Opinião

Cidadania dos brasileiros emigrados no período do "defeso eleitoral"

Autor

  • Vanessa Alvarez

    é advogada especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional mestre em Direito Internacional titular de LLM em Direito Francês e Europeu ambos na na Universidade Paris 1 Panthéon - Sorbonne mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutoranda em Direito Internacional Público na Faculdade de Direito de Lisboa.

8 de julho de 2022, 20h25

Segundo reportagem da Folha de S.Paulo, no último dia 2 de julho, em respeito à orientação da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), diversos serviços essenciais prestados pelos consulados e embaixadas brasileiros sofreram modificações no formato de divulgação nas redes sociais.

No período do denominado "defeso eleitoral", a Secom determinou a suspensão temporária de perfis nas redes sociais no período compreendido entre 2 de julho e 2 de outubro, podendo ser estendido até o dia 30 de outubro, para o caso de eventual segundo turno, conforme os artigos 28, 29, inciso II e 77 da Constituição Federal de 1988 e aos artigos 1˚ e 73, inciso VI, "b", da Lei nº 9.504/1997 [1] e Resolução TSE n. 23.674/2021.

De acordo com a publicação: "Por instrução expressa da Secom — e em cumprimento a jurisprudência recente e a orientação da Câmara Eleitoral da Advocacia-Geral da União AGU —, as atuais contas de mídias sociais dos postos devem ser suspensas até o fim do período do defeso eleitoral [30 de outubro, caso haja segundo turno]", afirma o comunicado. "As atuais contas deverão ser substituídas, até o dia 30 de junho, por contas temporárias."

A portaria Secom/MCOM nº 5.973 foi publicada em 28 de junho de 2022 [2] e conceitua em seu artigo 3˚, inciso V como canais digitais do governo "os portais e sítios dos órgãos e entidades do Poder Executivo federal na internet, seus perfis em redes sociais e os aplicativos móveis e dispositivos digitais que contenham informações institucionais, notícias ou prestação de serviços do Governo Federal".

Por sua vez, o artigo 34 da supramencionada portaria dispõe que as postagens anteriores ao período de defeso eleitoral que possuam conteúdos sujeitos ao controle da legislação eleitoral deverão ser arquivadas ou ocultadas do perfil, durante o período eleitoral. Contudo, caso o órgão/entidade opte por desativar/suspender, temporariamente, o perfil oficial, os órgãos e entidades do Secom deverão criar um novo perfil temporário na plataforma para utilização durante o período de defeso eleitoral.

Ainda, a normativa determina que após o período de defeso eleitoral, os órgãos e entidades que tenham optado por desativar/suspender temporariamente os perfis oficiais, deverão retomar as atividades nos perfis que foram temporariamente desativados, de modo a garantir o histórico de publicações e realizações do órgão/entidade.

A título de ilustração, no perfil no instagram da Embaixada do Brasil na França "Brésil en France" foi divulgada uma mensagem no sentido de que "devido à proximidade das eleições e o respeito da legislação brasileira em vigor, as contas da embaixada do Brasil na França serão temporariamente desativadas até o final das eleições".

Outro exemplo, ao realizar pesquisa no Google com o título: "Consulado do Brasil em Paris" não aparece mais o site oficial da repartição, mas tão somente um direcionamento com uma "aba" para o site do Ministério das Relações Exteriores.

Ou seja, todas as informações essenciais relativas à emissão de documentos, residência no exterior, informações úteis, locais de votação, tudo, foi temporariamente suspenso e está inacessível aos brasileiros no exterior naquele portal.

No portal "governo digital" [3] ainda foi publicado que o canal do youtube será mantido no ar, com a suspensão apenas daqueles conteúdos que não são permitidos pela legislação eleitoral. As demais redes oficiais do governo digital ficarão desativadas temporariamente e, após as eleições, terão seus conteúdos restabelecidos. As informações, neste período, serão publicadas nos perfis provisórios do Ministério da Economia no Twitter e Instagram.

Ainda, conforme comunicado geral do Itamaraty, serão realizadas as seguintes alterações nos perfis das redes sociais do Ministério das Relações Exteriores: @ItamaratyGovBr para @govitamaraty (Twitter); /itamaratyGovBr para /gov.mre (Facebook) e @itamaratygovbr para @gov.itamaraty (instagram), informação que foi objeto de pouca divulgação e que agora não aparecerá mais nos perfis oficiais já desativados.

Igualmente, segundo a Secom, os perfis temporários, de acordo com a orientação expedida aos postos, devem publicar apenas "informações de interesse direto do cidadão, que se refiram à prestação de serviço oferecido pelo posto". Ainda, "Repartições consulares devem, assim, em suas novas contas, limitar-se a publicar a natureza dos serviços oferecidos, o endereço da repartição e os horários de atendimento".

No que concerne às vedações impostas pela lei no período do "defeso eleitoral", duas situações são assinaladas: 1) a primeira refere-se à realização de qualquer ação de comunicação que possa configurar propaganda eleitoral ou desvirtuamento de propaganda com consequente benefício a determinado candidato, podendo configurar abuso de poder político ou econômico seja nas modalidades expressa, subliminar, disfarçada ou dissimulada; 2) a segunda refere-se à realização de ações publicitárias em desacordo com a legislação eleitoral.

Segundo a Secom, a alteração realizada foi fundamentada no artigo 73, inciso VI, "b", da lei federal 9.504/1997 que dispõe que é vedado ao agente público, nos três meses que antecedem o pleito (com exceção da propaganda de produtos e serviços que tenham concorrência no mercado), a autorização de publicidade institucional dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas entidades da administração indireta, salvo em caso de grave e urgente necessidade pública, assim reconhecida pela Justiça Eleitoral.

Além disso, segundo a Pasta, a opção pela suspensão temporária das contas oficiais das Embaixadas e Consulados brasileiros no mundo, também foi realizada com base na denominada "Cartilha de condutas vedadas aos agentes públicos federais em eleições 2022", além da Instrução Normativa Secom/SG/PR nº 01 de 11/04/2018 (que disciplina a publicidade em ano eleitoral dos órgãos e entidades integrantes do Sistema de Comunicação de Governo do Poder Executivo Federal (Sicom).

Contudo, a referida suspensão dos canais de comunicação do Ministério das Relações Exteriores não possui precedentes, ao menos, não nos mesmos termos em que está sendo executada atualmente. As informações arquivadas podem ser perdidas ou suprimidas, os canais com os brasileiros no exterior se tornaram mais restritos e o que se verificou ipso facto foi a blindagem digital e institucional do atual governo no exterior.

Neste momento crítico da democracia brasileira é fundamental a aplicação dos princípios basilares da proporcionalidade e da razoabilidade dispostos no ordenamento jurídico pátrio a fim de conceber uma leitura constitucional ao artigo 73, inciso VI, "b", da lei federal 9.504/1997.

Ora, o artigo 1˚, inciso II da Constituição de 1988 [4] dispõe que a cidadania é fundamento da República Federativa do Brasil, o que caracteriza o vínculo jurídico-político que une os indivíduos ao poder estabelecido de forma a desenhar o estado democrático de direito. 

Igualmente, a corroborar a questão o acesso à informação está disposto no artigo 5˚, inciso XIV, da mesma Constituição, o que é essencial para a transparência das informações, assim como para a publicação de serviços básicos relativos aos locais de votação, necessidade de convocação de mesários e outras questões atinentes e acessórias ao pleito eleitoral.

É salutar consignar que os brasileiros que possuam residência permanente no exterior podem encontrar dificuldades para localizar as informações relativas aos locais de votação nos respectivos consulados e que a alteração das contas oficiais nas redes sociais pode causar danos ao escorreito processo eleitoral fora do território nacional.

É que após a publicação da referida normativa o acesso aos sites dos consulados e embaixadas deve ser realizado imperativamente através da plataforma "e-consular" mediante prévio cadastro no Gov.br, registrando-se no sistema governamental todos os dados de qualificação e localização de quem busca a informação respectiva.

Também, é preciso ressaltar que a justificativa do "defeso eleitoral «também pode ser utilizada como "blindagem institucional", vide o artigo 37 da Portaria da Secom [5] que permite a suspensão da área de comentários e interatividade mediante a moderação e a exclusão de comentários considerados "de cunho eleitoral", caracterizando-se como um instrumento incompatível com a liberdade de expressão e a democracia.

Segundo levantamento da rede CNN [6] com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), atualizados até o mês de março deste ano, o número de brasileiros no exterior aptos a votar na eleição deste ano cresceu 20% em comparação a 2018. Neste ano, o total de eleitores em outros países que podem participar do pleito eleitoral chega a 603.391.

Na mesma pesquisa, se verifica que o total de eleitores brasileiros no exterior em 2022 supera o total de eleitores nos estados de Roraima (348.839), Amapá (529.240) e Acre (560.016).

Por exemplo, Miami, nos Estados Unidos, é o local em que se verifica o maior número de brasileiros votantes fora do país: 35.722, o que corresponde a 5,92% do total. Coincidentemente, no último dia 10 de junho o atual presidente da República, em ação incomum, inaugurou presencialmente um vice-consulado na cidade.

Ora, o espírito da lei eleitoral deve ser interpretado no sentido da vedação de propagandas institucionais relativas ao favorecimento pessoal de determinados candidatos, não se confundindo com a publicação de informações essenciais, serviços e agendas públicas.

Inclusive é preciso analisar o contexto jurídico eleitoral nacional a fim de respeitar também os princípios básicos da Administração Pública previstos no artigo 37 da Constituição, notadamente, legalidade, moralidade e publicidade, considerando-se que a suspensão temporária de contas das redes sociais dos consulados e embaixadas no exterior pode prejudicar demasiadamente os brasileiros que estão foram do território nacional e que podem encontrar dificuldades na busca de informações em território estrangeiro.

Ainda, o artigo 35 da portaria publicada pela Secom prescreve que os conteúdos das postagens nos perfis de programas de governo nas redes sociais restringir-se-ão à prestação de serviços ao cidadão, com caráter educativo, informativo ou de orientação social.

Assim, a questão que se coloca é a seguinte: Essa medida já não seria suficiente para respeitar o disposto no artigo 73, inciso IV, alínea "b" da lei federal nº 9.504/1997 sem o "apagamento temporário" dos sites e perfis nas redes sociais das embaixadas e consulados brasileiros no estrangeiro?  É preciso preservar o diálogo com os brasileiros fora do território nacional e, notadamente, daqueles que já estão em situação de vulnerabilidade institucional.  

Por fim, o início do denominado "defeso eleitoral" deve servir de alerta para que as leis eleitorais sejam respeitadas mediante a equalização com os princípios constitucionais relativos ao acesso à informação, à legalidade e à publicidade que devem guiar a interpretação do contexto jurídico para que se preserve o fundamento mais importante do Estado Democrático de Direito: a cidadania de todos os brasileiros, inclusive dos emigrados e que estão aptos exercer o direito de voto na eleição presidencial.

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