenamento dentro de um sistema específico.

Bix (2020, p. 75) defende que o argumento mais sólido em favor do positivismo inclusivo parece ser a forma como a tese se ajusta à maneira como os agentes da justiça e os próprios textos legais falam sobre o direito. "A moralidade parece ser um fundamento suficiente para o status jurídico de uma norma em muitos casos (e decisões nas quais princípios jurídicos têm papel importante)".

Quando o controle constitucional da legislação exige ou autoriza que determinada legislação que contraria padrões morais codificados na Constituição seja invalidada (por exemplo, com relação a princípios constitucionais como o devido processo legal, igualdade, ou a dignidade da pessoa humana), temos um demonstrativo do que os Positivistas Inclusivos sustentam. A visão inclusivista, sem dúvidas, permite que os teóricos aceitem muitas das críticas de Dworkin ao positivismo jurídico sem que sejam abandonados elementos que esses teóricos veem como centrais e necessários ao Positivismo, fundamentos do direito centrados em fatos e convenções sociais sintetizados na "tese da separação" que é tão cara ao Positivismo.

O Positivismo inclusivo aceita que termos morais podem ser parte de critérios suficientes ou necessários de validade em um sistema jurídico, mas insiste que o uso desses critérios morais deva ser contingente, e não da natureza própria do direito.

Pode-se dizer que o mais relevante argumento em favor do positivismo exclusivo foi articulado pelo teórico israelense Joseph Raz, e baseia-se em uma conexão entre direito, razão e autoridade. A abordagem de Raz sustenta que a "tese social" é o fundamento do positivismo: que "aquilo que é direito e aquilo que não é direito é uma questão de fato social" (RAZ, 2009, p. 37). Aqueles que estão sujeitos a uma autoridade só irão realmente se beneficiar de suas decisões, se esta autoridade for capaz de estabelecer a existência e conteúdo da norma de modos que não dependam da reabertura das mesmas questões que a autoridade específica e as instituições democráticas estão ali para resolver. No contexto do direito, isso significa que, as regras jurídicas são decisões autoritativas em questões diante das quais os cidadãos estariam expostos a várias razões de cunho moral para agir (até de prudência) —, exclusivistas sustentam que é preciso que possamos identificar e compreender seu conteúdo sem recursos a avaliações morais. Seguindo essa análise, o Positivismo inclusivo estaria errado, na medida em que seria completamente inconsistente com um elemento central do direito: autoridade prática legitima reivindicada pelos sistemas jurídicos. Nas palavras de Raz (1990, p. 193):

"As diretivas da autoridade tornam-se nossas razões. Na medida em que o aceite da autoridade é algo baseado na crença de que suas diretivas são bem-fundamentadas, racionais, essas diretivas são compreendidas como algo que [de fato) enseja os benefícios que dizem trazer se nós confiarmos nelas em vez de confiarmos em nosso próprio juízo independente acerca dos méritos de cada caso aos quais elas se aplicam."

O debate entre os inclusivistas e os exclusivistas continua a gerar muitas controvérsias entre os diferentes pensadores, e talvez algumas de suas perguntas sejam mais bem respondidas por outras linhas de abordagem teórica, como a Hermenêutica ou o Interpretativismo. Mas debates morais extremamente importantes e respostas relevantes sobre os objetivos do Direito em sociedades democráticas são sem dúvidas aprimoradas em meio às discussões destes teóricos.

 


REFERÊNCIAS:

BIX, Brian. Teoria do Direito. Tradução de Gilberto Morbach. Tirant Lo Blanch, São Paulo, 2020.

DWORKIN, Ronald. Law's empire. Cambridge: The Kelknap Press, 1986.

DWORKIN, Ronald. O ouriço e a raposa: Justiça e valor. Tradução de Marcelo Cipolla. São Paulo: WMF, 2014.

HART, Herbert. O conceito de Direito. 1ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

RAZ. Joseph. Practical Reason and Norms. 2ª ed. Princeton University Press: Princeton, 1990.

RAZ, Joseph. The Authority of Law. 2ª ed. Oxford University Press: Oxford, 2009

STRECK, Lenio. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do Direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017.

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