Diário de Classe

É preciso desmistificar conceitos e "desinflamar" o debate

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9 de julho de 2022, 8h02

"Sistemas longevos" — como os regimes democráticos no Ocidente — avançaram no tempo sem grandes alterações ao longo do século 20. Sobretudo naqueles moldados após a Primeira Grande Guerra, basicamente dois grandes partidos — um à esquerda da arena política e outro à direita — sustentaram essa estabilidade, via de regra, presente na maioria dos Estados do norte global. Esse formato, com evidentes exceções, claro, parece ter sobrevivido até agora, apesar das muitas crises econômicas enfrentadas em todo o mundo, da própria Segunda Guerra e de, mais recentemente, uma infinidade de cismas culturais eivados de radicalismo, como vai propor Adam Przeworski [1].

Contudo — segue o professor da Universidade de Nova York —, essa estabilidade verificada nesses mesmos "sistemas longevos" parece ameaçada na atualidade. No correr dos acontecimentos, entre rachas políticos e fusões, o Ocidente tem verificado significativa proliferação de novas siglas, acompanhada também da migração de parcela do eleitorado às beiradas ideológicas e da formulação de programas reflexivos desse mesmo contexto extremado. Pode-se depreender, disso, duas conclusões preliminares: a primeira envolve o próprio regime democrático e sua capacidade de reorganizar-se no tempo. Afinal, não apenas novos partidos surgem, como surgem, também, novas ideias, refletidas em programas políticos diferentes daqueles até então mais populares. Diz respeito, portanto, a uma certa plasticidade do regime não em sentido formal, mas em relação a seu próprio conteúdo. Já a segunda conclusão dialoga com o esvaziamento do sistema partidário tradicional. Indica, portanto, uma crise: "o velho está morrendo e o novo ainda não nasceu", como vai dizer Przeworski, fazendo lembrar o limbo contido no "não mais" e no "ainda não" do filósofo italiano Giacomo Marramao.

Pois bem. Todas estas reflexões, muito mais voltadas — e projetadas, sobremodo — aos EUA e à Europa, encontram reflexos bastante semelhantes por aqui. Embora haja um certo descolamento no tempo entre essas realidades e a brasileira em fins da Primeira Guerra — sobretudo pelo traço fortemente autoritário de nossa Primeira República —, o presente parece realinhar os contextos: ainda que superficialmente, novos partidos e agendas políticas também proliferam por aqui, buscando preencher espaços de representatividade, inclusive identitários, que sequer existiam décadas atrás.

No Brasil, as manifestações de junho de 2013 têm papel significativo nesse contexto, impulsionado pelo advento das redes. A busca por reconhecimento identitário, que em alguma medida pode ser uma "narcísica compulsão", ajudou a "inflamar o debate" — para usar as frases e as ideias de Francisco Bosco [2] — já polarizado por aqui. Assim como principalmente na Europa, mas não apenas, o Brasil distanciou-se — e distancia-se, cada vez mais — dos aspectos garantidores da estabilidade democrática, para apostar nos seus extremos.

Parece haver um quê de religioso nisso. Se o monoteísmo não admite outros deuses — intransigentemente, limitando o diálogo com outras formas religiosas, inclusive monoteístas (!) — por todos os exemplos, fiquemos com as Cruzadas no Medievo —, o extremismo político também não admite ideias divergentes. Restringe, portanto, o debate a esferas privadas de sentido, endereçando o discurso aos "já convencidos", porque só estes "podem ouvir". Os grupos de WhatsApp nos celulares de todos nós são o melhor exemplo da "pregação para convertidos" à esquerda e à direita, à beira de eleições presidenciais.

Tudo isso, contudo, parece impor reflexos significativos ao sistema de Justiça, para além de nossas arenas tipicamente políticas. Se o Constitucionalismo Contemporâneo [3] deslocou tensões ao Judiciário, com a incorporação de um amplo catálogo de obrigações à estatalidade — como o direito à moradia, à educação, à previdência, à saúde e à assistência social, por exemplo — um significativo catálogo de questões políticas tem sido, na atualidade, também arremessado ao Judiciário.

A pandemia de Covid-19 — metamorfoseada por aqui em uma crise muito mais política do que sanitária — é um excelente exemplo, mas não o único. Disputas entre Poderes, como as recentes e acirradas crises "políticas" entre Congresso e STF, Executivo e STF, ou disputas entre bancadas parlamentares, fazendo do Supremo Tribunal Federal uma extensão do espaço de disputa política, não acenam somente a uma forma democrática de dirimir desacordos "intra" ou "entre" poderes. Vão além — ou "podem ir" além — porque, no limite, pedem à cúpula judiciária do país a última palavra em relação a disputas políticas extremadas, quase religiosas e, por isso mesmo, autistas entre si.

Paradoxalmente, "não há, portanto, política na política", projetando uma clara pressão não apenas daqueles imediatamente envolvidos, mas, também, da chamada "voz das ruas" ao Judiciário. Desloca-se, assim, o espaço "do político" — em sentido próximo ao de Claude Lefort [4]. E aí está o perigo. Sem desconsiderar nossa fragilidade democrática [5] e, muito por isso, a relevância da atuação judiciária em bom catálogo de questões, também não é possível ignorar certas realidades presentes na cotidianidade de nossos tribunais. Com recepções teóricas equivocadas, como Dworkin e Alexy — por todos os exemplos [6] — voltadas à introdução de argumentos políticos e morais nos julgamentos, a diferença entre reafirmar o Direito como uma "wittgensteiniana linguagem pública" [7] ou assentá-lo como uma "novafala orwelliana" [8] tem sido tênue por aqui. É, afinal, o que não cansa de demonstrar, com méritos, o intenso debate acadêmico centrado na necessidade de distanciar os conceitos de judicialização da política e ativismo judicial [9].

Para arrematar, recorrendo mais uma vez a Francisco Bosco e a Adam Przeworski (com acréscimos): é preciso, mais do que nunca, resgatar o vocabulário político-jurídico para projetar sua reconstrução, novamente, como o "sólido sistema" erguido no século 20. Essa é a condição de possibilidade para desinflamar o debate, intransigentemente travado na raia de seus extremos e, via de regra, deslocado ao Judiciário e à pressão da "voz das ruas". Eis, entre tantas áreas, a "função social" não apenas de muitas ramificações das Ciências Sociais Aplicadas, mas, sobretudo, da boa Teoria do Direito: desmistificar conceitos e, com isso, ajudar a desinflamar o debate.

 


[1] PRZEWORSKI, Adam. Crises da democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

[2] BOSCO, Francisco. O diálogo possível. São Paulo: Todavia, 2022.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Letramento, 2020.

[4] LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre a democracia, revolução e liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1991.

[5] Ver, em sentido amplo, ISSACHAROFF, Samuel. Fragile democracies: contested power in the era of Constitutional Courts. New York: Cambridge University Press, 2015. Para contextualizar a discussão às peculiaridades brasileiras, ver STRECK, Lenio Luiz; MOTTA, Francisco. Democracias frágeis e cortes constitucionais: o que é a coisa certa a fazer? Pensar – Revista de Ciências Jurídicas, v. 25, nº 4, 2020.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

[7] COPELLI, Giancarlo Montagner. Construções entre filosofia da linguagem e Teoria do Estado: o Estado Social como Estado de Direito e seus desafios no Brasil. Tese de Doutorado. São Leopoldo, 2018.

[8] ORWELL, George. 1984. São Paulo: Cia. das Letras, 2009.

[9] Por todos os exemplos, a recente tese de Isadora Ferreira Neves. NEVES, Isadora Ferreira. As três perguntas fundamentais da crítica hermenêutica do direito: a aplicabilidade de uma proposta de limites à atuação do Poder Judiciário no Brasil. Tese de Doutorado. São Leopoldo, 2022.

Autores

  • é doutor em Direito pelo programa de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Com bolsa Capes/PNPD, realiza estágio pós-doutoral na mesma instituição, junto ao Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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