Garantias do Consumo

Perturbação automatizada e o código de conduta do telemarketing

Autores

  • Fabiana Prietos Peres

    é doutoranda em Direito do Consumidor na Universidade Federal de Pernambuco e em Análise Crítica do Discurso Jurídico na Universidade Católica de Pernambuco na qual é bolsista Capes/Prosuc/taxa mestre em Direito do Consumidor e Concorrencial pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul pesquisadora na UFRGS na PUC-RS e na UFF advogada na Calado & Souza Advocacia secretária-geral da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-PE e diretora no Brasilcon e na Adeccon.

    View all posts
  • Anna Patrícia Barreto Novais

    é pós-graduanda em Direito Processual Civil Contemporâneo na Universidade Federal de Pernambuco advogada e membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB Pernambuco.

    View all posts

20 de julho de 2022, 8h05

A recente inclusão do código 0303, pela Anatel [1], às ligações oriundas de telemarketing ativo aos consumidores se apresenta como uma solução da agência para as insistentes ligações das empresas que oferecem produtos e serviços aos consumidores.

Além das ligações recebidas no celular, os famosos spam nos e-mails, agora o assédio ao consumidor também ocorre pelos aplicativos de mensagem instantânea, seja por SMS ou WhatsApp.

Pontua-se que a frequência excessiva das ligações configura abuso de direito na medida em que considerado esse consumidor como bystander [2], do artigo 29 do Código de Defesa do Consumidor, razão pela qual não necessariamente o sujeito precisa já ter uma relação de consumo prévia com quem efetua as chamadas. Já que, conforme lecionam Claudia Lima Marques, Antonio Herman V. Benjamin e Bruno Miragem "mesmo serviços gratuitos ligados ao marketing são regulados pelo CDC" [3].

Os pontos de contato dos consumidores com os meios de comunicação já são habitualmente contaminados por publicidades e pop-ups que aparecem quando o próprio consumidor utiliza uma ferramenta de busca ou ativamente abre algum aplicativo em seu horário de lazer e se depara, durante sua navegação, com algum anúncio publicitário.

Esse é o risco do tráfego na internet — ter diante de si a oferta de produtos não requisitados naquele momento (embora a rede já tenha condições de nos oferecer o que temos interesse com base em inteligência artificial e internet das coisas [4]).

Mas as ligações de telemarketing são chamadas de "ativas" apenas por parte das empresas. O consumidor, ao receber tais ofertas, não está ativo — ou seja, não está disposto ou disponível para essa intervenção em seu cotidiano, não estava sequer trafegando em locais nos quais tinha consciência de suas possíveis interrupções.

As ligações e mensagens são recebidas em momentos variados: enquanto o consumidor está dormindo, dirigindo, trabalhando, estudando — tirando-lhe a atenção e o interrompendo mais uma dezena de vezes por dia. E essa não é uma mera estimativa.

A Comissão de Defesa do Consumidor da OAB Pernambuco realizou, em agosto de 2021, pesquisa de monitoramento de serviço de telemarketing ativo, que entrevistou 733 consumidores naquele mês, por formulário eletrônico [5].

A partir dos resultados desse estudo, verificou-se a existência de um descompasso entre os dados obtidos — e muitos confirmados pela similaridade com aqueles observados no consumidor.gov pela semelhança dos índices de reclamação com relação às empresas de telefonia e instituições financeiras, por exemplo — e o compromisso público assumido por essas empresas.

Esse compromisso é o Código de Conduta Não Me Perturbe criado em 2019 pelas empresas de telefonia e que teve a adesão das principais instituições financeiras do país [6], também denominado pela doutrina como uma saída para "impedir a prática de telemarketing importunador pelas prestadoras de serviços de telecomunicações, posteriormente alargando essa proibição aos bancos consignados, através do mesmo sistema" [7].

Em uma análise entre os dados obtidos da pesquisa realizada pela OAB e o Código de Conduta, observa-se o descumprimento de diversos desses compromissos.

O documento de autorregulação possibilitou a inscrição espontânea do consumidor em um cadastro para não receber as ligações de telemarketing ativo. A pesquisa de monitoramento de serviço constatou que 49% dos consumidores possuíam o referido cadastro.

No entanto, 99,3% dos consumidores consultados ainda assim recebiam ligações de telemarketing ativo. Isso indica uma violação do § 7º do artigo  7º do Código de Conduta [8], quando o consumidor expressa sua vontade de não mais receber qualquer ligação e que isso deve ser feito num prazo máximo de 30 dias.

Outro ponto a ser analisado é o fato de 48% dos consumidores receberem ligações que, ao serem atendidas, ficam mudas, e outros 69,5% recebem ligações que "caem". Essa conduta desobedece o artigo 4º, inciso IV e XI [9], que além de exigir a devida apresentação da prestadora, também veda a realização de ligações com o intuito de verificar a disponibilidade do consumidor, bem como ligações aleatórias ou para números sequenciais.

Segundo a pesquisa, 38,3% dos consumidores recebem chamadas que dizem "alô" e desligam, enquanto 42,1% recebem ligações que dizem "alô, tá me ouvindo?", o que contraria o artigo 4º, inciso XII [10], que reitera a necessidade de identificação clara por parte da prestadora ainda que em mensagens gravadas.

Outro dispositivo claramente violado do Código de Conduta é o inciso VIII, do artigo 4º [11], que limita as ligações diárias a duas por dia. Contudo, considerando que 15% dos consumidores recebem entre 10 e 20 ligações diárias, e outros 30% dos consumidores recebem entre 5 e 10 por dia, configura-se abuso de direito, já que a prática viola, como leciona Bruno Miragem, "valores sociais ou juridicamente apreciados e protegidos" [12], como a privacidade.

Além disso, 56% dos consumidores recebem ligações todos os dias contrariando, dessa forma, o inciso VII do artigo 4º do Código de Conduta [13], no qual as ligações aos domingos e feriados nacionais são expressamente vedadas.

Essa breve análise sinaliza a ineficiência da gestão do setor para com o bem-estar do consumidor.

Por outro lado, ainda que haja um termo de autorregulação do mercado para as ligações de telemarketing, tem-se que ele não resolve a questão da perturbação aos consumidores e isso se observa com uma conta matemática simples.

Vejamos:

Se, por um lado, o Código de Conduta diz ter por objetivo limitar as ligações, a leitura que fazemos é que, na verdade, eles estabelecem uma autorização.

Se 40 empresas aderiram a essa normativa e cada uma delas possui autorização para realizar 15 chamadas por mês, o consumidor terá, em tese, de rejeitar 600 chamadas em um único mês.

Se para rejeitar cada chamada o consumidor perde um minuto de seu tempo produtivo — entre ser interrompido, rejeitar a ligação e voltar sua atenção à atividade que estava desempenhando —, em um mês ele perderá dez horas, caso receba ligações de todas as operadoras e instituições financeiras, o que significa a perda de cinco dias inteiros em um ano apenas rejeitando chamadas de números desconhecidos.

Em se considerando a média das respostas obtidas na pesquisa da OAB Pernambuco, em que os consumidores recebem cinco chamadas por dia, já são 150 chamadas em um mês, sendo 1.800 chamadas rejeitadas em um ano. Nesse cálculo, o consumidor perde, efetivamente, por mês, duas horas e meia rejeitando chamadas. No acumulado do ano, são 30 horas que o consumidor gastou (mais que um dia inteiro) do seu tempo produtivo em razão do abuso praticado por estas empresas.

Nesse contexto, a inserção do código 0303 não resolve a problemática das ligações de telemarketing, mas apenas transfere ao consumidor o ônus de rejeitar a ligação, já que igualmente será interrompido e perturbado em suas atividades cotidianas.

Desse modo, essa prática publicitária, que conforme Claudia Lima Marques ocorre "quando da aproximação (mesmo que extra ou pré-contratual) entre fornecedor e consumidor" [14], segue violando o dever de boa-fé.

 

[1] GOV.COM. 0303 entra em vigor para chamadas de telemarketing. Agência Nacional das Telecomunicações. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/ptbr/assuntos/noticias/0303-entra-em-vigor-para-chamadas-de-telemarketing. Acesso em: 20 maio 2022.

[2] DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e Direito. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 51.

[3] p. 182

[4] RIEMENSCHNEIDER, Patrícia Strauss; MUCELIN, Guilherme Antônio Balczarek. Internet das Coisas, Decisões Automatizadas e o Direito à Explicação. Revista Da Faculdade De Direito Da Universidade Federal De Uberlândia, v. 49, n.1, jan./jun. 2021, p. 689–708. Disponível em: https://doi.org/10.14393/RFADIR-v49n1a2021-56135. Acesso em: 20 maio 2022.

[5] PERES, Fabiana Prietos; GUERRA FILHO, Joaquim Pessoa. ESTIMA, Felipe de Alcântara Silva. Telemarketing e o bem-estar do consumidor: pesquisa de monitoramento de serviço a partir de análise de ligações de números desconhecidos a consumidores. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 49, n. 2, p. 734 – 735, jul./dez. 2021. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/revistafadir/article/view/65661. Acesso em: 20 maio 2022.

[6] BRASIL. Ato Normativo 01/ 2019. Código de conduta para Ofertas de Serviços de Telecomunicações por meio de Telemarketing. Disponível em: https://www.naomeperturbe.com.br/. Acesso em: 20 maio 2022.

[7] LIMBERGER, Têmis; BASAN, Arthur Pinheiro. Análise do "caso Cyrela": o direito ao sossego do consumidor e a proteção de dados pessoais, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 30, n. 136, p. 233-253, jul./ago. 2021.

[8] Art. 7º As prestadoras devem dar tratamento adequado às suas Listas de Consumidores em cada ação de telemarketing ativo, respeitando os pedidos de exclusão dos Consumidores que manifestarem explicitamente o seu desejo de não receber Ligações com Ofertas.

[…]

§ 7º. As exclusões solicitadas pelos Consumidores devem ser efetivadas no máximo em 30 (trinta) dias nas Listas de Consumidores das Prestadoras, sendo que após esse prazo não poderão ser realizadas mais ligações para estes Consumidores.

[9] Art. 4º — Nas Ligações para os Consumidores, os Agentes devem apresentar-se, identificar claramente a Prestadora que representam e informar o seu objetivo, além de:

[…]

IV – Não realizar Ligações apenas para verificar disponibilidade do Consumidor em atender as Ligações por meio de discador preditivo;

[…]

XI – Não realizar Ligações aleatórias ou para números sequenciais de Consumidores;

[10] Art. 4º Nas Ligações para os Consumidores, os Agentes devem apresentar-se, identificar claramente a Prestadora que representam e informar o seu objetivo, além de:

[…]

XII – Assegurar que mensagens gravadas inseridas no início das Ligações, obedeçam ao disposto no caput deste;

[11] Art. 4º — Nas Ligações para os Consumidores, os Agentes devem apresentar-se, identificar claramente a Prestadora que representam e informar o seu objetivo, além de:

[…]

VIII – Não realizar Ligações de forma insistente, limitadas a no máximo 2 (duas) chamadas efetuadas pela Prestadora e recebidas pelo mesmo terminal de acesso do consumidor no mesmo dia, salvo aquelas por solicitação ou com autorização dos consumidores, resguardadas as legislações específicas;

[12] MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 284.

[13] Art. 4º — Nas Ligações para os Consumidores, os Agentes devem apresentar-se, identificar claramente a Prestadora que representam e informar o seu objetivo, além de:

[…]

VII – Não realizar ligações nos domingos e feriados nacionais;

[14] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 828.

Autores

  • é doutoranda em Direito do Consumidor na Universidade Federal de Pernambuco e em Análise Crítica do Discurso Jurídico na Universidade Católica de Pernambuco, na qual é bolsista Capes/Prosuc/taxa, mestre em Direito do Consumidor e Concorrencial pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela UFRGS e em Droit comparé et européen des contrats et de la consommation pela Université de Savoie, pesquisadora na UFRGS, na PUC-RS e na UFF, advogada, membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-PE, associada do Brasilcon e professora de Metodologia da Pesquisa no Direito.

  • é pós-graduanda em Direito Processual Civil Contemporâneo na Universidade Federal de Pernambuco, advogada e membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB Pernambuco.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!