Opinião

Marco Regulatório do Fomento à Cultura: passo crucial para os direitos culturais

Autor

  • Cecilia Rabêlo

    é advogada mestre em Direito e especialista em Gestão e Políticas Culturais e presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

18 de julho de 2022, 6h05

Está em tramitação no Congresso o Projeto de Lei nº 3.905/2021, que estabelece o Marco Regulatório do Fomento à Cultura no Brasil. O objetivo da norma é criar um regime jurídico próprio para o fomento público à cultura no país, evitando a aplicação de leis estranhas à dinâmica cultural, que causam problemas históricos ao setor.

Antes de adentrar nos pontos inovadores da pretensa legislação, é preciso dar um passo atrás e compreender o motivo pelo qual esse projeto de lei é tão fundamental para a efetivação dos direitos culturais no Brasil.

Quem trabalha na gestão pública de cultura sabe a dificuldade que é transferir um recurso, para fins de apoio, para um mestre da cultura popular que não sabe ler ou um coletivo teatral sem "CNPJ", por exemplo. Dúvidas acerca dos tributos incidentes, sobre como fazer a seleção dos apoiados, quais os termos contratuais adequados, quais as regras de execução e prestação de contas podem ser exigidas e sobre tantos outros pontos causam eternos entraves no fomento cultural, levando o gestor à inefetividade e os proponentes à inadimplência.

Esses questionamentos surgem exatamente da ausência de uma norma específica sobre fomento à cultura. União, estados e municípios, sem ter uma lei que preveja regras mínimas sobre como esse apoio deve se dar, acabam recorrendo a outras normas que nada têm a ver com o setor cultural (como a lei de licitações, por exemplo), gerando inúmeras burocracias e tornando o fomento público à cultura pouco efetivo.

O fato é que, até hoje, o Brasil não conta com uma norma geral sobre fomento à cultura, não obstante o dever claro e expresso, disposto na Constituição, de incentivar e fomentar a produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais (artigo 215 e 216, III), além do dever, igualmente claro e expresso, de legislar sobre cultura (artigo 24, IX).

O projeto de lei encontra fundamento, portanto, não só nos artigos constitucionais específicos sobre cultura, mas na competência legislativa concorrente, ou seja, no dever atribuído à União de elaborar as normas gerais sobre cultura. Dever este, aliás, muitas vezes esquecido pelo Congresso Nacional, visto a ausência de normas gerais sobre cultura no país (nem mesmo a lei regulamentadora do Sistema Nacional de Cultura, exigida pelo artigo 216-A §3º da Constituição, foi elaborada até hoje).

A ausência de normas gerais sobre cultura, especialmente sobre o fomento, causa imensos prejuízos ao setor, vez que, diante da falta de regra, cada ente federado cria suas próprias regulamentações, umas mais rígidas, outras mais flexíveis, em um campo de total insegurança jurídica tanto para o gestor quanto para o proponente, que ficam à mercê do entendimento da procuradoria jurídica da secretaria de cultura e dos órgãos de controle estatais.

A fim de mudar essa realidade, o projeto de lei traz pontos interessantíssimos, tais quais: o afastamento da aplicação da lei de licitações ao fomento cultural; criação de instrumentos jurídicos próprios, com regras adequadas à dinâmica do setor; maior flexibilidade na execução do recurso, sem ter que ficar pedindo autorização do Poder Público a todo momento; prestação de contas focada no cumprimento do objeto, deixando o detalhamento financeiro apenas como exceção, dentre outros.

Não obstante a fundamentalidade da aprovação desse projeto de lei e de sua extrema relevância para os direitos culturais no país, é importante ressaltar que, junto com a promulgação desta norma, é preciso mudar a perspectiva do Estado em relação ao fomento à cultura.

Fomento não é assistencialismo, mas sim um dever estatal e um direito fundamental dos indivíduos. Agente cultural não presta serviço ao Estado para ser tratado sob a égide da lei de licitações. O Estado existe para viabilizar as ações culturais, não para gerenciá-las ou controlá-las de acordo com as vontades políticas, muito menos para submetê-las ao mesmo rigor aplicado à própria máquina pública.

A criminalização das artes e da cultura e a lógica do "culpado, até que se prove o contrário", tão presentes nos órgãos de controle estatais, destroem a política pública de fomento à cultura por dentro: nos tribunais de contas, nas controladorias, nos setores de prestação de contas das próprias secretarias de cultura. Aprovar esse projeto de lei e lutar pela mudança desses paradigmas são, portanto, dois caminhos paralelos e complementares para a devida efetivação dos direitos culturais.

Autores

  • é advogada, mestre em Direito e especialista em Gestão e Políticas Culturais e presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

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