Opinião

Judiciário brasileiro como reflexo da desigualdade estrutural do país

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22 de julho de 2022, 15h10

A pesquisa "Estatísticas de Gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil" [1], publicada pelo IBGE em 2018, apontou o aumento da parcela das mulheres com ensino superior no Brasil. A referida estatística, contudo, não se reflete no mercado de trabalho, dado que o mesmo estudo aponta que, apesar de as mulheres possuírem maior grau de escolaridade do que os homens, elas ainda seguem recebendo cerca de ¾ do que os homens recebem.

Essa estatística se reflete de maneira mais ou menos intensa a depender da área escolhida, uma vez que há diferenças históricas na atuação feminina em segmentos como educação, tecnologia, as engenharias, o direito etc.

Antes de tratarmos da participação feminina do âmbito do Poder Judiciário, assunto que será o objeto de análise do presente artigo, é importante tecermos breves considerações sobre o contexto histórico.

A primeira mulher nomeada juíza no Brasil foi Auri Moura Costa, que assumiu o cargo em 1939. Ademais, Auri se tornou a primeira desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJ-CE) em 1968 e a primeira presidente da referida Corte em 1976 [2].

Até 1980 o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo proibia a nomeação de magistradas mulheres. A primeira desembargadora mulher do referido tribunal foi Luzia Galvão, que somente assumiu o cargo em 1997 [3].

A primeira juíza federal a assumir o cargo foi Maria Rita Soares de Andrade, que foi empossada em 1967 [4].

A primeira mulher a se tornar ministra do Supremo Tribunal Federal foi Ellen Gracie, que tomou posse em dezembro de 2000 [5].

E o Conselho Federal da OAB nunca foi presidido por uma mulher [6].

Esses são apenas exemplos da nítida desigualdade de gênero presente no âmbito do Poder Judiciário, que motivou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a publicar a Resolução 255/2018 [7] , que instituiu a "Política Nacional de Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário", cujo objetivo é a adoção de medidas tendentes a assegurar a igualdade de gênero no ambiente institucional, propor diretrizes e mecanismos que orientem os órgãos judiciais a incentivar a participação de mulheres nos cargos de chefia e assessoramento, em bancas de concurso e como expositoras em eventos institucionais.

A referida resolução também determinou em seu artigo 3º o levantamento de dados sobre mulheres juristas com expertise nas diferentes áreas do Direito, para os fins de utilização nas ações concernentes à política de redução de desigualdade de gênero no judiciário.

Essa determinação deu origem a dois estudos, sendo eles o "Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário" [8] e o "Perfil Sóciodemográfico dos Magistrados Brasileiros 2018" [9], ambos elaborados pelo CNJ.

O "Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário" levantou dados sobre a participação feminina no âmbito de 68 tribunais entre os anos de 2009 e 2018, cujos resultados preocupantes comprovam algo que já era perceptível até ao olhar mais desatento.

A partir desses dados foi possível identificar o percentual de ocupação dos cargos da magistratura e de servidores, bem como analisá-los sob diferentes critérios, para verificar a influência do gênero e da raça nos diferentes tribunais e ao longo da evolução na carreira.

Verificou-se que as mulheres são maioria entre os servidores do Poder Judiciário (56,6% do total dos cargos), mas minoria na magistratura, principalmente nos cargos mais altos da carreira.

Os dados levantados pelo CNJ demonstraram que em relação ao percentual geral, há uma parcela maior de mulheres no cargo inicial da carreira de magistratura, qual seja, o cargo de juiz substituto.

Nessa fase da carreira, que ocorre logo após a aprovação por concurso público, há um percentual de 42,8% mulheres para 57,2% de homens. Há também uma diferença entre os Tribunais de Justiça em relação a porcentagem de juízas substitutas, posto que nos estados de SC, RJ, SE, PB e RR, o percentual de juízas substitutas ultrapassa 47%, enquanto em estados como SP, ES, RN, PE e AL, o percentual é inferior a 23%.

Em relação as diferentes competências, Justiça do Trabalho é o que conta com a maior proporção de mulheres: 47%; a Justiça Estadual vem na sequência, com 36% de mulheres e a Justiça Federal com 32% de mulheres.

Em números gerais, contudo, é possível verificar uma queda evidente ao logo da carreira na magistratura, de modo que a proporção de juízas titulares é de 36,6% para 63,4% de juízes homens; a porcentagem entre as desembargadoras é ainda menor, de 21,5% contra 78,5% de desembargadores e é reduzida a porcentagem ínfima de 18,4% entre ministras de tribunais superiores, contra o percentual de 81,6% de ministros.

Nesse aspecto, não podemos deixar de observar que a progressão de carreira na magistratura depende critérios subjetivos e muitas vezes políticos, que ensejam na reprodução de estruturas patriarcais que dificultam o acesso das mulheres a cargos mais altos, como os de desembargadores e ministras.

Os dados levantados pelo CNJ ainda apresentam outra informação alarmante: quando se trata do perfil sociodemográfico dos magistrados, é perceptível que que a estrutura do judiciário brasileiro é quase que exclusivamente branca.

Diante do exposto, observa-se que a imagem do judiciário brasileiro é formada em sua maioria por homens brancos com uma participação tímida de autodeclarados pardos (23%), uma quantidade ínfima de pessoas pretas e amarela e nenhuma representação da população indígena.

Assim, evidencia-se que o Poder Judiciário Brasileiro reflete fielmente o machismo e o racismo estrutural que adoecem a sociedade brasileira, posto que, apesar de representarem a maioria da população brasileira, negros e mulheres permanecem sendo a minoria nas estruturas de poder.

Essa disparidade entre o contexto social do país e a manutenção das estruturas de poder nas mãos de uma minoria, caracterizada fortemente por homens brancos de alto poder aquisitivo, contribui para o enfraquecimento do direito das minorias. E gera teses esdrúxulas como a da legítima defesa da honra, utilizada no assassinato de Ângela Diniz e de autoria de Doca Street, ou até mesmo na prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas, como nas práticas vexatórias utilizadas nas audiências do caso Mariana Ferrer.

Ressalte, contudo, que o aumento puro e simples da participação feminina no poder judiciário não é medida suficiente para erradicar os diversos meios de violência institucional que podem ser praticados pelo Judiciário, mas evidentemente é um fator de maior diversidade de perspectivas quando se trata de assuntos relacionados aos direitos das mulheres, como os direitos reprodutivos e questões de equidade de gênero e violência doméstica.

Diante desse cenário, o CNJ vem utilizando os dados levantados para proceder com a elaboração de recomendações aos tribunais, a fim de reduzir as desigualdades expostas nessa pesquisa.

Nesse contexto foi elaborada a Recomendação CNJ nº 79/2020, por meio da qual recomendou a inclusão de uma capacitação em gênero como componente curricular obrigatório dos cursos de formação inicial dos magistrados, estendida também aos servidores que atuam nos primeiros e segundos grau de jurisdição com a aplicação da Lei Maria da Penha.

Outra recomendação que pode implicar em um avanço se implementada é a Recomendação CNJ nº 85/2021, que aconselha que os tribunais passem a observar nas vagas por indicação uma composição paritária de gênero, o que certamente reduziria a desigualdade entre homens e mulheres nos cargos mais altos da magistratura.

Essas medidas, apesar de louváveis, são recentes demais para que a sua efetividade seja analisada, bem como não possuem qualquer caráter coercitivo em relação aos tribunais.

Desse modo, a realidade encontrada no Brasil é de que, tal qual em outras carreiras, as mulheres (em sua maioria brancas) que atuam na magistratura ainda estão subjugadas as posições de menor poder, ou, ainda, as de nenhum poder, como se observa nos casos de mulheres negras, que fazem parte de um percentual ínfimo da magistratura. Isso demonstra que apesar de algumas vitórias recentes, a igualdade racial e de gênero prevista na Constituição ainda é um sonho distante.

Diante desse cenário, é evidente a necessidade de adoção de medidas mais efetivas para garantir a equidade de gênero entre desembargadores indicados pelo quinto constitucional e de maior pressão para a indicação de mais ministras mulheres.

 


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