Opinião

Segurança jurídica como pilar interpretativo

Autor

  • Hélio Roberto Silva de Sousa

    é advogado especialista em Direito Administrativo e servidor de carreira da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e membro da Comissão de Assuntos Regulatórios da Comissão de Direito Administrativo na OAB-DF.

18 de julho de 2022, 20h29

Não é despiciendo evidenciar o impacto da segurança jurídica quando se está a tratar da interpretação do Direito. Para tanto, analisaremos os aspectos nucleares da segurança jurídica a serem considerados na interpretação do Direito, quais sejam: 1) segurança jurídica como fato, 2) segurança jurídica como valor, 3) segurança jurídica como norma-princípio, 4) binômio imutabilidade/confiabilidade, 5) dimensões objetiva e subjetiva da segurança jurídica e 6) instituições garantidoras da segurança jurídica.

O primeiro aspecto tem como cerne um juízo de fato, ou seja, a constatação prognóstica do que irá ocorrer dado certa realidade posta. Desta forma, como bem ensina Humberto Ávila, a segurança jurídica como fato seria a capacidade de alguém prever, concretamente, as consequências aplicadas pelo direito a determinados fatos e comportamentos [1].

No tocante ao aspecto valorativo da segurança jurídica, evidencia-se a expectativa de que um ordenamento jurídico com segurança jurídica seria melhor para o desenvolvimento social do que um sem ela, seja no aspecto econômico, administrativo ou político.

Neste sentido, Humberto Ávila arrazoa:

"A segurança jurídica, dentro de uma concepção axiológica, pode igualmente denotar um ideal político, como ideal de justiça ou de política do Direito com o qual determinado ordenamento possa ser cotejado. Nessa acepção, ela pode ser utilizada para mensurar o grau de aproximação dos ordenamentos jurídicos àquele ideal" [2].

Outrossim, chegando ao aspecto de maior relevância, há a segurança jurídica como norma-princípio.

Nesse ponto, é importante destacar que a segurança jurídica como norma-princípio está fincada sobre os pilares do direito posto e da argumentação. É matéria de direito posto porque umbilicalmente ligada à prescrição comportamental da norma aos seus destinatários, o que promove a segurança jurídica quanto aos atos de determinada Sociedade e, outrossim, é argumentativa, pois não consiste em mera reprodução semântica dos termos contidos na norma, sendo, muitas vezes, resultado da construção normativa a partir de processo hermenêutico-argumentativo do intérprete. Desta forma, sintetizando o entendimento sobre essas três facetas da segurança jurídica, ensina Humberto Ávila:

Todas as considerações precedentes demonstram que não se pode, portanto, confundir a segurança jurídica como fato (dimensão fática), como valor (dimensão estritamente axiológica) e como norma (dimensão normativa): uma coisa é o fato de os julgadores aplicarem o ordenamento jurídico a fim de confirmar as previsões feitas para a maioria das suas decisões; outra é a asserção de que é muito melhor um ordenamento previsível que um imprevisível; e outra, ainda, a obrigação de os julgadores aplicarem o ordenamento de modo a aumentar a probabilidade de previsões das suas decisões por parte dos operadores do Direito [3].

Vê-se, por conseguinte, que a segurança jurídica como fato consiste na capacidade/possibilidade de se prever, concretamente, o resultado de uma situação de fato; já quanto ao aspecto axiológico, a segurança jurídica se manifesta através do processo de aprovação/desaprovação da necessidade desta segurança jurídica; já com relação à norma-princípio, a segurança jurídica está relacionada aos incentivos criados pelo direito posto, bem como pela possibilidade de previsão das consequências jurídicas resultado de determinado comportamento. Assim, deve-se diferenciar que uma coisa é a possibilidade de o jurisdicionado antecipar os efeitos jurídicos de atos presentes (segurança jurídica como fato), outra é a própria norma prever que a instituição e aplicação das normas deve recrudescer a capacidade de o jurisdicionado antecipar os efeitos jurídicos de atos presentes (segurança jurídica como norma-princípio) [4].

Entendido o aspecto holístico da segurança jurídica como norma-princípio, há que se considerar, ainda, o binômio imutabilidade/confiabilidade decorrente da segurança jurídica.

Quando se fala em imutabilidade, há a ideia de que a segurança jurídica se vale a engessar de tal modo o direito que a aplicação futura da norma deve estar, indubitavelmente, vinculada ao já posto no direito pretérito. Entender a segurança jurídica a partir da imutabilidade do direito é, consoante apregoa Antônio Enrique Perez Luño, falar de verdadeira "petrificação do Direito".

El estado social de Derecho ha supuesto un cambio de orientación al ser incompatible con un inmovilismo normativo e institucional que se traduzca en petrificación del ordenamiento jurídico [5].

Por outro lado, a vertente da confiabilidade não enxerga a segurança jurídica a partir paralisação evolutivo-cognoscitiva do direito. Deve-se considerar, portanto, que a interpretação jurídica pode ser alterada, desde que tal processo de alteração ocorra com confiabilidade, ou seja, de maneira estável. O comandante de um navio pode mantê-lo em movimento estável, ainda que singrando em considerável velocidade.

Isso não significa que essa navegação possa ocorrer de forma desenfreada e com movimentos agressivos. Os navios não dispõem de "freio-de-mão", que permita que haja determinada frenagem abrupta. Para parar, o navio inicia seu processo de desaceleração com quilômetros de antecedência do cais do porto. O mesmo deve ocorrer com o direito, ou seja, as alterações no direito devem ocorrer de forma estável, sendo comandadas pelo "capitão" confiabilidade.

Nesse sentido, deve-se garantir os direitos subjetivos alcançados e, com estabilidade, permitir a evolução do direito. Desta forma, a segurança jurídica é vista como limitadora às mudanças repentinas e de ocasião, sem que impeça, por outro lado, a evolução interpretativa do direito, desde que realizada com fulcro na estabilidade e racionalidade.

Passando à análise das dimensões objetiva e subjetiva da segurança jurídica, vê-se que aquela traz em seu espectro a estabilidade e credibilidade do Poder Judiciário. Ora, decisão judicial que altere jurisprudência outrora consolidada afeta inúmera quantidade de pessoas, a ponto de fazer fenecer a própria confiança do cidadão comum no sistema jurídico respectivo.

Já quanto à dimensão subjetiva, decisão judicial que, de igual modo, altera entendimento jurisprudencial consolidado, tem o condão de gerar impactos de grande monta àquele que, fulcrado na jurisprudência alterada, dispôs de seu patrimônio ou tomou decisões de cunho jurídico, crendo estar amparado pelo entendimento agora alterado.

Seja quanto à dimensão objetiva, seja quanto à subjetiva, o ato de interpretar não pode, sob pena de golpe mortal, desconsiderar a segurança jurídica como fator limitador-validador (limitador quanto à dimensão objetiva e validador quanto à dimensão subjetiva) do processo interpretativo de determinada norma.

Ainda no que tange à segurança jurídica, não se poderia deixar de discorrer sobre as instituições garantidores, aprioristicamente, da segurança jurídica, mormente os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como o Ministério Público.

Quanto ao Poder Legislativo, observa-se que a função garantidora da segurança jurídica tem seus óculos voltados para o futuro, por meio da edição de normas que não agridam, retroativamente, direitos adquiridos que tenham como paradigma ordenamento pretérito. Desta forma, o Poder Legislativo também é agente garantidor da segurança jurídica, tomando mão da interpretação do Direito e decidindo sobre o que deve/pode ser alterado sem que se traga instabilidade ao sistema jurídico pátrio.

Já com relação ao Poder Executivo, é bem verdade que este, no exercício de suas atividades (típicas e atípicas) recorre à interpretação normativa para executar os seus atos, de modo que tais atos não confrontem entendimento jurídico consolidado.

No tocante ao Poder Judiciário, ator-produtor da coisa julgada, a segurança jurídica deve ocupar lugar de destaque, de modo que não se perca a credibilidade do sistema jurídico, além de se evitar danos àqueles que, fundados em jurisprudência consolidada e calcados no princípio da confiança, promovem atos de disposição de direitos, sendo, em seguida, tal jurisprudência bruscamente alterada.

Outrossim, e não de menor importância, o Ministério Público tem papel essencial e indispensável quando está a se tratar da segurança jurídica. Ombreado com o entendimento de que o Parquet tem natureza de custos legis [6], deve-se considerar que o Órgão Ministerial traz em seu cerne, ainda, natureza de custos iuris, funcionando como verdadeiro filtro hermenêutico da aplicação do direito.

Considerando os novéis mecanismos de jurisdição autocompositiva, maior responsabilidade recaiu sobre o Ministério Público, máxime pelo fato de ser este o responsável pela interpretação prévia da norma, bem como pelo oferecimento de medidas consensuais na aplicação do direito. Neste cenário, imperioso é destacar a essencial função do Parquet como garantidor da segurança jurídica, ao exercer seu papel hermenêutico quando da aplicação do direito.

Vê-se, portanto, que a segurança jurídica não pode ser prescindida do processo interpretativo, sob pena de se esvaziar a previsibilidade confiabilidade no sistema de aplicação do Direito.


[1] ÁVILA, Humberto Bergmann. Segurança Jurídica: entre a permanência, mudança e realização do Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 108.

[2] ÁVILA. Op cit., p. 109.

[3] Ibid., p. 110.

[4] Ibid., p. 110.

[5] LUÑO, Antônio Enrique Perez. La Seguridad Jurídica. Una garantia del Derecho y la Justicia. Barcelona: Ariel, 1991. p. 32. Tradução livre: O estado social de direito significou uma mudança de orientação, pois é incompatível com uma imobilidade normativa e institucional que se traduz em petrificação do ordenamento jurídico.

[6] Função inerente ao Ministério Público de fiscal da ordem jurídica.

Autores

  • é advogado, especialista em Direito Administrativo e Servidor de carreira da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e membro da Comissão de Assuntos Regulatórios, da Comissão de Direito Administrativo e todas na OAB/DF.

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