Segunda Leitura

Reflexos do governo de Getúlio Vargas no Direito e na Justiça

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

10 de julho de 2022, 8h00

Getúlio Vargas, gaúcho de São Borja, após passar pelas fileiras do Exército Nacional, formou-se em Direito na Faculdade Livre de Direito, depois incorporada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tendo exercido por pouco tempo as funções de promotor público e advogado. Eleito Deputado Estadual, tornou-se Ministro da Fazenda no governo do Presidente Washington Luis e presidente do seu estado, nome que se dava, à época, aos governadores.

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Em 1930, após liderar uma revolução que depôs Washington Luis, assumiu a presidência da República, mantendo-se no poder por 19 anos, ou seja, de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954, parte deles como ditador (1930-1934 e 1937-1945), parte como presidente eleito (1934-1937 e 1950-1954), até pôr fim à sua vida em 23 de agosto de 1954.

Várias foram as biografias deste importante personagem da vida nacional, todavia, aqui, far-se-á a análise com foco exclusivo nas iniciativas e reflexos da "Era Vargas" no Direito e no sistema de Justiça.

Ao assumir o governo em 1930, Getúlio dissolveu o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais, passando a legislar por decretos. Tal fato, comum em regimes de força, não merece mais do que uma referência. Todavia, na sequência, iniciou significativa reforma legislativa.

Em 18 de novembro de 1930, através do Decreto 19.408, criou a Ordem dos Advogados, reivindicação antiga, que encontrava forte resistência. Segundo Alberto Venâncio Filho:

"O processo de instalação da OAB foi descrito pelo Desembargador André de Faria Pereira como ‘um verdadeiro milagre’, dado o fenômeno paradoxal que se observava: ao mesmo tempo em que o governo concentrava os três poderes da República em suas mãos, entregava para órgãos da própria classe dos advogados a disciplina e a seleção de seus membros, uma aspiração que vinha desde o século XIX."i

No ano de 1932, fato pouco esclarecido mostrou a força do regime. Quiçá insatisfeito por alguma decisão judicial ou mesmo por alguma divergência política, Vargas extinguiu a 2ª. Vara da Justiça Federal da Seção Judiciária de São Paulo e aposentou o seu titular, o Juiz Federal Washington Osório de Oliveira.

Em 24 de fevereiro de 1932, através do Decreto 21.076, Vargas criou o Código Eleitoral e nele, entre outras iniciativas, criou a Justiça Eleitoral e concedeu às mulheres o direito de voto. Assim dispunha a nova lei: "Art. 2º É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código." Mas o art. 4º vedava alistamento a analfabetos, mendigos e praças de pré (militares).

Pressionado por movimentos de São Paulo, que reivindicavam eleições livre, e também buscando popularidade, além de sua inegável preocupação com a situação dos trabalhadores cujos conflitos até então eram julgados pela Justiça dos Estados e regidos por normas do Código Civil, Vargas criou em 1930 um Ministério do Trabalho e, em 1º de maio de 1932, através do Decreto 5.452, as Juntas de Conciliação e Julgamento, órgãos do Poder Executivo destinado a conciliações. Quando estas se revelassem infrutíferas, propunha-se solução através de arbitragem ou o conflito era encaminhado ao Ministério do Trabalho. Esta iniciativa acabou sendo o embrião do que, em 1939, também por iniciativa de Vargas, viria a tornar-se a Justiça do Trabalho.

A revolução paulista, iniciada em 9 de julho de 1932, reclamava o retorno à democracia e foi derrotada pelas forças federais. Todavia, pressionou Vargas a permitir que se editasse uma nova Constituição em 16 de julho de 1934. Nos dias que a precederam, ações do governante influenciaram fortemente o cenário jurídico brasileiro. Tal fato, quiçá nunca comentado nos estudos jurídicos, pode ser facilmente percebido pela edição de importantes decretos.

Em 23 de janeiro de 1934, através do Decreto 23.793, Vargas tornou público o primeiro Código Florestal nacional. Até então existiam Códigos Florestais estaduais, tendo sido do Paraná o primeiro, em 1907. O Código nacional, entre outras coisas, criou um Conselho Florestal Federal, com sede no Rio de Janeiro, uma Polícia Florestal (precursora da Polícia Ambiental) e previu infrações administrativas e crimes florestais.

Aos 10 de julho de 1934 foi baixado o Decreto Federal 24.643, o importante Código das Águas que, entre outras coisas, considerou públicas de uso comum ou dominicais, entre outras, as águas correntes, nascentes, fontes e reservatórios públicos. Com isto encerrou-se uma discussão feita há décadas, no sentido de que as águas eram consideradas privadas, ou seja, pertenciam ao detentor da propriedade do imóvel em que se encontravam.

No mesmo dia 10 de julho, Vargas tornou públicas, através do Decreto 24.645, as primeiras normas nacionais de proteção aos animais, inclusive prevendo ação penal contra aqueles que, contra eles, praticassem maus tratos. O art. 3º deste Decreto, que dá aos animais o direito de serem assistidos em Juízo pelos representantes do Ministério Público e outros atores processuais, tem sido, atualmente, invocado como fundamento para ações que postulam o direito de os animais ingressarem na Justiça pessoalmente.

Em 1934 sobreveio a nova Constituição e, com ela, várias medidas que afetavam o Direito e a Justiça. No art. 104, § 6º, surgiu a previsão do quinto constitucional de advogados ou membros do Ministério Público nos Tribunais Estaduais. Segundo consta, tal inovação, inexistente em outros países, foi fruto da ação de Vargas. Conta também o folclore forense que, após a escolha de um entre os três da lista tríplice formada pelos tribunais, ele dizia: "pronto, acabei de fazer dois inimigos e criar um ingrato", o que revelava o seu lado espirituoso.

Em 1936, sob a pressão de movimentos políticos radicais de esquerda e de direita, Vargas pressionou pela edição da Lei 244, de 11 de setembro de 1936, que instituiu o Tribunal de Segurança Nacional, órgão da Justiça Militar, com sede no Distrito Federal (então Rio de Janeiro). Referido Tribunal, cujo poder e radicalismo superou em muito os julgamentos políticos do regime militar instaurado em 1964, julgou importantes personagens da vida nacional, como Luis Carlos Prestes. Para que se tenha ideia de como era negado o direito de defesa, vale citar um trecho de artigo que escrevi nesta coluna:

O processo era sumário. O réu citado deveria apresentar sua defesa, com testemunhas (máximo de 5). Mas para o MP não havia limite. A defesa deveria providenciar a presença de suas testemunhas, sem intimação, presumindo-se a desistência das que não comparecessem. Depois da instrução, o prazo para alegações finais era de apenas 3 dias. Note-se que havia processos com centenas de réus. Na apreciação da prova, o art. 15 dispunha que, se o réu fosse preso com arma na mão por ocasião de insurreição armada, a acusação se presumiria provada.ii

Em 1937, retomando poderes ditatoriais, Getúlio Vargas impôs nova Constituição, a chamada "Polaca", por sua semelhança à então vigente na Polônia desde 1935. Escrita por Francisco Campos, ela, realmente, impôs severas limitações ao Poder Judiciário. Além de extinguir a Justiça Federal, sem que contra isto pudesse haver qualquer questionamento, a Carta de 1937 não incluiu o mandado de segurança entre as garantias constitucionais, consequentemente excluindo-o do ordenamento jurídico. No art. 94 proibia-se ao Poder Judiciário "conhecer de questões exclusivamente políticas".

Com poderes ditatoriais, Getúlio prosseguiu governando. O clima de insegurança gerado pela Segunda Grande Guerra Mundial dava-lhe fortes argumentos para afastar qualquer possibilidade de retorno à democracia. Foi apenas com a vitória dos aliados, aos quais ele se aliou após indecisão ao início, que foi editada a Constituição democrática de 1945. Deixando o poder e a ele retornando pelo voto popular em 1950, em plena democracia, não teve Vargas maior protagonismo nas questões de Direito e Justiça.

Eis, em breve síntese, os fatos colhidos de obras esparsas da ação de Getúlio Vargas na esfera jurídica e judicial. Delas se mostra a personalidade desta importante figura da vida nacional, muito bem resumida por Luiz Octavio de Lima ao dizer: ‘”com sua aparência pouco imponente, pouco mais de 1,60 metro de altura, gordinho, de ar bonachão, em 1930 Getúlio Vargas já havia se acostumado e dosar gestos de camaradagem com demonstrações de autoridade para não parecer fraco ou manipulável”.iii


i VENÂNCIO FILHO, Alberto. Notícia Histórica da Ordem dos Advogados do Brasil (1930-1980), Brasília: OAB, 1982, p. 25-30.

ii FREITAS, Vladimir Passos de. Pouco se sabe sobre o Tribunal de Segurança Nacional. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 31 mai. 2009. Disponivel em: https://www.conjur.com.br/2009-mai-31/brasil-sabe-tribunal-seguranca-nacional. Acesso em 8 jul. 2022.

iii LIMA, Luiz Octávio de. 1932 – São Paulo em Chamas. São Paulo: Ed. Planeta, 2018, p. 44.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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