Opinião

Arte de interpretar: apelo à sã hermenêutica

Autor

  • Hélio Roberto Silva de Sousa

    é advogado especialista em Direito Administrativo e servidor de carreira da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e membro da Comissão de Assuntos Regulatórios da Comissão de Direito Administrativo na OAB-DF.

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11 de julho de 2022, 20h20

Interpretar é a arte de dar significância concreta a determinado objeto, inclusive teórico, por meio de um agente intérprete; é enxergar, a partir do espaço amostral proposto (objeto a ser interpretado), a projeção de significado àquele que está a interpretar. Assim, conquanto não se possa olvidar as balizas interpretativas necessárias a esta projeção, é utópico inferir que o intérprete não contribui, a partir de seus valores e cosmovisão, com o resultado dessa projeção.

Aqueles que, por exemplo, aventuram-se em singrar pelos mares de Machado de Assis, terão visões diferentes sobre a mesma obra ou sobre o mesmo evento, evidenciando que a interpretação de algo perpassa pela visão do próprio intérprete, e isso faz parte do processo interpretativo.

O que dizer sobre o final emblemático da obra machadiana Dom Casmurro? Afinal, Ezequiel era filho de Bentinho com Capitu ou, como na visão do narrador-personagem (Bentinho), era fruto da traição de Capitu com seu melhor amigo Escobar? A obra do mestre literário não finca posição quanto à real paternidade de Ezequiel, deixando ao leitor-intérprete a missão de tirar suas próprias conclusões, e isso vai depender de como o texto lhe tenha influenciado.

Como bem ensina Eros Grau [1], no qual nos amparamos, a arte de interpretar o direito é alográfica [2], sendo imprescindível a presença do intérprete na consecução da norma.

 Desta forma, a título de exemplo, aquele que se depara a observar a obra "Mona Lisa", de Leonardo da Vinci, não terá a mesma percepção interpretativa de outro que esteja ao seu lado, ao mesmo tempo, observando a mesma obra. Nesse sentido, afirma o citado autor que a interpretação do direito pode assumir diversas facetas, a depender das verdades subjetivo-existenciais daquele que está a interpretar.

Por outro lado, faz-se necessário ponderar sobre a importância da interpretação, máxime a jurídica, de modo a não se dar azo a verdadeiro caos interpretativo, sem qualquer previsibilidade ou segurança jurídica.

Inobstante haja certa fluidez a depender do intérprete, o rol de resultados possíveis de determinada interpretação deve estar limitado à norma ou, como apregoou Hans Kelsen, deve estar contido na "moldura interpretativa" inerente a determinado texto normativo, ou seja, há certa flexibilidade interpretativa por parte do operador do direito, mas não de maneira indiscriminada. Segundo Kelsen:

"O Direito a aplicar forma, (…) uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível" [3].

O marco limitador da liberdade interpretativa é a moldura normativa inerente a determinado texto, ou seja, o intérprete pode transitar dentre as diversas possibilidades hermenêuticas contidas na moldura de Kelsen, mas não poderá transpô-la, sob pena de subversão do texto interpretado.

Como corolário da arte de interpretar e aplicar o direito, deve-se, ainda, ponderar sobre o conceito teórico-doutrinário intitulado Binômio de Janus. Segundo ensina a tradição romana, ao intitular os meses do ano, buscavam-se características temporais ou políticas nessa definição, sendo comum, inclusive, que a nomenclatura dos meses se desse em homenagem aos deuses romanos.

Em virtude disso, o mês de janeiro foi assim batizado em homenagem ao deus romano Jano, figura que dispunha de duas faces, uma olhando para frente e outra olhando para trás. Dessa forma, diz-se que o mês de janeiro "olha para frente" em referência ao ano que acabara de chegar, mas também "olha para trás", em referência ao ano que se passou.

Com base nesse cenário prospectivo (futuro) e pretérito (passado) é que se cunhou o conceito do Binômio de Janus, mormente quanto à eficácia irradiante da norma constitucional, a qual deve ser considerada no processo de interpretar.

O Binômio de Janus apresenta, portanto, duas dimensões holísticas: 1) dimensão subjetiva e 2) dimensão objetiva.

A dimensão subjetiva está relacionada aos efeitos interpretativos àquele que demandou o Poder Judiciário à solução de determinada causa, ou seja, é a solução inter partes decorrente da aplicação do direito. Desta forma, a interpretação do direito "olha para trás", ou seja, analisa fatos pretéritos para prover uma solução ao caso apresentado.

Já a dimensão objetiva tem como característica a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, ou seja, quando se interpreta e aplica o direito, ainda que restrito ao caso apresentado pelas partes, há certa irradiação da ratio decidendi fundante da solução jurídica decorrente do processo hermenêutico aplicado. Assim, a interpretação normativa deve considerar esse "olhar para frente", de modo a apresentar as balizas hermenêuticas atinentes à aplicação do direito diante de determinados casos apresentados ao decisor.

Destarte, a interpretação do direito deve considerar os efeitos trazidos pelo Binômio de Janus, seja na relação inter partes (dimensão subjetiva), seja como apresentação da ratio decidendi a futuros casos a serem apresentados (dimensão objetiva).

Vê-se, por conseguinte, que a hermenêutica jurídica rompe com o caos da falta de previsibilidade na aplicação do Direito, devendo ser "ressuscitada", chamada e aplicada no processo interpretativo brasileiro, o que ora se clama, dado sua raríssima concretização.


[1] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a Interpretação / Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 77.

[2] Significa que nas artes alográficas, ao contrário das artes autográficas, há participação indispensável do intérprete para concretude da obra. Exemplo: peça teatral.

[3] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: wmfmantinsfontes, 2015. p. 390.

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