Ambiente Jurídico

Direito de acessibilidade a imóveis culturais tombados

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

23 de julho de 2022, 8h06

O tombamento de bens culturais se justifica em razão de valores especiais (antiguidade, raridade, exemplaridade, beleza singular, vinculação a fatos ou a personagens históricos etc.) que recaem sobre a coisa a ser protegida, o que a torna de interesse público e justifica a sua especial tutela.

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Com o advento da proteção pelo instrumento do tombamento, regido pelo Decreto-Lei nº 25/37, o bem fica submetido a um peculiar regime jurídico com o objetivo primordial de que sejam mantidas as suas características, impondo ao proprietário limites que impedem a sua modificabilidade, mutilação ou destruição.

Mas, para além de tais limitações, o bem cultural tombado, por ser fonte de cultura e coisa de interesse coletivo, deve, a princípio, ser fruído por todos, seja por meio do acesso físico direto (mediante visita a bens públicos ou privados de uso coletivo), seja por meio do acesso indireto (informações escritas, sonoras, imagéticas etc).

Com efeito, o princípio da fruição coletiva do patrimônio cultural decorre diretamente do artigo 215, caput, da Constituição, que dispõe: "O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais". Como os bens culturais são, a toda evidência, "fontes de cultura", o acesso a eles deve, sempre que possível, ser assegurado à coletividade em geral, seja por meio do direito de visita ou do direito à informação.

No que tange à acessibilidade por parte das pessoas portadoras de necessidades especiais, a Constituição Federal vigente estatuiu em seu artigo 244 que "A lei disporá sobre a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência, conforme o disposto no artigo 227, § 2º".

Da conjugação de tais dispositivos resta claro que o legislador constituinte quis assegurar a todos, inclusive aos portadores de deficiência, em homenagem ao princípio da isonomia, a possibilidade de acesso aos bens culturais existentes em nosso país, tais como museus, bibliotecas, teatros, galerias de arte, núcleos históricos, sítios arqueológicos etc.

Tornar os bens culturais acessíveis é eliminar barreiras físicas, naturais ou de comunicação, seja no equipamento e no mobiliário urbano, seja nas edificações, espaços culturais, no transporte público [1] ou nos meios de comunicação.

A acessibilidade das pessoas portadoras de necessidades especiais aos bens públicos integrantes do patrimônio cultural brasileiro ou aos privados, de uso coletivo, integra o direito à memória, caracterizado como materialmente fundamental porque corresponde à necessidade individual e coletiva de afirmação e de conhecimento atuais do passado, para formar a identidade do indivíduo ou dos grupos sociais [2].

Ademais, consoante leciona José Eduardo Ramos Rodrigues, dentro da regra da verdadeira igualdade, que consiste em tratar desigualmente os desiguais na razão de suas desigualdades, o portador de deficiência precisa de assistência especial do Estado para poder participar efetivamente da vida cultural da sociedade em que vive [3].

Em obediência aos comandos constitucionais acima mencionados, a Lei nº 7.853, de 24/10/1989, dispôs sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, estabelecendo que: cabe ao Poder Público e seus órgãos assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.

A seu turno, a Lei nº 10.098, de 19/12/2000, estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios (de uso privado multifamiliar, uso coletivo e uso misto), nos meios de transporte e de comunicação.

Ademais, a Lei 13.146/2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), estabelece no artigo 42 que a pessoa com deficiência tem direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, sendo-lhe garantido o acesso: a bens culturais em formato acessível; a programas de televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais e desportivas em formato acessível; e a monumentos e locais de importância cultural e a espaços que ofereçam serviços ou eventos culturais e esportivos. No artigo 42, § 2º a lei determina ainda que o poder público deve adotar soluções destinadas à eliminação, à redução ou à superação de barreiras para a promoção do acesso a todo patrimônio cultural, observadas as normas de acessibilidade, ambientais e de proteção do patrimônio histórico e artístico nacional.

Em síntese, nos termos da normatização vigente, a acessibilidade deve ser garantida à pessoa com deficiência (permanente ou temporária) física, visual, auditiva, mental e múltipla; e àqueles com mobilidade reduzida, tais como idosos, obesos e gestantes.

Basicamente, esta acessibilidade pode ser garantida com [4]: acessos através de rampas ou equipamentos eletromecânicos (plataformas elevatórias de percurso vertical ou inclinado e elevadores); estacionamento ou garagens reservados e de acordo com as normas; circulação interna acessível; escadas com corrimão, com condições mínimas de segurança e conforto, associadas a rampas ou equipamentos de transporte vertical; sanitários adaptados; mobiliário adequado; piso tátil de alerta e direcional; utilização de materiais de acabamento adequados.

Além da acessibilidade física às edificações, é necessário que espaços culturais de uso coletivo como museus, pinacotecas, arquivos e bibliotecas forneçam a seus usuários informações sobre a visitação e acervo de forma a permitir que a pessoa com deficiência possa usufruir daquele espaço com autonomia, o que pode ser conseguido com: ambientes bem iluminados, organizados, desobstruídos, com contraste de cor ou tonalidade que facilitam o acesso de pessoas com deficiência visual; informação tátil; informação sonora; sinalização visual e distribuição de material informativo [5].

Entretanto, nem sempre será fácil, na prática, assegurar o integral direito de acesso físico aos bens culturais protegidos, em grande parte concebidos em uma época em que a acessibilidade e a inclusão não eram valores reconhecidos pela sociedade (casarões coloniais de vários pavimentos, antigas igrejas situadas em cumes de montanhas, prédios públicos construídos em vias estreitas e com grande aclive, grandes escadarias para "valorizar" o imóvel etc.).

Com efeito, o desafio é complexo pois as intervenções realizadas em bens culturais tombados com vistas à sua acessibilidade não podem chegar a ponto de causar mutilação, destruição ou deterioração dos atributos que a proteção do bem cultural visa garantir, sob pena de caracterização de ilícito em âmbito cível, administrativo e mesmo criminal [6].

Assim, deve-se buscar o cumprimento simultâneo das leis de acessibilidade e das normas que regulamentam o regime jurídico dos bens culturais tombados, sobretudo o Decreto-Lei 25/37, o que demanda especial esforço, capacidade técnica e bom senso a fim de se alcançar, sempre que possível, a indispensável compatibilidade.

Aliás, a própria Lei nº 10.098/2000 (Lei da Acessibilidade) estabeleceu textualmente que: Art. 25. As disposições desta Lei aplicam-se aos edifícios ou imóveis declarados bens de interesse cultural ou de valor histórico-artístico, desde que as modificações necessárias observem as normas específicas reguladoras destes bens.

O Decreto nº 5.296/2004, que regulamenta a Lei nº 10.048/2000, dispõe em seu artigo 30 que: As soluções destinadas à eliminação, redução ou superação de barreiras na promoção da acessibilidade a todos aos bens culturais imóveis devem estar de acordo com o que estabelece a Instrução Normativa nº 1 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan, de 25 de novembro de 2003 [7].

Esta Instrução Normativa do Iphan, que por força do contido na Lei 10.048/2000 (norma geral sobre acessibilidade) e no artigo 30 do Decreto 5.296/2004, aplica-se também aos bens acautelados pelos estados, Distrito Federal e municípios (CF/88, artigo 24, § 1º), estabelece diretrizes, critérios e recomendações para a promoção das devidas condições de acessibilidade aos bens culturais imóveis, a fim de equiparar as oportunidades de fruição destes bens pelo conjunto da sociedade, em especial pelas pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.

São diretrizes de intervenção estabelecidas pela mencionada instrução normativa:

a) As soluções adotadas para a eliminação, redução ou superação de barreiras na promoção da acessibilidade aos bens culturais imóveis devem compatibilizar-se com a sua preservação e, em cada caso específico, assegurar condições de acesso, de trânsito, de orientação e de comunicação, facilitando a utilização desses bens e a compreensão de seus acervos para todo o público.

b) As intervenções poderão ser promovidas através de modificações espaciais e estruturais; pela incorporação de dispositivos, sistemas e redes de informática; bem como pela utilização de ajudas técnicas e sinalizações específicas, de forma a assegurar a acessibilidade plena sempre que possível, devendo ser legíveis como adições do tempo presente, em harmonia com o conjunto.

c) Cada intervenção deve ser considerada como um caso específico, avaliando-se as possibilidades de adoção de soluções em acessibilidade frente às limitações inerentes à preservação do bem cultural imóvel em questão.

d) O limite para a adoção de soluções em acessibilidade decorrerá da avaliação sobre a possibilidade de comprometimento do valor testemunhal e da integridade estrutural resultantes.

Em âmbito doutrinário, de acordo com Melissa Gerente e Vera Ely [8], é recomendado, antes de qualquer adaptação para a acessibilidade: a) identificar os valores patrimoniais, definindo seus elementos importantes (materiais, formas, localização, configuração espacial, usos e significados), de modo que a identidade cultural seja resguardada; b) definir os elementos a serem mantidos ou conservados; c) realizar planos de intervenção com adaptações que sejam reversíveis a curto prazo, devido ao surgimento crescente de novas técnicas de restauração e adaptação, principalmente com a descoberta de novos materiais, que venham a contribuir não só com a preservação do patrimônio mas também com a qualidade da performance das pessoas com restrições nestes locais; d) escolher soluções que promovam o máximo de acessibilidade ao mesmo tempo que ofereçam um impacto mínimo no patrimônio histórico; e) na escolha de adaptações que poderão danificar ou destruir os valores patrimoniais, estas não deverão ser realizadas, devendo ser resguardada a integridade cultural do bem, porém, sendo oferecidas outras formas de conhecimento e/ou visitação; f) discutir com as comunidades a importância da realização de ações para a acessibilidade, levando em consideração sua vivência local, seus anseios e suas expectativas; g) a promoção de acessibilidade nos sítios históricos exigirá um trabalho multidisciplinar, incluindo profissionais do patrimônio histórico, da acessibilidade e os próprios usuários, devido à complexidade dos problemas a serem resolvidos.

Enfim, facilitar e democratizar o acesso aos bens culturais tombados faz com que eles se tornem reconhecidos e valorizados por uma parcela mais ampla da sociedade, o que legitima de maneira especial a sua conservação, posto que a fruição do patrimônio cultural, enquanto direito fundamental e difuso, deve ser assegurada a toda a coletividade, de forma ampla, inclusiva e desimpedida.

 


[1] PRADO, Adriana Romeiro de Almeida. In: Direitos da pessoa portadora de deficiência. Advocacia Pública & Sociedade. Publicação oficial do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública. São Paulo: Max Limonad. 1997. p. 185.

[2] DANTAS, Fabiana Santos. Direito Fundamental à Memória. Curitiba. Juruá. 2010. p. 265. A propósito, Ingo Wolfang Sarlet cita como exemplo de direito fundamental deslocado do rol do Título II da Constituição Federal Brasileira a garantia do exercício dos direitos culturais, previsto no art. 215. In: A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 3ª ed. 2003, p. 129.

[3] O acesso do portador de deficiência ao patrimônio cultural. In: Direitos da pessoa portadora de deficiência. Advocacia Pública & Sociedade. Publicação oficial do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública. São Paulo: Max Limonad. 1997. p. 97.

[4] Luiz Antonio Miguel Ferreira. Acessibilidade: Pessoa com Deficiência e Imóveis Adaptados. Disponível em: http://www.ampid.org.br/Artigos/Imoveis_Adaptados_Luiz_Antonio_Ferreira.php. Acesso em 29/8/2008.

[5] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. NOVAIS, Andréa Mendes Lana. Acessibilidade aos bens culturais: direito humano fundamental. In: Bens Culturais e Direitos Humanos. SOARES, Inês Virgínia Prado. CUREAU, Sandra. Org. 2ª Ed. São Paulo. SESC. p. 416.

[6] Vide art. 17 do DL 25/37 e arts. 62 e 63 da Lei 9.605/98.

[7] Dispõe sobre a acessibilidade aos bens culturais imóveis acautelados em nível federal, e outras categorias, conforme especifica.

[8] GERENTE, Melissa M. e ELY, Vera Helena Moro Bin. Diretrizes de projeto para a acessibilidade em sítios históricos: porque o patrimônio brasileiro é de todos e para todos. Disponível em: http://www.arq.ufsc.br/petarq/wp-content/uploads/2008/02/abergo-27.pdf. Acesso em 16 de maio de 2011.

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