Opinião

Primeiras impressões da arguição de relevância no recurso especial

Autores

  • Dierle Nunes

    é professor da UFMG e da PUC-Minas. Membro honorário da Associação Iberoamericana de Direito e Inteligência Artificial. Diretor do Instituto Direito e Inteligência Artificial (Ideia). Doutor em Direito pela PUC-Minas/Universitá degli Studi di Roma "La Sapienza".

  • Cícero Lisboa

    é assessor Legislativo na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e mestrando em Direito Processual Civil na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

18 de julho de 2022, 7h04

Foi promulgada em 15 de julho de 2022 a Emenda Constitucional 125, após a aprovação em 13 de julho de 2022 pelo Plenário da Câmara dos Deputados da PEC 39/2021, conhecida como "PEC da Relevância", que altera sensivelmente os requisitos de admissibilidade do recurso especial para parcela destes meios extraordinários de impugnação das causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos estados, do Distrito Federal e Territórios. A proposta foi aprovada por ampla maioria, tendo apenas o partido PSOL orientado contrário ao texto.

Trata-se, portanto, de uma mudança com amplo apoio do parlamento, em uma rara pauta de quase consenso em um país cada vez mais polarizado politicamente.

A proposta teve o apoio também do STJ, que o manifestou através do seu presidente, ministro Humberto Martins [1].

Como será demonstrado a seguir a proposta se coaduna com o movimento reformista, existente há bastante tempo, de ampliação dos mecanismos de filtragem e gerenciamento de acesso aos Tribunais Superiores, de modo que será bem mais estreita e técnica a elaboração e interposição destes recursos.

Tal movimento encontra um de seus marcos mais evidentes na edição da Emenda Constitucional (EC) 45/2004, regulamentada pela Lei 11.418/2006, com a introdução da repercussão geral no Recurso Extraordinário e sua regulamentação pela legislação processual (atual artigo 1.035, CPC), que após a adoção de uma série de normativas internas e com a ampliação mais recente de ambientes tecnológicos de julgamento virtual reduziu brutalmente seus números de 110.284 julgamentos em 2006, para um acerto de 22.275 processos em tramitação em 2022 [2].

Aqui, cumpre ressaltar apenas que esse número não seria alcançado sem outras medidas, como o julgamento em lista [3] e o Plenário Virtual (PV). Em 2007, apenas 0,1% dos julgamentos ocorria em ambiente virtual. Em 2022 o percentual é 98,8% dos julgamentos no PV [4].

A origem legislativa da introdução da relevância está na PEC 209/2012 da Câmara dos Deputados, proposta pelos deputados Rose de Freitas e Luiz Pitman, que incluía um novo parágrafo ao artigo 105 da CRFB/88 [5].

A proposta originária continha uma previsão genérica da "relevância" e que para o não conhecimento do recurso seria exigido a manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento.

Na Comissão Especial criada para analisar a PEC, foi apresentado substitutivo pelo deputado Sandro Mabel [6], que alterava substancialmente a proposta. Em seu relatório o deputado estabelecia os critérios para definição da relevância.

A PEC foi aprovada no plenário da Câmara em 15/03/2017, mas foi mantida a redação original, sendo rejeitadas as mudanças propostas pelo deputado Mabel [7] [8].

Enviada ao Senado, foi numerado como PEC nº 10/2017. O relator do plenário, senador Rogério Carvalho, propôs a inclusão de outro parágrafo no artigo [9].

O substitutivo do senador foi aprovado no Senado em 08/11/2021. De volta a Câmara, foi renumerada como PEC 39/2021, e aprovada nos mesmos termos do Senado, com a promulgação da EC125/2022.

Apesar do amplo apoio político do STJ, a OAB e a Aasp foram contrárias a mudança [10] [11].

O Congresso fez uma clara escolha legislativa, mas sem demonstração durante seu trâmite de relatórios de impacto regulatório, em especial no que tange aos possíveis efeitos nocivos aos jurisdicionados, em decorrência de uma evidente opção normativa por privilegiar a recorribilidade da camada mais abastada da população brasileira, como será demonstrado, uma vez que se escolheram, sem demonstração clara do grau de importância, algumas hipóteses como de relevância predeterminada normativamente.

No legislativo, afirmou-se laconicamente que tais hipóteses seriam das ações mais "importantes". Tal alegação não é necessariamente verídica. Pontue-se que, nos termos do novel §2º do artigo 105, da CRFB/88, os recursos especiais na área penal terão a relevância automaticamente reconhecida, ou seja, qualquer ilícito penal por mais singelo que seja, terá o direito de ser apreciado pelo STJ. Já caso cíveis que atinjam diretamente assuntos relevantíssimos para os cidadãos, passarão pela filtragem do requisito, sem momentaneamente, conhecer com clareza qual seria seu ônus argumentativo, em decorrência da entrada em vigor imediata da Emenda e da carência legislativa de sua regulamentação.

Existe, porém, algo mais grave. A nova legislação prevê a relevância predeterminada normativamente quando a ação tiver valor superior à 500 salários-mínimos [12], com a adoção de um critério potencialmente censitário de acesso ao Tribunal da Cidadania. Se de um lado, para uma pessoa abastada, o resultado de uma ação de valor de 501 salários-mínimos pouco impacto pode gerar em sua vida, de outro lado, para uma pessoa hipossuficiente, o resultado de uma ação possessória com o valor de 50 salários-mínimos sobre seu único imóvel, representará a perda de sua moradia. O primeiro interporá seu REsp com relevância predeterminada, o segundo terá de exercer o ônus argumentativo para demonstrar a relevância em preliminar de seu recurso. Tal opção ofende claramente os direitos fundamentais da isonomia e da dignidade da pessoa humana.

Ao se partir dos números do Superior Tribunal de Justiça, que só no ano de 2022 já recebeu 231.522 processos, lembrando-se que em 2021, foram recebidos no STJ 408.770 processos novos originários e recursais, dos quais 57.930 foram Recursos especiais e 233.120 foram de AResps [13], vê-se que existe a necessidade de se adotar soluções racionais de gerenciamento do passivo, notadamente com o emprego de tecnologia para conhecimento dos perfis de litigância e litigantes, redução da dispersão de julgamento (ruído), agrupamento dos julgamento (como se busca pelo Athos) etc [14].

No entanto, a solução do Parlamento foi a de se adotar relevância "presumida", sem critérios metodológicos claros para assuntos que se relacionam a interesses políticos (improbidade administrativa, inelegibilidade etc.) ou de grande vulto econômico, em detrimento de outros assuntos mais sensíveis, como a defesa dos direitos coletivos e dos hipossuficientes.

Uma segunda falha na proposta é em relação à sua regulamentação. O inciso VI prevê que a lei poderá estabelecer outras hipóteses de relevância, dando a entender, para aqueles que não acompanharam a tramitação da emenda, tratar-se de lei ordinária. Ao consultar as discussões na Câmara, fica claro, no entanto, que a intensão do Parlamento foi de permitir que apenas normas constitucionais estabeleçam hipóteses de relevância automática.

O Partido Novo ofereceu o destaque número 1 [15], a fim de que ficasse claro que as hipóteses de relevância seriam definidas por legislação ordinária. O pleito foi rejeitado pelo Plenário, tendo os deputados ressaltado que estavam votando contrariamente para garantir que os requisitos pudessem ser previstos apenas na Carta Magna [16].

Apesar de a tramitação legislativa esclarecer que os requisitos serão exclusivamente constitucionais, como demonstrado, é prudente que se aguarde a regulamentação do tema para verificar se a mens legis prevalecerá.

Dessa forma, observando os requisitos constitucionais, prevê-se que a terceira e a quarta turmas, que julgam matéria exclusivamente de direito privado, terão potencialmente um maior impacto na redução de seu acervo, cabendo a tais órgãos o julgamento apenas dos recursos especais que ultrapassem o valor de quinhentos salários-mínimos e que ataquem acórdãos que contrariem "jurisprudência dominante" do STJ.

Pontue-se, neste aspecto, que o critério do novel §2º, VI, do artigo 105, qual seja, de cabimento de relevância predeterminada quando o acordão contrariar "jurisprudência dominante" não é o mais adequado tecnicamente. Apesar de aparecer em três momentos no CPC, nos artigos 926, §1º; 927, §3º e 1.035, §3º, inciso I, seria mais preciso se o legislador tivesse se referido aos precedentes, cujo rol consta na legislação processual, notadamente, os julgados na sistemática do recurso repetitivo prevista no art. 1.036 et seq do CPC. Caberá, de um lado, à jurisprudência do STJ definir o alcance da expressão, e de outro, pela advocacia buscar demonstrar inclusive com elementos jurimétricos que determinado entendimento prevalece na Corte.

Apesar de se tratar de um conceito indeterminado, reputamos que haverá a tendência de se utilizar como base os parâmetros do artigo 932 do CPC, incisos IV e V, para ofertar densidade interpretativa para a expressão [17].

Pontue-se que para se garantir plena previsibilidade o ideal é que o filtro só seja exigido após a lei regulamentadora prevista no §2º do artigo 105, tal qual ocorreu com a repercussão geral.

No entanto, em decorrência da entrada em vigor imediata determinada pelo artigo 2º da EC 125/2022, recomenda-se ao advogado que em seus novos recursos especiais se abra uma preliminar expressa sobre a relevância e se explique: a) em qual das hipóteses normativamente estruturadas no artigo 105, 3º ele se enquadra; ou b) que seu recurso apresenta transcendência ao caso em apreço e o tipo de relevância (jurídica, econômica, jurídica e/ou política) seu caso traz em conformidade com as hipóteses de cabimento do recurso previstas no inciso III do artigo 105.

Em face dos ditames do artigo 2º da EC 125 [18] recomenda-se o imediato uso do requisito na elaboração dos recursos, pois se reputa bastante arriscado apostar que se aguardará uma regulamentação mais descritiva do procedimento de aplicação do novo filtro, nos termos do §2º do artigo 105, CRFB/88, se sugerindo a adoção argumentativa e momentânea dos atuais requisitos utilizados na análise da repercussão geral, enquanto ao menos o próprio STJ não edita normas internas para a avaliação do novel requisito.

Para a advocacia ainda há de se perceber que o não com base na relevância somente ocorrerá pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento, o que na prática significa que nas turmas do STJ, compostas por cinco ministros, será essencial o convencimento da relevância por dois dos julgadores do Colegiado para viabilizar o acesso. Tal percepção acentua o papel do ônus argumentativo junto aos ministros para viabilizar a admissão dos novos recursos especiais.

Há de se pontuar ainda que em decorrência da virada tecnológica que nosso judiciário vem passando, crê-se que o STJ adotará sistema e um ambiente virtual análogo ao do STF para apuração repercussão geral [19], para análise do filtro da relevância de modo a otimizar sua atuação.

Apesar de todas as críticas que aqui apresentamos, em especial pela falta de estudos empíricos prévios e de análise rigorosa de impacto regulatório para imposição do filtro para os cidadãos notadamente hipossuficiente, se aguarda que agora o STJ promova a edição provisória de uma regulamentação que retire parcialmente o ambiente de incerteza que os cidadãos e seus procuradores se encontram em como promover a elaboração de seus recursos especiais, em face da entrada em vigor imediata da EC 125.

Por fim, cumpre se sugerir que a reforma seja monitorada com o máximo rigor para além dos aspectos quantitativos, de modo a analisar: a) o impacto de acesso dos cidadãos ao STJ ou se alteração potencializará o protagonismo do litigantes habituais na corte; b) se com sua adoção o Tribunal passará a exercer um papel mais estratégico, coerente, estável e integro na interpretação do direito federal ou se o ambiente ruidoso [20] permanecerá, com varianças sensíveis no comportamento decisório; c) se tal monitoramento será usado como base para a regulamentação prevista no §2º do artigo 105, CRFB/88, de modo a dimensionar os problemas dos cidadãos, ou se ampliará a tendencia de redução de acesso, por exemplo, com a redução de cabimento dos Agravos em Recurso Especial.

O que nos resta é aguardar que os ditames do modelo constitucional do processo sejam levados em consideração na implementação prática e regulamentação do filtro da relevância, tendo como objetivo maior a experiência e as necessidades do cidadão e não somente uma pauta de eficiência para redução do acervo e fomento da produtividade.


[5]  De seguinte teor: "No recurso especial, o recorrente deverá demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento".

[9] O qual regulamentaria a relevância nos seguintes termos: "Haverá a relevância de que trata o §1º nos seguintes casos: I – ações penais; II – ações de improbidade administrativa; III – ações cujo valor de causa ultrapasse quinhentos salários mínimos; IV – ações que possam gerar inelegibilidade; V – hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça; VI – outras hipóteses previstas em lei".

[12] Parece uma tendência legislativa. Atualmente questionada pelas ADIns 6.050, 6.069 e 6.082 no STF, a Lei nº 13.467 de 13 de julho de 2017 "tabelou" o dano moral trabalhista.

[13] STJ, Relatório estatístico. Brasília, 2022.

[17] A súmula 568 do STJ, a qual foi redigida observando o artigo 557 do Código de Processo Civil de 1973, já foi há muito superada pelo CPC/15 e deveria estar cancelada. Com a nova legislação, os Ministros devem voltar ao tema.

[18] Artigo 2º A relevância de que trata o §2º do artigo 105 da Constituição Federal será exigida nos recursos especiais interpostos após a entrada em vigor desta Emenda Constitucional, ocasião em que a parte poderá atualizar o valor da causa para os fins de que trata o inciso III do §3º do referido artigo.

[20]  "O ruído pode ser assumido com uma expressão do erro humano, presente quando há divergência de julgamentos e de previsões" NUNES, Dierle et al. Desconfiando da imparcialidade dos sujeitos processuais. 3ª edição. Salvador, Podivm, 2023. (no prelo)

Autores

  • é sócio do escritório do Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia), doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e UFMG, membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do CPC/2015 e diretor acadêmico do Instituto de Direito e Inteligência Artificial (Ideia).

  • é assessor Legislativo na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e mestrando em Direito Processual Civil na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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