Opinião

O que é e o que não é lavagem de dinheiro com bitcoins

Autor

  • Felipe Américo Moraes

    é advogado no escritório Beno Brandão Advogados Associados mestre em Direito pela Universidade Curitiba especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial e autor do livro "Bitcoin e Lavagem de Dinheiro".

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13 de julho de 2022, 19h25

Com frequência os criptoativos são associados à criminalidade, sobretudo com o crime de lavagem de dinheiro. O raciocínio parte da premissa de que se trata de um sistema global, muitas vezes descentralizado e com relativo acréscimo de anonimato em suas transações, características propícias para a movimentação transnacional de dinheiro ilícito.

Todavia, ainda pouco se avançou na discussão sobre se determinadas condutas de movimentação (ou conversão) de capital ilícito envolvendo criptoativos significam, verdadeiramente, a prática desse delito. Há textos que buscam traçar uma relação com as chamadas "fases" da lavagem [1] de "colocação", "mascaramento" e "integração" , mas poucos fazem a correspondência necessária para verificação da tipicidade  objetiva e subjetiva  no ordenamento jurídico brasileiro.

Acredita-se que uma das causas dessa escassez tem origem metodológica: dizer que determinada conduta configura lavagem de dinheiro porque é uma "colocação" não encerra  ou sequer inicia  a análise típica necessária. Isso porque a transferência de dinheiro produto de crime nem sempre será entendida como ato de lavagem, por mais que possa se encaixar no conceito de "colocação" [2]. É indispensável que a transferência disponha de uma mínima complexidade para tornar mais difícil a identificação do delito antecedente.

Significa dizer que o dinheiro em espécie pertencente ao autor do delito antecedente depositado em sua conta bancária até pode configurar uma "colocação", mas não configurará lavagem de dinheiro. No caso, entende-se que não haverá um ato capaz de, objetivamente, "ocultar" ou "dissimular" alguma das características dos valores provenientes da infração penal  isto é, sua origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade.

Por esse motivo  e ancorando-se no entendimento de Lucchesi  as condutas de "ocultar" ou "dissimular" não incluem a etapa de "colocação", mas somente a de "mascaramento". Segundo esse autor, a fase de "colocação", sob a óptica brasileira, é um mero ato preparatório para o delito [3].  

Nesse contexto  e com o objetivo de realizar esse confronto , o livro "Bitcoin e Lavagem de Dinheiro: quando uma transação configura crime" [4] dedicou parte para realizar a análise da tipicidade objetiva das condutas envolvendo transações com bitcoins, separadas por ações de duas naturezas: 1) a conversão de dinheiro de proveniência ilícita em bitcoins; 2) a movimentação de bitcoins de proveniência ilícita.

A conversão de dinheiro de proveniência ilícita por bitcoins pode ser realizada de diferentes formas. Pela limitação de espaço, aborda-se as principais: a) trocas em exchanges centralizadas; b) trocas junto a outros usuários da rede; c) trocas em plataformas de aproximação de usuários.

Nesses casos, independentemente da forma como for realizada, é indispensável observar a forma de custódia dos valores ilícitos pelo agente. Eles podem estar depositados em conta bancária da sua titularidade, em conta bancária de terceiro (mas da qual detém disponibilidade) ou em espécie.

No caso de o agente realizar a troca de valores ilícitos localizados em conta bancária de sua titularidade por bitcoins em exchanges centralizadas, ele precisará abrir uma conta nesse provedor de serviços de ativos virtuais. Via de regra, no momento do cadastro  ou antes de disponibilizar total acesso a suas funcionalidades , empresas desse tipo realizam procedimentos de coleta de documentos de identificação  conhecido como procedimentos de conhecimento do usuário (KYC). Feito isso, os valores poderão ser enviados da conta bancária a uma conta bancária da exchange mediante transferência e, na sequência, convertidos (em uma transação chamada de "off-chain" [5].

A dinâmica dessa transação é equiparável a uma simples transferência entre duas contas bancárias realizada dentro do sistema financeiro tradicional, hipótese em que não haverá lavagem de dinheiro. Isso porque a conduta não tem a capacidade de "ocultar" ou "dissimular" alguma das características dos valores de proveniência ilícita  desde que estejam cadastradas em nome do autor do delito antecedente.

O mesmo acontece caso haja a transferência (retirada, ou saque) desses valores custodiados na exchange centralizada para uma "carteira privada" [6]. No caso, os valores farão um novo passo, sendo encaminhados do "endereço" controlado pela exchange a um controlado pelo usuário. O entendimento de, também, não configurar lavagem e dinheiro decorre da possibilidade de observar facilmente o caminho percorrido pelos valores, sobretudo porque a blockchain do Bitcoin é pública. Assim, pode-se dizer que não há "ocultação", "dissimulação" capaz de mascarar a utilização desses valores. Afinal, é possível ao Estado requerer informações da exchange para verificar o "endereço" e o usuário para onde os valores foram destinados  assim como ocorre no sistema financeiro tradicional [7].

O mesmo entendimento não é aplicável caso os valores estejam depositados em conta bancária de titularidade de terceiro e, posteriormente, sejam transferidos a uma exchange centralizada aberta na conta desse mesmo titular. Nesse caso, tanto o depósito da moeda estatal em conta da exchange centralizada como a conversão final da moeda estatal em bitcoins (que ocorrerá somente após o saque) tem a capacidade de "ocultar" a "disposição" ou "propriedade" dos valores provenientes de ilícito penal.

Quanto aos valores em espécie na posse do autor do delito antecedente, a tipicidade do delito dependerá do modo com que ele os fizer ingressar na exchange centralizada. A inclusão de saldo nos sistemas da exchange ocorre mediante transferências bancárias; isto é, não há como ser feito um depósito direto em um caixa eletrônico (com exceção das compras em caixas eletrônicos de criptoativos, hipótese não abordada neste artigo). Dessa forma, para que o valor seja transferido a uma exchange centralizada, será necessário realizar o depósito em uma conta bancária.

Assim, se a conta depositada for de titularidade de terceiro, pode-se dizer que o ato configurará lavagem de dinheiro antes mesmo de haver o envio à exchange centralizada. Contudo, se o depósito for realizado em conta da titularidade do agente, o ato não configurará lavagem ante a ausência de uma "ocultação" ou "dissimulação".

Além desse, há o caso das "plataformas de aproximação dos usuários" (também conhecidas como "P2P exchanges"[8]. Antes do surgimento de provedores de serviços destinados a realizar conversões, as trocas de moeda estatal por bitcoins ocorriam exclusivamente de maneira direta entre os usuários e sem qualquer intermediação. Atualmente, esse é um dos métodos para converter dinheiro em espécie em bitcoins sem necessitar passar pelo sistema financeiro tradicional.

Pode-se pensar nas mesmas formas de conversão já abordadas: a) os valores estarem em conta bancária da titularidade do autor do delito antecedente e sejam transferidos à conta bancária do vendedor dos bitcoins; b) que os valores estejam em conta bancária de titularidade de terceiro, da qual o agente detém poderes de administração e a disponibilidade, cujos valores sejam transferidos ao vendedor dos bitcoins; c) que os valores estejam em espécie e sejam entregues, em mãos, ao vendedor dos bitcoins.

Dessas hipóteses, a única que configurará lavagem de dinheiro será a situação "b", visto que somente ela tem a capacidade de "ocultar" ou "dissimular" a propriedade. A primeira carece de maiores explicações. Todavia, a última necessita de maior verticalização.

Na hipótese de os valores serem entregues em espécie ao vendedor ocorre o oposto do que pode ser entendido como uma "ação de ocultação". Tendo em vista a natureza pública da blockchain  e, consequentemente, a capacidade de o Estado empregar técnicas de investigação , a conversão de dinheiro (em espécie) por bitcoins não é um ato de ocultação (no sentido de "tornar mais oculto que antes"), mas uma "ação de exibição" do capital ilícito.

Ancorando-se no entendimento de Grzywotz [9], é necessário realizar um exercício comparativo entre o estado que se encontra o dinheiro em espécie e o inserido no sistema Bitcoin. O dinheiro em espécie tem menor rastreabilidade, visto que pode ser escondido e movimentado sem qualquer possibilidade de supervisão do Estado. Por outro lado, valores em bitcoins são passíveis de consulta pública na blockchain. Assim, a conversão de dinheiro em espécie por bitcoins não configura ato típico da "ocultação", mas o oposto disso: dá ao Estado maior capacidade de identificar os valores oriundos do delito antecedente.

Explicada a conversão de moeda estatal em bitcoins, fala-se da movimentação de bitcoins de proveniência ilícita. Podem ser, principalmente: 1) o envio a outros "endereços", sobretudo pertencentes a outros usuários na rede; 2) mascarados mediante a utilização de "serviços de mixagem"; 3) depositados em exchanges centralizadas e imediatamente sacados; 4) usados em transações no sistema Bitcoin com o método CoinJoin; 5) convertidos em outros criptoativos de blockchain distinta.

Dessas, conforme recomenda Grzywotz [10] e Estellita [11], é importante realizar a separação em duas categorias: a) transações simples; e b) transações complexas. As “transações complexas” são as realizadas com o auxílio de ferramentas que permitem o acréscimo de anonimato, tais como o uso de "serviços de mixagem", "CoinJoin" [12], ou outras ferramentas do gênero. As “transações simples” são todas aquelas que ocorrem sem a utilização dessas ferramentas, isto é, a simples movimentação de bitcoins de um “endereço” a outro.

Nas "transações simples", o que as diferencia é a forma de custódia, que podem estar em uma exchange centralizada ou diretamente pelo usuário (em "endereço" controlado por sua "carteira").

Todavia, independentemente de como estejam, não haverá lavagem nesse modelo de transação. Sobre isso, é interessante avaliar a hipótese que poderia ser considerada a mais suscetível para essa finalidade: a custódia privada. Isso porque esse comportamento já foi sugerido como uma conduta típica de lavagem. É o que sustentou Bueno [13] ao dizer que poderia haver uma ocultação penalmente típica, de "modo que os valores fiquem escondidos até ulterior movimentação", por exemplo, escondendo a carteira fria na residência do autor do delito antecedente.

Todavia, entende-se que essa interpretação está equivocada. A conduta sugerida não preenche os requisitos da tipicidade objetiva. Não há uma conduta capaz de "ocultar" ou "dissimular" qualquer uma das características do bitcoin. Mesmo após a transação: a) sua "natureza" continuará sendo a mesma, isto é, bitcoins; b) sua "origem" e "movimentação" continuarão sendo verificáveis mediante consulta à blockchain; c) a "localização" continuará sendo a mesma, isto é, na blockchain; d) a "propriedade" não será ocultada, visto que sua verificação é possível na blockchain (o indivíduo que possui a "chave privada" correspondente ao “endereço”).

Ademais, esconder uma "carteira privada" de bitcoins nunca poderá ser considerado ato de ocultação típico de lavagem. A conduta objetivamente típica é a ocultação de alguma das características do objeto material do delito  dos bitcoins. Nesse contexto, necessário dizer que na "carteira" não estão armazenados os criptoativos, mas as chaves criptográficas (chaves privadas) que dão acesso a eles. Para ilustrar, vale uma analogia: ocultar uma "carteira" de bitcoins equivale a ocultar a chave de um cofre que contenha dinheiro de proveniência ilícita: um ato penalmente irrelevante.

Constatado que mesmo nas "transações simples" envolvendo "carteiras privadas" não há lavagem, a verificação é tranquila de ser realizada nas ocorridas em exchanges centralizadas. Isso porque, via de regra, elas coletam informações de seus usuários (KYC), de forma que  assim como nas transações realizadas em instituições financeiras tradicionais  não há conduta capaz de "ocultar" ou "dissimular" alguma das características do bitcoin.

Situação distinta ocorre nas chamadas "transações complexas", as quais podem ser exemplificadas nas transações realizadas em "serviços de mixagem" ou com o método "CoinJoin". Explicar o modo de funcionamento de ambas demandaria espaço inexistente neste artigo. Mesmo assim, necessário dizer que se tratam de métodos de transação que conseguem ocultar a origem e a propriedade de bitcoins por – mesmo que a blockchain do Bitcoin seja pública. Assim, se realizada com ativos de origem ilícita, poderão ser considerados lavagem de dinheiro.

Por fim, quanto à conversão em outros criptoativos de blockchain distinta, dependerá da forma como foi realizada. Se ocorrer por intermédio de uma exchange centralizada não haverá a capacidade de ocultação  pelas razões já expostas anteriormente neste artigo. Todavia, se for por intermédio de uma exchange descentralizada, poderá ser capaz de ocultar alguma característica do objeto material do delito. Ou seja, haverá lavagem de dinheiro.

Tais ponderações sobre o tema tem o objetivo de salientar àqueles que farão a análise típica do delito de lavagem de dinheiro em condutas envolvendo criptoativos quanto à necessidade de ser realizada uma valoração da conduta humana verdadeiramente realizada nesse ambiente. Isso porque nomenclaturas como "carteira", "endereço" ou "moeda" são, todas, analogias criadas pelos desenvolvedores para tornar mais palatável a compreensão para os usuários. Todavia, pode gerar incompreensões técnicas  o que já ocorreu inclusive em textos especializados.


[1] ESTELLITA, Heloisa. Criptomoedas e lavagem de dinheiro. Revista Direito GV, 2020. p. 10-11.

[2] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lavagem de Dinheiro como mascaramento: limites à amplitude do tipo penal. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance, 2020. p. 7.

[3] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Op. Cit. p. 7-8.

[4] MORAES, Felipe Américo. Bitcoin e lavagem de dinheiro: quando uma transação configura crime. Belo Horizonte: Tirant Lo Blanch, 2022.

[5] Uma transação "off-chain" significa a conversão de moeda estatal para qualquer criptomoeda, quando realizada pelo usuário dentro da "carteira web" da exchange centralizada. Trata-se de uma movimentação que ocorre somente no banco de dados interno da exchange; não há alteração na blockchain. Apesar de o sistema informar ao usuário que ele tem determinada quantidade de bitcoins, eles, em verdade, estão sob a custódia da exchange centralizada, sobretudo porque as chaves privadas e o respectivo endereço pertencem à exchange, não ao usuário.

[6] Trata-se de um termo utilizado equivocadamente pelos reguladores para se referir ao método de custódia pessoal de criptoativos, caso em que o armazenamento ocorre em um "endereço" criado por uma "carteira".

[7] Nas palavras de Estelitta, trocas dessa natureza não configuram atos de ocultação dada a rastreabilidade das transações, de modo que a mera troca não implica "ocultação" ou "dissimulação" (ESTELLITA, Heloisa. Criptomoedas e lavagem de dinheiro. Revista Direito GV, 2020. p. 11).

[8] Trata-se de sistemas que permitem aproximar usuários que desejam comprar ou vender bitcoins (ou outros criptoativos), mas cujas transações são realizadas fora do ambiente da plataforma.

[9]  GRZYWOTZ. Johanna. Virtuelle Kryptowährungen und Geldwäsche. DUCKER & HUMBLOT GMBH, 2019. p. 169-170.

[10] GRZYWOTZ. Johanna. Op. Cit. p. 267.

[11] ESTELLITA, Heloisa. Op. Cit. p. 10.

[12] Transações realizadas em grupos, contendo diversos "endereços" nas "entradas" (inputs) e nas "saídas" (outputs).

[13] BUENO, Thiago Augusto. Bitcoin e crimes de lavagem de dinheiro. Editora Contemplar, 2020. p. 130.

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