Poder crescente

Com governo enfraquecido, Congresso se torna protagonista na proposição de leis

Autor

19 de julho de 2022, 20h44

O presidencialismo de coalizão encolheu durante o governo Bolsonaro. Eleito no embalo da criminalização da política, proporcionada pela finada "lava jato", o governo do ex-capitão do Exército demonstrou desde o início pouca capacidade de articulação política. A aposta de firmar acordos com bancadas temáticas — bala, bíblia e boi — se provou equivocada e o Executivo teve de corrigir a rota em pleno voo.

Rodolfo Stuckert/Agência Câmara
Congresso Nacional consolidou tendência de protagonismo na gestão Bolsonaro
Rodolfo Stuckert/Agência Câmara

Essa conjuntura sui generis consolidou um fenômeno cada vez mais corriqueiro na República: o Poder Executivo foi superado na proposição de leis pelo Congresso Nacional. É verdade que esse movimento começou antes da gestão bolsonarista — estudo de 2015 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) já mostrava que deputados e senadores ganham cada vez mais protagonismo na elaboração de leis e políticas públicas —, mas foi intensificado desde 2018. 

Uma das revelações do estudo do Ipea, elaborado pelos pesquisadores Acir Almeida e Manoel Leonardo Santos, foi o forte crescimento das leis de origem parlamentar, que desde 2008 têm surgido em quantidade maior do que as do Executivo.

Dados da Câmara dos Deputados corroboram a tendência. Em comparação com o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2007), no atual governo o número de proposições do Executivo aprovadas pelo Congresso Nacional despencou de 323 para 180. E a quantidade de medidas provisórias que perderam a eficácia saltou de nove para 70. O número de PLs, PLCs, PECs e MPs enviados à Câmara também encolheu: de 419 no primeiro mandato de Lula para 248 no governo de Bolsonaro.

Essa comparação entre o primeiro mandato lulista e a atual gestão é a mais discrepante, mas a série histórica demonstra que a queda do protagonismo do Poder Executivo em relação ao Congresso Nacional foi aumentando nos governos de Dilma Roussef e Michel Temer. E, de 2018 em diante, a mudança de cultura institucional se consolidou de vez. Levantamento feito pela Action RelGov, a pedido da Frente Parlamentar do Empreendedorismo (FPE), demonstra que houve um aumento na aprovação de propostas de origem do Legislativo, enquanto as matérias propostas pelo Executivo caíram de 2012 a 2021.

"O estudo mostra que nos últimos 20 anos houve uma sequência de ações que trouxeram a responsabilidade de tomar a decisão final sobre as coisas para o Congresso Nacional. A questão da mudança das medidas provisórias de 2001, que entrou em vigor em 2002, a questão de travar a pauta, a criação das comissões especiais para votar as PECs e a obrigatoriedade de votar os vetos trouxe poder para os parlamentares", explica o consultor técnico da FPE, João Henrique Hummel, responsável pelo estudo.

Hoje quem decide se uma medida provisória vai cair ou não é o presidente da Câmara, já que ele estabelece quem será o relator. "Temos MPs que vão caducar em agosto que nem relator têm. Isso mostra que ele tem o poder de deixar essas proposições perderem a validade ou serem votadas em cima da hora. Tudo isso aumentou a quantidade de projetos aprovados que tiveram origem no Legislativo, em comparação com as proposições do Executivo", diz Hummel.

Pontos de virada
Para o consultor, o marco que possibilitou o gradativo empoderamento do Parlamento frente ao Executivo foi a mudança no trâmite das medidas provisórias, por meio da Resolução do Congresso Nacional n° 1 de 2002, que sobre emendas exige, por exemplo, a formação de comissão mista e prazos de tramitação.

Apesar disso, o Executivo seguia forte na relação com o Congresso porque mantinha as medidas provisórias travando a pauta. Isso mudou em 2009, quando o então presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer (MDB-SP), interpretou que as MPs só trancam a pauta nos casos de sessões ordinárias e nas votações de projetos de lei. A medida teve efeito imediato. Naquele ano, o Plenário aprovou mais projetos de iniciativa dos parlamentares (45) do que proposições do Executivo (42). Isso não ocorria desde 2001. Outras 16 propostas aprovadas naquele ano tiveram origem no Judiciário e duas no Ministério Público. Ao total de 105 matérias aprovadas acrescentam-se 124 projetos de decretos legislativos, que, em sua maioria, tratam de acordos internacionais. 

A nova interpretação provocou uma mudança de comportamento no Executivo, que passou a enviar menos MPs e mais projetos de lei para análise do Legislativo. A consolidação do poder do Congresso Nacional veio em 2013, quando foram criadas as comissões especiais para avaliar a admissibilidade das PECs e das MPs. Em 2015, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (MDB-RJ na época, atualmente PTB), decidiu que o trancamento da pauta só ocorreria após uma MP ser aprovada por comissão mista e lida no Plenário.

Por fim, o último movimento de hipertrofia do Legislativo foi feito em 2020, quando o comandante da Câmara na época, Rodrigo Maia (PSDB-RJ), por meio de ato da Mesa, passou a encaminhar as MPs diretamente ao plenário, em razão da emergência provocada pela crise sanitária imposta pela Covid-19. Com isso, a nomeação do relator e a leitura da matéria ficaram a cargo da Presidência. O rito foi mantido na gestão de Arthur Lira (PP-AL). 

Orçamento e semipresidencialismo
O mesmo movimento de enfraquecimento do Executivo na proposição de leis também pode ser notado no orçamento da União. De 2019 até junho deste ano, o Congresso comandou o destino de R$ 115 bilhões em emendas parlamentares, conforme dados publicados pelo Estadão. O número é mais do que o triplo dos R$ 33 bilhões liberados nos anos anteriores. 

Agência Câmara
Arthur Lira (PP-AL) determinou criação de grupo para discutir semipresidencialismo
Agência Câmara

Além de enviar mais dinheiro para suas bases, os parlamentares também têm usado seu crescente poder político para atender aos anseios de seu eleitorado ou mesmo entabular homenagens simbólicas. Um dos exemplos é a aprovação do Projeto de Lei 2832/21, de autoria da deputada Dra. Soraya Manato (PTB-ES), que institui o Dia Nacional do Cristão, a ser celebrado anualmente no primeiro domingo do mês de junho. Outro é o Projeto de Lei 2676/21, do deputado Eros Biondini (PL-MG), que institui o dia 8 de setembro como o Dia Nacional do Terço dos Homens, em homenagem a um movimento cristão de oração. Os dois projetos pouco ou nada vão influir na vida nacional e podem ser encarados como demonstrações de poder de articulação de seus autores.

O protagonismo do Legislativo na proposição de leis e no controle do orçamento vem criando um "semipresidencialismo soft", que deve perdurar após uma possível troca de governo e, quem sabe, tornar-se oficial por meio de uma reforma política. A ideia já é debatida abertamente pelo Congresso e tem em Arthur Lira um entusiasta. 

Em março deste ano, ele instituiu um grupo de trabalho para debater o tema, sob a coordenação do deputado Samuel Moreira (PSDB-SP). Além de Moreira, mais nove deputados vão integrar o colegiado. O conselho consultivo é formado por juristas como os ministros aposentados do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim e Ellen Gracie e pelo ex-presidente Michel Temer.

Outro nome de peso que é entusiasta do semipresidencialismo é o decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes. Em um debate sobre o tema com outros juristas, em junho de 2021, o ministro notou que algumas das reformas políticas já feitas, como a imposição da cláusula de barreira, podem enxugar o quadro partidário e dar maior racionalização ao sistema, facilitando a composição de maiorias para dar sustentação ao governo em um regime semipresidencialista. Quando presidente do Tribunal Superior Eleitoral, em 2017, Gilmar enviou ofício ao Senado com a ideia para a composição de uma PEC sobre o tema. No entanto, enquanto a reforma política não vem, o Congresso Nacional demonstrou nos últimos anos que já está impondo a sua própria versão do semipresidencialismo.

Clique aqui para ler o estudo da Action RelGov na íntegra

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!